I - O caminho
Dizem que o melhor de uma viagem é o caminho, não o destino. Assim me engajei em uma viagem de quase 24h em um ônibus entre Lima e Cusco, no Peru. Durante as primeiras cinco ou seis horas de percurso pude desfrutar de meu primeiro encontro com o Pacífico: entretive-me observando a hostil geografia da costa peruana, com uma imensidão de terras áridas, placas de trânsito que preveniam o condutor contra falhas geológicas, falésias moldadas por um mar cinza como o céu do inverno limenho.
Conforme me afastava do extenso perímetro urbano de Lima e seguia em direção aos Andes, contudo, o caminho se tornava gradativamente duro e agressivo. Seja por estar há muito tempo confinado em um assento de ônibus, sejam pelas curvas da estrada, seja por estar elevando drasticamente minha altitude em relação ao nível do mar, fui tomado por uma forte dor de cabeça que perturbou minha paz por horas a fio de viagem. Era meu primeiro dia sozinho no Peru. O intervalo de tempo entre minha chegada ao aeroporto de Lima e meu embarque no ônibus para Cusco era muito curto. A combinação entre a náusea e estar só, em meu primeiro dia em um país estrangeiro, conferiu contornos desesperadores à minha viagem. Não tinha aonde ir nem a quem recorrer. A única alternativa era esperar a dor passar.
Se existe algo mágico em viagens é deixar-se ser apoderado pelo espírito de que toda e qualquer adversidade faz parte da aventura. Afinal, aventuras são transformadoras e o triunfo sobre elas, a sensação de concluir o que se propôs a fazer, de superar a vontade de desistir, é inigualável. Quando desembarquei em Cusco, já me sentia bem melhor, ao menos com forças suficientes para chegar ao hostel e ter o mais necessário dos descansos antes de desbravar as maravilhas do Peru.
II - O destino
Poucos se dão conta do quanto se deve aos peruanos. Tampouco se lembram que, em nossa maiúscula América, existe um povo que pode, de fato, se equiparar aos mesopotâmicos e egípcios como um dos berços independentes da humanidade. Desde a Civilização Caral ao Império Inca, inúmeras culturas desenvolveram ali incríveis manifestações artísticas, geniais avanços arquitetônicos e um sistema agrícola a frente de seu tempo. Os grandes feitos dos antigos peruanos são ainda hoje notáveis: a cultura andina, em diferentes âmbitos e tempos históricos, se desenvolveu com diversos elementos comuns na agricultura, alimentação, religião, vestimenta, organização social e arte. Como legado, deixaram um vasto patrimônio arqueológico e imaterial. Aspectos da cultura campesina peruana se manifestam sobretudo em sua rica gastronomia e sistemas de plantio.
O Peru a todo momento desafia nossa imaginação. Da imensa cidade planejada de adobe que abrigou cerca de 50 mil habitantes em Chan Chan aos cortes de alta precisão de gigantes pedaços de rocha perfeitamente encaixados em Sacsayhuaman, passando pelas esculturas em forma de jaguar de Chavin de Huantar ou pelas excepcionais cerâmicas mochica, até as impensáveis linhas de Nazca, pouco da história pré-colombiana do Peru pode ser explicada com certeza; não desenvolveram a escrita e quase não deixaram documentos. Boa parte da historiografia peruana é baseada em textos de cronistas da Conquista, tais qual Garcillaso de La Vega.
III - O caminho dos Incas
O milenar desenvolvimento da cultura andina teve seu ápice com os Incas, um império tão breve quanto intenso. Foi o maior da América pré-colombiana, o mais extenso, multinacional e expansionista. Ao lado da arquitetura e dos sistemas de irrigação, em terraços, a abertura de estradas está entre as grandes realizações dos Incas. Com efeito, existe uma série de caminhos que levam a Machu Picchu, e um desses caminhos me trouxe ao Peru.
Antes, porém, de qualquer descrição sobre minhas aventuras nos caminhos dos Incas, devo ressaltar que eles não gostavam de lugares de fácil acesso. Dificilmente as altitudes de operação são menores que 3000 m, chegando, sem esforço, aos 5000 m. Respirar no Peru, por si só, já é um grande desafio. Enquanto a mente produz imagens de moléculas de ar se rarefazendo diante de si, o corpo sente as pulsações do coração na cabeça, as mãos formigam e as pernas parecem não conseguir sustentar o peso do corpo. Os conceitos sobre nossos limites físicos são postos à prova, ficamos expostos a novas formas de percepção. A sabedoria para lidar com o soroche [mal da altitude] vem dos antigos peruanos: folhas e o estimulante chá de coca para oxigenar melhor o sangue, chá de muña para facilitar a digestão e líquido de eucalipto para aliviar o mal-estar são amplamente utilizados para amenizar os efeitos da altitude. Soma-se ainda a irregular topografia, o terreno acidentado, as grandes variações de temperatura ao longo do dia e as montanhas de gelo eterno.
Tais são os fatores que fazem de uma viagem ao Peru um feito extraordinário. Novos caminhos são até hoje descobertos, de tão escondidas que estão algumas das maravilhas incas. Para se chegar a Machu Picchu ou se vai de trem ou em ao menos quatro dias de caminhada. A colorida montanha de Vinicunca, por sua vez, foi aberta a visitação apenas em 2012. Acredita-se que os nativos a escondiam de outros povos por considerá-la sagrada. Ir ao Peru é abrir novos caminhos, ter novas sensações, conhecer melhor os limites de nosso corpo, saber quando desistir e quando seguir em frente.
Antes, porém, de qualquer descrição sobre minhas aventuras nos caminhos dos Incas, devo ressaltar que eles não gostavam de lugares de fácil acesso. Dificilmente as altitudes de operação são menores que 3000 m, chegando, sem esforço, aos 5000 m. Respirar no Peru, por si só, já é um grande desafio. Enquanto a mente produz imagens de moléculas de ar se rarefazendo diante de si, o corpo sente as pulsações do coração na cabeça, as mãos formigam e as pernas parecem não conseguir sustentar o peso do corpo. Os conceitos sobre nossos limites físicos são postos à prova, ficamos expostos a novas formas de percepção. A sabedoria para lidar com o soroche [mal da altitude] vem dos antigos peruanos: folhas e o estimulante chá de coca para oxigenar melhor o sangue, chá de muña para facilitar a digestão e líquido de eucalipto para aliviar o mal-estar são amplamente utilizados para amenizar os efeitos da altitude. Soma-se ainda a irregular topografia, o terreno acidentado, as grandes variações de temperatura ao longo do dia e as montanhas de gelo eterno.
Tais são os fatores que fazem de uma viagem ao Peru um feito extraordinário. Novos caminhos são até hoje descobertos, de tão escondidas que estão algumas das maravilhas incas. Para se chegar a Machu Picchu ou se vai de trem ou em ao menos quatro dias de caminhada. A colorida montanha de Vinicunca, por sua vez, foi aberta a visitação apenas em 2012. Acredita-se que os nativos a escondiam de outros povos por considerá-la sagrada. Ir ao Peru é abrir novos caminhos, ter novas sensações, conhecer melhor os limites de nosso corpo, saber quando desistir e quando seguir em frente.
IV - Pachamama (ou A Mãe Terra)
De todas as excentricidades que fazem do Peru um lugar ímpar no mundo, a geografia tem lugar de destaque. O oceano encontra o continente em um enorme deserto que rapidamente se transforma na Cordilheira dos Andes. Quando atravessada, as montanhas nevadas dão lugar à vastos territórios de floresta tropical. O cenário é altamente mutável; transforma-se muito rapidamente. Os desafios impostos pela natureza e a ascensão da cultura andina como civilização são intrínsecos. Desde os primórdios da povoação na região foi necessário lidar com terremotos, vulcanismo, avalanches e alterações climáticas.
Com quase 6800 m de elevação, o nevado Huascarán, localizado na província de Ancash, é o ponto culminante do país. Em 1970 um terremoto causou o pior desastre natural já registrado no Peru. O forte movimento sísmico fez despencar do Huascarán enormes blocos de gelo e rocha, que, em três minutos, soterraram todo o povoado de Yungay. O aluvião, que pode ter assumido velocidades da ordem de 300 km/h, deixou 25.000 mortos. Apenas 300 foram os sobreviventes da tragédia. Yunagay foi reconstruída a 1km dali, e a área do acidente é hoje um campo santo, onde é proibido qualquer tipo de escavação. Pouco da antiga cidade pode ser vista; restaram apenas parte da carroceria de um ônibus e ruínas da antiga catedral.
De fato, a terra sempre teve um papel vital para os andinos. Pachamama não somente é a deidade máxima nos Andes, como também uma filosofia que prega o bem viver e o amor à terra. No Peru, afinal, a realidade não é exclusivamente antropocêntrica. Devemos respeitar a natureza e compreender suas próprias regras, descobrir que ela não é contra e, tampouco, a nosso favor.
Com quase 6800 m de elevação, o nevado Huascarán, localizado na província de Ancash, é o ponto culminante do país. Em 1970 um terremoto causou o pior desastre natural já registrado no Peru. O forte movimento sísmico fez despencar do Huascarán enormes blocos de gelo e rocha, que, em três minutos, soterraram todo o povoado de Yungay. O aluvião, que pode ter assumido velocidades da ordem de 300 km/h, deixou 25.000 mortos. Apenas 300 foram os sobreviventes da tragédia. Yunagay foi reconstruída a 1km dali, e a área do acidente é hoje um campo santo, onde é proibido qualquer tipo de escavação. Pouco da antiga cidade pode ser vista; restaram apenas parte da carroceria de um ônibus e ruínas da antiga catedral.
De fato, a terra sempre teve um papel vital para os andinos. Pachamama não somente é a deidade máxima nos Andes, como também uma filosofia que prega o bem viver e o amor à terra. No Peru, afinal, a realidade não é exclusivamente antropocêntrica. Devemos respeitar a natureza e compreender suas próprias regras, descobrir que ela não é contra e, tampouco, a nosso favor.
V - A construção
Às quatro horas da manhã saí de Cusco em direção a Mollepata. Preparei uma mochila com o essencial para passar o dia caminhando, e outra, maior, para ser levada pelos arrieros e suas mulas. Os arrieros formam uma importante classe social no cenário andino, em que o trabalho da força animada foi durante muito tempo o único capaz de superar o relevo montanhoso. A palavra descende da interjeição ¡arre!, bradada com o fim de pôr animais de carga em movimento. Assim, a arriaria se desenvolveu sobretudo como atividade econômica introduzida pelos espanhóis no Peru colonial, quando a mão de obra indígena era explorada para transportar ouro desde as minas até os portos. As grandes lideranças rebeldes contra a dominação espanhola surgiram nesse contexto. Por meio de longas viagens, puderam se fazer conhecidos em longas extensões de terra e conheciam todas as dificuldades da vida nas minas, fazendas e povoados .
De Mollepata se caminha em direção ao Apu Salkantay, em uma das conhecidas rotas que levam a Machu Picchu. Quando uma montanha é identificada como Apu, ela é de fato especial; trata-se de uma divindade dos povos dos Andes que remete ao espírito da montanha, regulador do ciclo vital da região em que se encontra. No passado, a região do Salkantay foi cenário de peregrinações e sacrifícios para os deuses. Parte do caminho é feito em confluência com canais incaicos, engenhosidade ainda hoje aproveitada por camponeses que habitam as partes mais baixas da região. Ao longo do trajeto, o domínio natural entra em transição: sobe-se até os 4650 m do Passo Salkantay, para então ver o surgimento da densa vegetação amazônica à medida que se desce até o vale do Rio Urubamba. Esse caminho de razão incompreensível preserva pequenos povoados, a língua quíchua, trilhas sagradas, veredas serpenteantes e vida selvagem.
Andar durante cinco dias até Machu Picchu deve ser uma das melhores experiências conhecidas pelo homem. O último dia antes de se chegar a Aguas Calientes, povoado aos pés da cidade perdida dos incas, é onírico. São 22 km de trilha, os quais os quatro últimos são feitos sobre uma linha de trem, de onde já se é possível avistar as ruínas de Huayna Picchu e as escarpas de Machu Picchu, a jovem e a velha montanha. Esse trecho também foi percorrido em 1911 pelo Professor Hiram Bingham quando tentava chegar à última capital inca, de que até então só ouvira falar. A relação simbiótica entre os incas e sua base geográfica tem nas edificações de Machu Picchu seu melhor arquétipo. A névoa emanada dos Andes, as águas caudalosas do Rio Urubamba, o terreno em terrazas, as construções em trapézio, as montanhas em forma de asas, e a cidade erguida em formato de Condor são os elementos que compõem a mística beleza desse lugar. Enquanto estamos dentro do sítio, esquecemos da exaustão de ter percorrido um longo caminho até ali. Somos, como assertou Che Guevara, preenchidos por um estranho sentimento de nostalgia por um tempo histórico que não nos pertence; por uma sociedade de que não fizemos parte. Como uma cidade dessas pôde dar lugar às informais, subdesenvolvidas e caóticas cidades peruanas?
Andar durante cinco dias até Machu Picchu deve ser uma das melhores experiências conhecidas pelo homem. O último dia antes de se chegar a Aguas Calientes, povoado aos pés da cidade perdida dos incas, é onírico. São 22 km de trilha, os quais os quatro últimos são feitos sobre uma linha de trem, de onde já se é possível avistar as ruínas de Huayna Picchu e as escarpas de Machu Picchu, a jovem e a velha montanha. Esse trecho também foi percorrido em 1911 pelo Professor Hiram Bingham quando tentava chegar à última capital inca, de que até então só ouvira falar. A relação simbiótica entre os incas e sua base geográfica tem nas edificações de Machu Picchu seu melhor arquétipo. A névoa emanada dos Andes, as águas caudalosas do Rio Urubamba, o terreno em terrazas, as construções em trapézio, as montanhas em forma de asas, e a cidade erguida em formato de Condor são os elementos que compõem a mística beleza desse lugar. Enquanto estamos dentro do sítio, esquecemos da exaustão de ter percorrido um longo caminho até ali. Somos, como assertou Che Guevara, preenchidos por um estranho sentimento de nostalgia por um tempo histórico que não nos pertence; por uma sociedade de que não fizemos parte. Como uma cidade dessas pôde dar lugar às informais, subdesenvolvidas e caóticas cidades peruanas?
VI - No ar
O desfecho da viagem se deu no ar, observando mais uma preciosidade em terra: as Linhas de Nazca, geóglifos cuja origem nenhum arqueólogo, etnólogo, historiador consegue cravar. Uma das versões que pretende explicar o motivo dos enormes desenhos no chão diz que era um modo de a civilização Nazca ser vista pelos deuses. Esse momento nefelibático revelou então, para mim, um dos propósitos de se ir ao Peru: somos desafiados a ir mais alto - por terra ou pelo ar - para alcançarmos a sabedoria de uma das civilizações mais fantásticas que já existiu.
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