sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Cuba: estudo, trabalho e fuzil

Quando acordei em Havana meu mundo mudou. O tempo parou e eu agora fazia parte de uma novela épica que será contada por toda posterioridade. Pode ser que daqui a alguns séculos questionem se essa é uma história verídica, mas, hoje, posso dizer que sou uma prova de que realmente existiu. Sim, os barbudos de fato tomaram o poder, derrubaram aviões ianques, erradicaram o analfabetismo, combateram injustiças sociais e raciais, deram escola e saúde de qualidade a toda população; construíram a pátria do trabalho, da educação e do fuzil.




Não é preciso forçar a vista para enxergar em quais aspectos a revolução cubana de 1959 triunfou. O país é extremamente pobre, em parte pelo passado de exploração colonial e, em parte, pelo embargo imposto pelos Estados Unidos como punição aos revolucionários. Contudo, ao contrário de todos os outros países da América Latina, a pobreza não deixou uma legião de desabrigados, famintos, não deixou crianças sem escola, sem opções de lazer e cultura. Não existe desigualdade racial, concentração de renda, o acesso à infraestrutura é universalizado e todos podem ser doutores. Aonde se vai se nota o bom nível geral de instrução da população. 

Se existe um ponto em que se pode dizer que a revolução fracassou foram nas liberdades individuais. O país vive uma ditadura, que pode ser percebida nas entrelinhas do cotidiano cubano. Os meios de comunicação são controlados, as notícias sempre enaltecem os feitos do governo. O noticiário internacional se resume a alguns líderes políticos estrangeiros dizendo o quanto a revolução cubana serve como inspiração para seus respectivos povos. Também o acesso à internet é limitado - para se conectar, compra-se um cartão que permite o acesso à redes públicas de internet sem fio. O Partido Comunista Cubano (PCC), o único do país, está no poder a ininterruptos 57 anos, e não existe nenhuma forma legalizada de oposição. Há presos políticos e o debate político-ideológico é quase inexistente. A doutrinação ocorre desde cedo, e, para participar efetivamente da vida política, deve-se iniciar o processo participando de organizações políticas destinadas a crianças. Há quem diga que tais medidas são um mal necessário para proteger os objetivos da revolução. 

Ainda assim, existe em Cuba um saudosismo coletivo em relação aos avanços sociais de Fidel Castro, figura carismática e herói nacional, presidente do país entre 1959 e 2008. De fato, princípios como a solidariedade e a consciência coletiva parecem reger as relações sociais cubanas. Verdade é que o isolamento perante sobretudo os Estados Unidos alimentou um profundo orgulho patriótico e preservou muitas das tradições culturais de Cuba, assim como seu vasto patrimônio histórico. Se por um lado muitos cubanos vislumbram o sonho americano, a ponto de usarem bandeiras estadunidenses como adornos e arriscarem suas vidas em botes arcaicos na tentativa de chegar à Flórida, tantos outros afirmam morar no melhor país do mundo.

Nas ruas de Havana, uma imensa placa lembrava à população que o embargo econômico norte-americano foi o pior dos crimes que poderiam ter feito ao povo cubano. No mesmo quarteirão, uma outra afirmava que a revolução era invencível. O embargo ao menos poupou Cuba de cooptar algumas das piores heranças que o american way of life pode deixar. Em Cuba aprendemos a ver a beleza na simplicidade, no sorriso, não no poder de consumo. Não é, afinal, o que possuímos que define quem nós somos. Os cubanos dispõem de uma simpatia que pode facilmente ser explicada pelo estilo de vida que levam. O país avança em seu próprio ritmo. Não existe nenhum grande centro empresarial, onde pessoas bem vestidas caminham apressadas. Smartphones ainda não ameaçam a essência da proximidade física nas relações interpessoais. Por conseguinte, o nível de estresse e ansiedade é baixo. A prestação de serviços é, grande parte das vezes, lenta e ineficiente, o que não chega a ser um grande problema. A passagem do tempo não indica que alguém está deixando de lucrar.




A Cuba pré-revolucionária nunca fora independente de fato. Cristóvão Colombo desembarcou na ilha em 1492, e em 1510 foi iniciada sua ocupação e colonização. Em 1550 a população nativa já tinha sido praticamente aniquilada por doenças ou pelo trabalho escravo. Entre os séculos XVIII e XIX, cerca de um milhão de escravos foram trazidos da África para trabalhar na indústria açucareira. Cuba logo se tornou a maior produtora mundial de açúcar. No fim do século XIX, José Martí começou a liderar revoltas anti-hispânicas. No entanto, o fim do domínio espanhol só se deu em um acordo entre a Espanha e os Estados Unidos, o Tratado de Paris. Em 1901, o primeiro presidente cubano foi eleito, mas a Emenda Platt garantiu aos Estados Unidos o direito de intervir no governo de Cuba. A independência não beneficiou a maioria da população: seguiram-se anos de governos tiranos até que, durante a ditadura de Fulgencio Batista, Cuba se tornou o paraíso do prazer e caiu nas mãos do submundo norte-americano.

A paisagem de Havana hoje é um retrato dos ostensivos anos 50. A mafia controlava cassinos em hotéis luxuosos e, para atrair jogadores, investia em atrações culturais e sexuais. Cuba viveu anos de intensa produção cultural, com imensos teatros, cinemas e casas de show, além de ter sido cobaia dos primeiros experimentos com produção televisiva. As festas regadas a drinques exóticos, charutos e performances eróticas eram do mesmo modo intensas. O negócio era lucrativo e tinha respaldo do presidente Fulgencio Batista. Os patrocinadores, além dos mafiosos, eram os magnatas do açúcar. Após a revolução e conforme Fidel Castro tendia ao comunismo, as possessões na ilha acabaram, assim como a criminalidade associada ao prazer. Seguiu-se então o embargo econômico dos Estados Unidos, que fez Havana literalmente parar no tempo. Carros americanos clássicos, da época em que o rabo de peixe era a grande inovação do design automotivo, desfilam pelas ruas. Já as inovações arquitetônicas pararam pelo art déco. A experiência de estar em Havana deve ser próxima a de voltar no tempo.

A mágica de estar em Cuba, contudo, é descobrir que o mundo está repleto de sonhadores. O destino da ilha sempre esteve atado à cotação do açúcar. "O povo que compra manda, o povo que vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer morrer vende para um só povo, e o que quer salvar-se vende para mais de um", disse o herói nacional José Martí, e repetiu Che Guevara na conferência da OEA em Punta del Este, em 1961. Cuba era submissa ao imperialismo norte-americano; como disse Eduardo Galeano, o açúcar era o punhal e o império o assassino. É difícil acreditar que em um país no qual a ingerência norte-americana era garantida por lei, um grupo de guerrilheiros iria tornar concretas as promessas de justiça social. A revolução, é claro, não é nenhum passeio: a redistribuição de riquezas aumentou consideravelmente as necessidades de consumo, ao passo que a produção não pode acompanhar o crescimento na mesma proporção. Cuba sofre com escassez de produtos básicos, como frutas, comida, roupas e objetos de higiene pessoal, mas essa escassez é oposta àquela que amargam os demais países latino-americanos.





Por três dias seguidos tomei café da manhã no mesmo lugar. O prato que eu pedia era sempre o mesmo: sanduíche de ovo, presunto e queijo, acompanhado por duas opções de suco, abacaxi ou mamão. As opções de suco em nenhum dos dias coexistiram. Em apenas um dos dias havia o sanduíche completo. Em um faltou ovo, e no outro, presunto. Nos restaurantes, os cardápios vinham com diversas opções de refeição, mas era comum o garçom avisar a falta de um ou outro produto. Quase sempre, apesar de cardápios com opções diversas, as opções se resumiam ao mesmo de sempre: arroz, feijão, verduras e uma opção entre frango, porco e peixe. Não existe fartura, os pratos são modestos, mas todos os cubanos chegam ao final do dia de barriga cheia. O consumo é de todos, não de poucos.

O trabalho não é fomentado por pressão, os cubanos trabalham sem o temor do desemprego. Desde o fim da União Soviética, contudo, a ilha passa por graves problemas financeiros e algumas reformas foram feitas dentro da estrutura socialista. Cuba se abriu para o turismo, que hoje representa a maior fonte de recursos para o país. Todos procuram, a sua maneira, viver do turismo, um dos cursos mais concorridos nas universidades cubanas. Quem tem carro vira taxista, quem tem disponibilidade aluga quartos, quem tem lábia aplica golpes, quem é músico vive de gorjeta, quem pode, pede. O turismo sexual também tem um grande apelo no país. Todos tentam tirar algum proveito dos turistas. Chega a ser abusivo: preços acima e qualidade abaixo do padrão mundial. Estrangeiros não podem usar os mesmos ônibus ou se hospedar nos mesmos hotéis que os nativos. As moedas também são diferentes. Estrangeiros usam o peso convertido, cotado tal qual o dólar americano, e cubanos usam o peso nacional, de valor cerca de 25 vezes inferior. Com o aumento do turismo, Cuba sofreu drásticos impactos sociais e culturais. Está surgindo uma nova classe de ricos, que conseguiram prosperar com o turismo e iniciar negócios privados. Em um país onde o custo de vida é baixíssimo e a média salarial é de 20 dólares mensais, não é preciso de tanto para fazer fortuna.

Cuba, enfim, não é um paraíso socialista nem, tampouco, um inferno comunista. É um país que escolheu andar por conta própria e sofre, com humildade, as consequências dessa escolha. É um país de gente que quer viver melhor sem que para isso se sobreponha interesses particulares aos coletivos. É o país daqueles que impuseram uma das maiores humilhações aos poderosos Estados Unidos da América; de quem derrubou aviões ianques e fez deles peças de museu, de quem descarrilhou trens blindados, de quem invadiu e fuzilou o palácio de um ditador sanguinário. É um país que ensina que a pobreza só existe se puder ser comparada com a riqueza. É um país cuja História parece um conto fantástico, mas não é. Eu estive lá e vi que não.