domingo, 22 de outubro de 2017

Pé na areia, Epílogo

Francisco falava pouco ou quase nada. Andava muito a minha frente e, por mais que eu tentasse apressar meus passos, não conseguia diminuir a distância entre nós. Ele conhecia melhor a linguagem do mundo do que a língua portuguesa. Eu queria me comunicar com ele, mas ele parecia em um nível mais elevado, incompreensível para mim. Seu silêncio era denso, me perturbava. Contemplava a radiação emanada da Lua, o som do vento arrastando areia, o balé das águas. Em alguns momentos ele segurava a caminhada, com um gesto, e permanecia em silêncio. Saía do caminho sem dar explicações e indicava que eu deveria esperá-lo ali. Ele colhia ervas, guardava uma parte no bolso. A outra parte, triturava na mão, retirava um papel de seda e tabaco de outro bolso, acendia um cigarro. Nesses momentos, enquanto eu o acompanhava com o meu olhar, tentava, assim como ele, decifrar os sons dos lençóis que entravam em meus ouvidos. Eu o perdia de vista, mas sabia que estava mapeado em sua cabeça: ele conseguia rastrear a presença de qualquer ser em suas imediações. Podia buscar minha presença assim como buscava ervas nas raras formações vegetais da região. Tinha, enfim, uma visão integral, um entendimento geral de todos os fenômenos a sua volta. 

Compreendi, assim, a distância que imperava entre nós. Eu era um homem alheio aos lençóis, um estranho, que não sabia me comunicar com aquela paisagem deslumbrante. Ele detectava minha presença, mas seu radar acionava um alarme de elemento estranho.

Ele me guiou até Santo Amaro. Quando chegamos, ele não descansou. Despachou-me em uma pousada e disse que iria voltar para Queimada dos Britos a tempo do jantar. O Sol estava forte. Ele não sentia nenhum um tipo de pesar pela longa caminhada até ali. Pelo contrário, estava disposto a refazê-la pelo caminho inverso. Ele era capaz de passar todas as horas de Sol do dia e mais um pouco andando sozinho pelos lençóis. Despediu-se de mim como quem acabara de entregar uma mercadoria a um cliente. Agora ele poderia andar pelos lençóis em completa paz, sem presenças estranhas, conversando, ao seu modo, com a areia, as plantas, a água, o vento e os animais. Ele era um homem completo, estava em casa.

Todo homem que anda, em última análise, está tomando o caminho de volta para a casa. Andamos porque queremos abraçar o mundo e tê-lo, ele todo, como casa. Queremos encontrar nosso lugar nele, nosso lugar de conforto, aprender a viver tendo a paisagem como melhor companheira. Aventuramos-nos em uma travessia para poder ter aonde chegar ao final do dia. Saímos do conforto do lar para descobrirmos como ambientes desérticos podem ser confortantes. Uma rede presa entre dois troncos é uma casa, uma cabana é uma casa, uma fazendinha é uma casa, uma pilha de areia é uma casa, um desejo realizado é uma casa. Em casa foi onde me senti quando concluí a travessia. Tirei tudo o que eu vestia para tomar uma ducha e me espreguiçar sobre uma rede. Finalmente, senti-me em casa quando percebi que sentia saudades ao reconstruir os meus passos mentalmente.


A saudade me moveu adiante. Eu começava a deixar minha casa alegórica para partir para minha casa real. Santo Amaro era um núcleo urbano, mas se encontrava, ainda assim, isolado. Nas margens dos lençóis, a via asfaltada até a estrada ainda estava em construção. Apenas veículos tracionados conseguiam fazer aquele trajeto. Entrei em um jipe que fazia o papel de transporte coletivo da cidade e fui conduzido até uma pequena parada na beira da estrada. Uma nova aventura foi proposta a mim quando descobri que o jipe não me deixaria aonde eu precisava chegar. Eu ainda teria que andar mais dois quilômetros até outra parada, de onde eu pegaria um ônibus de volta para São Luis - esse ônibus trazia de Barreirinhas algum dos meus pertences que eu não levei para a travessia. 

Nem sempre o caminhante pode abstrair das dores do corpo. Quando temos uma meta, podemos desfrutar dela enquanto deixamos as dores em segundo plano. Nos lençóis não havia espaço para padecimento. Eu estava encantando com um cenário novo, com seres humanos incríveis, procurando aprender algo entre eles. Quando eu soube que não precisaria mais caminhar longas distâncias no próximo dia, deixei que meu corpo se tornasse dolorido. Foi inglório descobrir que, naquele estado, ainda precisaria andar até o ponto do meu ônibus.

Mesmo as situações inesperadas podem nos trazer gratas recompensas. Comecei a caminhar assustado. No acostamento da estrada, mochila nas costas, sandália nos pés, cabelo ao vento. Agora eu caminhava em terreno sólido, mas queria a areia de volta. Estava de costas para o trânsito, discutia comigo mesmo se eu deveria pedir carona. De carro, dois quilômetros seriam logo ali. Preferi seguir a pé. Atravessei para andar de frente para os carros que se aproximavam. Foi a primeira vez que caminhei  na estrada, e esse momento será sempre para mim inesquecível. As velocidades pareciam altíssimas, eu estava totalmente fora do compasso e só conseguia ver um borrão do que pretendia ser um automóvel. Os caminhões primeiro passavam por mim. Depois vinha o seu som. Em seguida o vento. Por fim, gotículas de água do asfalto umedecido. Cada evento tinha a sua entrada triunfal. Cada um tinha o seu momento, não podiam acontecer juntos para que a energia de um não ricochetasse sobre a de outro. Um acontecimento lindo, não da natureza dessa vez, mas da engenharia das invenções humanas. Que belo contraste. Mal podia aguardar pela minha próxima louca aventura sob o céu.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Pé na areia

Que sensação é essa de estar se afastando das pessoas, até que delas, ao longe, na planície, você só consegue distinguir minipartículas, dissolvendo-se na vastidão do infinito? — é o mundo que nos engole, é a despedida. Mas nos inclinamos à frente, rumo à próxima aventura louca sob o céu.
Jack Kerouac, On the Road 

Meu marco zero era o quilômetro zero da BR-135. Eu estava com 14 kg de mochila nas costas e ia desde o aeroporto de São Luis do Maranhão até o terminal rodoviário. Dentro de uma hora e meia saía um ônibus para Barreirinhas, destino parcial da travessia que eu estava prestes a fazer nos lençóis maranhenses. Pedindo informações aqui e acolá, fui recorrentemente desencorajado a seguir a pé, por riscos de assalto. Quando tudo o que temos está apoiado sobre nossos ombros, quando a mochila é uma extensão do corpo, devemos nos precaver.

Saltei do ônibus, cheguei à rodoviária e lá tive o primeiro longo diálogo da viagem. Foi em uma lanchonete, com uma senhora conhecida por Toninha. Experimentei um pouco da receptividade do nordestino. Ela falava, eu ouvia, e rapidamente a conversa rumou para assuntos íntimos como família, sexualidade e dinheiro. Ela contou de seus diversos parentes de diversos subúrbios e sertões do Brasil. Pernambuco, Ceará, Favela da Rocinha. Falou de seu período em Pernambuco com um companheiro que, por receber apenas 400 reais de salário, era um peso para ela. Contou de sua filha, que por lá ficou, com o rapaz com quem descobriu o amor. Conversava sobre localidades de São Luis ignorando o fato de eu estar há apenas uma hora na cidade. Aclamava os produtos maranhenses que costumava enviar para filha, a tapioca, a cachaça e o Guaraná Jesus. Era hora de se despedir e embarcar no ônibus, que já recebia passageiros. Saí apressado.

Na rotina, a paz está em cumprir horários, completar tarefas, ter a sensação de estar em dia com todos os nossos afazeres. Para isso, contudo, nos entregamos a prazos falsos e urgentes, não descansamos nossa mente por um instante; a quietude, paradoxalmente, só vem quando encontramos algo explícito com o que se preocupar. Apenas na estrada, em horários não estabelecidos, conseguimos atingir um estado de paz permanente.

A viagem no ônibus para Barreirinhas foi longa. Muitas paradas, muitas entradas e saídas, encontros e despedidas. Enquanto a estrada me engolia, direcionava meus pensamentos para o planejamento de minha trilha. A ideia era simples: na minha mochila eu levava roupa suficiente para quatro dias de caminhada nos lençóis, uma câmera fotográfica, um livro, panelas e comida. Faltava o condutor. Eu havia tentado entrar em contato com alguns para a travessia, mas a comunicação não é tão eficiente nos lençóis maranhenses. Uma troca de mensagens podia demorar cinco dias, tempo em que os condutores estavam em incursão no parque. Como eu descobriria mais tarde, existem grandes comunidades que vivem dentro dos lençóis e que estão a até um dia de caminhada da cidade mais próxima. O contato com o lado de fora depende de rotas que nem sempre podem ser percorridas com veículos, cujo pneu em contato com a areia deixa marcas e rabiscos sobre a aparência magistral das dunas.

Foi na parada para um café na estrada que tive o segundo longo diálogo da viagem, que resolveu o último dos meus problemas. Fui abordado por um rapaz de minha idade, feições indígenas e que se apresentou como Coreano, apelido que recebeu em razão de seu olho puxado e pele morena. Morador de Barreirinhas, havia ido a São Luis prestar um concurso e estava voltando para casa. Disse que havia notado o tamanho de minha mochila, perguntou se eu estava indo fazer a travessia dos lençóis e me ofereceu seus serviços de guia. Seu preço era 200 reais mais barato do que o do único condutor com o qual eu conseguira estabelecer um mínimo de contato. Voltamos para o ônibus e seguimos viagem juntos, em assentos lado a lado. Conversamos bastante sobre o roteiro da trilha, sobre a geografia dos locais por onde passávamos, sobre a Lua cheia que apareceu naquela semana. Agora eu tinha um guia.

Chegamos por volta das 20h em Barreirinhas, e iniciaríamos a trilha às 8h do dia seguinte. Comecei a organizar as últimas pendências. Fomos ao mercado, onde comprei uma batata-doce para complementar minha dieta na travessia e alguns chocolates que me serviriam como lanche rápido nas caminhadas. Arranjamos um barco para nos levar até o ponto de início da caminhada, em Atins. Fomos ao banco sacar a reserva financeira de emergência. Depois fui ao hostel, no que se configurou como minha única caminhada pelo núcleo urbano de Barreirinhas. A cidade é a maior da região dos lençóis e, apesar de um pouco afastada do parque, não deixa de estar sujeita às intempéries causadas pelo movimento de massa. Logo na entrada, uma enorme área em que se encontra uma duna é isolada com muros de concreto. De tempos em tempos a areia avança sobre os muros e causa fechamento das vias de acesso à cidade. É necessário um permanente trabalho de remoção de areia. Em estações mais agressivas, a areia pode invadir e destruir habitações. A cidade margeia o meandrante Rio Preguiça, que também traz sedimentos que se depositam sobre a área urbana. Forma-se uma nova duna bem na beira do rio. Essa duna compõe a região de lazer da cidade; funciona como uma praia fluvial e é onde se concentram o comércio e os restaurantes.

Viajar nos convida a fazer um exercício de desprendimento. Quando cheguei ao hostel e sentei na cama, a última em que eu dormiria pelas três próximas noites, percebi que precisava reduzir peso dos 14 kg de mochila que eu tinha. Chegar naqueles 14 kg, na ocasião que eu estava saindo de casa para embarcar em um avião para São Luis, já tinha exigido de mim uma longa reflexão sobre o que realmente teria valor para mim na viagem. Tal reflexão não fora suficiente, e eu precisava passar por uma nova provação. Boa parte do peso, é verdade, era em razão de água e comida, que são consumidas ao longo da jornada. Eu sabia que não precisaria levar barraca e saco de dormir; os pernoites seriam em redes na casa de nativos. Comecei removendo a bota de caminhada, a conselho do guia. Nas dunas e lagoas, se anda descalço. No máximo se usa um chinelo ou meias se a areia estiver muito quente. De roupas, levei apenas a que ia no corpo e uma muda de roupa seca para passar a noite. Roupa molhada era estendida na mochila e secava durante a caminhada. Uma capa de chuva cumpria a função de vestimenta de frio. Não era necessário nada além disso. Mesmo durante as noites, as temperaturas eram amenas. O que fazia um peso indigesto eram as louças: uma panela para cozinhar macarrão, uma frigideira para fritar linguiça, prato e talher.

Com a mochila pronta e agora com alguns quilos a menos, estava cedo de pé no dia seguinte para iniciar a travessia dos lençóis. Dirigi-me ao cais de Barreirinhas, e o grupo para expedição, então composto apenas por mim e pelo guia, ganhou uma nova integrante: o Coreano resolveu levar sua namorada, Oceline, para a caminhada nos lençóis. O grupo estava completo e começamos a navegar pelo Rio Preguiça. Existem alguns pequenos povoados que vivem às margens do rio, e funcionam como pontos de parada para quem se dirige a Atins, cidadezinha que fica bem na foz do rio. Vassouras abriga os pequenos lençóis, região de dunas, lagoas e manguezais habitados por adoráveis macaquinhos. Mandacuru é uma vila de pescadores com um farol de onde se pode avistar o deságue do Rio Preguiça no Atlântico e uma pequena parte da imensidão dos lençóis maranhenses, assim como a vegetação que os circunda.





Desembarcamos na praia de Caburé, trajamos a mochila e começamos a caminhada até Canto do Atins. Foi quando meu pé tocou na areia, e nela afundou, pela primeira vez. Como uma iniciação em um terreno diferente, no primeiro dia caminhamos por quatro quilômetros à beira mar. O caminho passava por áreas pantanosas, e logo descobri que o melhor jeito de se andar por ali era, de fato, descalço: a sandália encharca, e a areia que nela gruda, em contato com a pele, prejudica o andar. A paisagem indica que estamos entrando em um mundo deserto. A vegetação logo vai dando lugar à areia, os animais surgem com pouca gordura e avulsos, desconexos de seu lugar no mundo.

O primeiro pernoite foi em um restaurante na praia. Chegamos por volta das quatro da tarde e, antes do pôr do sol, arrisquei-me a andar até perder o restaurante de vista. Buscava meu contato pleno com os lençóis, sozinho, despido. Os 155 mil hectares de parque são uma ironia, um ultraje à nossa tola civilização. Tudo ali é formado pela poeira vital do mundo, por tudo o que mais pode existir de bruto no planeta, pela matéria prima da vida, por terra, areia e ar, os elementos essenciais, que se movem, têm força, estão em mutação, se aglomeram formando dunas e lagoas, se chocam entre si. O que não é chão é céu, e nessa dicotomia meu corpo não tinha lugar. Era eu ali, misturado, de algum modo, em algum lugar entre o chão e o céu, mas sem posse nenhuma sobre nada, nem sobre os membros do meu corpo.

Do duelo entre a água e a areia, surge uma imensa rede de dunas preenchidas por lagoas de coloração de tons que variam entre verde e azul. A água fica aprisionada nas sucessivas zonas de baixo relevo das dunas, imprimindo no solo as feições de um lençol amarrotado. Algumas lagoas acumulam volume tão grande de água que se transformam em verdadeiros rios, com forte fluxo d'água e vida marinha. A natureza mostra como ser bela e fascinante com tão pouco requinte.



Embora os lençóis maranhenses tenham o aspecto de um deserto, a pluviosidade é bem alta, e minha primeira noite foi marcada por uma tempestade. Em uma área anexa ao restaurante existia um redário, onde os caminhantes podiam pernoitar. Durante a noite acordei com os pés molhados. Amanheceu e a chuva continuava. A saída para o segundo dia de caminhada seria às seis, já era meio dia e a chuva persistia. Para não atrasarmos a chegada ao ponto de parada da segunda noite, usufruímos do principal meio de transporte usado pela população local para percorrer a região: o quadriciclo. Esses pequenos veículos off-road percorrem com facilidade as dunas e os cursos d'água do parque. Juninho, um nativo dos lençóis que trabalhava com o transporte de passageiros entre Atins e as praias e lagoas mais isoladas da região, foi nosso condutor. Em um único quadriciclo éramos quatro, dispostos nos espaços que não eram ocupados pelas mochilas. Motorizados, percorremos, assim, dez dos quase trinta quilômetros de caminhada previstos para o dia.

Desembarcamos do quadriciclo em um pequeno aglomerado de cabanas de pescadores. Foi meu primeiro contato com os fantásticos moradores dos lençóis. Tão essencial como as rochas no deserto, são essas pessoas no deserto da história. Finalmente eu aprenderia algo entre tais homens que, ali para mim, pegando emprestado as palavras de Kerouac, seriam a origem, a força essencial da humanidade, primitiva e chorosa que se estende como um cinturão ao redor da barriga equatorial do planeta. São humanos desertos que buscam abrigo no vasto deserto do mundo. A força que descobriu como viver em terras longínquas, que domesticou os recursos disponíveis em seu favor.

Vivem em cabanas feitas de palha e passam longas temporadas de pesca imersos nos lençóis. São famílias inteiras, símbolos do milagre da vida. Há a criança, a mãe que cuida da criança, a força de trabalho, o ancião. Se alimentam sobretudo de carne de cabra e peixe. Dormem em redes e pisam na areia. Quase tudo o que possuem na cabana são instrumentos de trabalho: facões, peixeiras, redes, linha e anzol. Dispõem também de algumas embarcações. Aprenderam, incrivelmente, a se orientar nos lençóis, lugar de paisagem maleável e de isolamento. O tom de pele é escuro, e eles são adaptados a viver com tão pouca sombra. Quando o Sol está em seu pico no dia, eles se retiram para as cabanas. Longe da moradia, também existem cabanas construídas em locais estratégicos, para um repouso do Sol nos momentos de trabalho.

Vi, assim, o rosto do brasileiro, ao passo que começava a deixar a praia e tomar meu rumo para o interior do parque. Quem habita os lençóis são os descobridores, exploradores e conquistadores dos sertões do Brasil, os verdadeiros brasileiros, como diz Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, especialmente brasileiros mestiços, mamalucos, unidos aos primitivos indígenas da terra. O sertão do Brasil foi descoberto e revelado à Europa por brasileiros e americanos, não por europeus.






Após ter sido convidado a entrar em uma das cabanas e ter passado um tempo com os pescadores, precisei voltar para a trilha. A chuva atrasou o roteiro, e é sempre recomendável chegar ao próximo pernoite antes de escurecer. A travessia havia começado no deságue do Rio Preguiça no Atlântico e seguido todo o caminho do mar até aqui. Agora deixaríamos o mar e adentraríamos nas profundezas dos lençóis maranhenses. Meu ânimo estava renovado por encontrar a pequena comunidade de pescadores. Esse encontro me resgatou o sentimento de socialização - tão necessário para a espécie humana - em um ambiente de retiro, em que quase não se encontra ninguém.

Conforme nos afastamos do litoral, a areia vai ficando mais fofa, impondo maiores desafios à caminhada. O pé afunda, deixa pegadas que são apagadas, aos poucos, pelo vento. Sentimos uma carga maior sobre os pés, que insistem em querer ficar presos ao solo; a passada tem no chão arenoso um adversário. Ao peso do corpo adiciona-se o da mochila. Quando o Sol bate, não há nada, uma árvore, uma pedra, que possa proporcionar sombra. Quando paramos por um instante e olhamos para trás, vemos que andar pode nos levar muito longe - as pegadas vão desaparecendo no horizonte. Quando olhamos para frente, é muito difícil supor qual o caminho seguir. Instrumentos de localização por satélite podem te dizer onde você está e aonde deve chegar. No entanto, não mostram o melhor jeito de transpor as dezenas de lagoas que surgem pelo caminho. Algumas podem ser atravessadas a pé: nesse caso, se retira a mochila das costas e a carrega sobre a cabeça - a água pode chegar até a altura do peito. Outras, por serem muito fundas, largas ou por terem muita correnteza, precisam ser contornadas pelas beiradas. Ao atravessar a lagoa, o solo, embebido de água, torna-se movediço, e o pé pode ser completamente soterrado até a canela. Não há trilha, não há caminhos, não há sinalizações, apenas o conhecimento de mundo de um condutor nascido na região.





Em um determinado momento da caminhada, já escurecendo, começaram a surgir árvores e arbustos. Estávamos chegando a Baixa Grande, um verdadeiro oásis nos lençóis. O cenário muda inesperadamente, a água e areia ganham a companhia de plantas. No solo de areia pouco consolidada se fincam raízes, e a vida ali se prospera. Esses pequenos ecossistemas abrigam famílias que vivem ali há gerações e transmitem o vasto conhecimento necessário para se viver em lugar tão inóspito. São camponeses, ou sertanejos, criadores de cabras e galinhas, agricultores familiares que bebem água de poço e retiram dali o que precisam. Estão muito afastados dos núcleos urbanos e hoje complementam sua renda abrigando os forasteiros que se aventuram na travessia dos lençóis. Vivem em aglomerações bem estruturadas, com geradores de eletricidade, fogão a gás e quadriciclos para melhorar o intercâmbio com as cidadezinhas do entorno do parque. 

Existem dois oásis na região, Baixa Grande e Queimada dos Britos, distantes dez quilômetros um do outro. Tive um pernoite em cada um. Cheguei à noite em Baixa Grande e fui muito bem recebido por Dona Dete, uma senhora que viveu ali a vida inteira. Havia um banheiro onde pude tomar banho e recebi uma rede em uma palhota para dormir, como os moradores dos lençóis costumam fazer. Comecei a fazer meu macarrão para a janta, e Dona Dete achou meu modo de preparo bastante curioso. Nesse momento percebi que trouxera mantimentos em excesso para a travessia e dei a ela um pacote de tapioca. Ela achou mais curioso ainda o modo como já a vendem pronta em supermercados e me explicou como fazia artesanalmente. Conversávamos então sobre as diferenças de nossas vidas, até que me retirei para dormir e recebi instruções de como repousar adequadamente à rede, de modo a evitar as temíveis dores nas costas.

No dia seguinte saí cedo em direção à Queimada dos Britos. A caminhada era curta, mas o caminho impunha suas dificuldades. Havia longas subidas, seguidas por longas descidas de dunas. Nesse dia também enfrentei o Sol quase equatorial a pino. Até então as caminhadas se deram em Sol baixo e até com chuva. Dessa vez, porém, fomos sem pressa, acordamos tarde, tomamos um café da manhã preparado por Dona Dete. Sabendo da ferocidade do Sol, nos programamos para chegar em uma gigantesca lagoa próximo ao meio dia. E assim seguimos, deixando o mínimo de partes do corpo expostas. Coreano se enrolou em uma canga. Eu usava chapéu, óculos escuros, calça e mangas longas. De fato, próximo ao meio dia, enquanto o Sol mostrava seu lado mais agressivo, chegamos a uma esplêndida lagoa. Com poucas opções para me proteger, passei mais de uma hora mergulhado nas águas.




Em Queimada dos Britos fomos recebidos por outra família tradicional dos lençóis maranhenses; tradicional a ponto de incorporarem, aos seus nome, Queimada, em referência ao local de nascimento. Esse oásis era maior e abrigava mais famílias, formando um pequeno povoado. Logo na chegada foi possível ver casas destruídas pelo movimento da areia. A natureza tem sua força descomunal, pode nos engolir com uma extrema facilidade. Reforça, de tempos em tempos, que nada que construímos é durável. O morador dos lençóis é convidado ao nomadismo, seu movimento deve acompanhar o movimento das dunas. Dada a disparidade de poder, é impossível que um movimento se oponha ao outro. A areia dos lençóis é onde pisam, onde desenvolvem suas atividades, mas também pode ser sua penitência. As casas são simples, feitas de palha, de fácil destruição e reconstrução, imitando a ordem da natural das coisas. Proporcional à força da natureza é, contudo, a coragem de quem vive nos lençóis.

Dona Joana era a matriarca da família e gostava de contar histórias dos caminhantes que recebe em sua casa. Desolada em um oceano de areia, sua casinha virou um ponto de encontro global, cosmopolita, multicultural. O mundo vem até ela e chega a pé. Ela fala sobre franceses, alemães, holandeses, espanhóis. Compara seus hábitos com os dos brasileiros que recebe, enquanto mostra o que ganhou de cada visitante. Contou-me, com orgulho, de quando sua casa serviu como suporte para a gravação do filme Casa de Areia, com atuação das Fernandas Torres e Montenegro. Mostrou fotos, mapas, registros. Tomei uma cerveja e joguei cartas com seu marido. Usei sua cozinha para preparar minha janta, e ela adicionou ao meu insosso macarrão com linguiça e batata temperos que retira de sua própria terra. Era meu último dia com os moradores dos lençóis,.

O próximo dia seria o derradeiro e o mais desafiador da travessia. Eu deveria acordar às três da madrugada para chegar a Santo Amaro - destino final - antes do meio dia. Seriam 28 km de caminhada, em areia fofa, com minha nuca castigada pelo sol, minha panturrilha mostrando sinais de fadiga, meu calcanhar dolorido por pisar torto. Precisava suportar as dores do corpo e focar no imenso caminho que se esticava diante de mim. A mochila deveria ser a mais leve possível. Deixei com Dona Joana não somente os mantimentos que continuavam em excesso, como parte das panelas que não me fariam falta depois da trilha. Coreano e Oceline iriam aproveitar um pouco de suas férias em outras direções dos lençóis, e Francisco, membro da família Queimada, me guiou até Santo Amaro.

Quando acordei de madrugada primeiro vi a total escuridão. Acendi a lanterna e minha vista estava embaçada. Vesti a roupa, tomei o café da manhã que Dona Joana deixara pronto. Peguei a mochila que já estava arrumada desde o dia anterior, encontrei o Francisco e partimos sempre a oeste em direção a Santo Amaro. Minha vista foi então se clareando e o uso de lanterna não se fazia mais necessário. Pensei que meu olhar se adaptara à escuridão, mas, na verdade, nosso caminho era iluminado pelas estrelas e por uma esplêndida Lua cheia. Muitas vezes vi a Lua, mas nunca como essa. Nunca ela tinha sido para mim fonte de luz e sabedoria. Podia olhar para ela sem que minha visão ardesse. Podia deixar sua luz me tocar sem me causar queimaduras. Ela nunca havia iluminado minhas noites escuras. O homem foi até ela e trouxe areia, a mesma que eu viera buscar nos lençóis.

A Lua me hipnotizou e eu me tornei sua refém. Ela conhecia meus desejos e segredos, como se estivesse invadindo os meus sonhos mais profundos na quietude da noite. Era suave, linda, brilhava em esplendor. Encontrei na Lua o que não encontrei no fluir da água, no soprar do vento, no resplandecer da areia. Ela era cheia: cheia de magia, cheia de sabedoria. Parecia ter todas as respostas, mas só oferecia novas perguntas. Quando o Sol da manhã surgiu tímido, meu corpo chorou sua despedida. Restava ainda metade do caminho, mas para mim a travessia se encerrou ali. Eu estava no topo de uma duna observando a longa projeção da minha sombra no chão. Meu coração se enchia de felicidade, eu havia encontrado um tesouro escondido.

domingo, 2 de abril de 2017

São Thomé das Letras

O viajante é antes de tudo um colecionador de memórias. Mas memória não pode ser guardada. Ela se projeta no papel, em fotografias e experiências; repetimos o que dá certo e deixamos de fazer o que dá errado. Viajo porque preciso de novas experiências e escrevo porque minhas memórias transbordam no papel, onde deixam de ser abstratas e podem ser colecionadas. Escrevo porque sinto que preciso registrar minhas memórias, quando acho que algo precisa ser dito, quando ideias vêm a minha cabeça e não quero perdê-las. 

Escrever é sobretudo o modo que encontro para colecionar minhas memórias. Também escrevo por prazer. Viajo por mais prazer ainda. Prazer: este não é um texto sobre memorar ou viajar, mas sobre ter prazer. Menciono a viagem porque tudo começa quando viajo. Menciono a escrita porque é como atribuo significado às memórias das minhas andanças. Mas não haveria nem viagem nem escrita sem o prazer.

Foi justamente viajando (ou como tudo começou) que conheci um lugar onde se vive por prazer. Lá qualquer habilidade, qualquer passatempo, vira meio de vida. Muitos vão de passagem, mas chegam e fazem dali seu lar. Não há salário, mas colaboração. Não há obrigação, mas gratidão. Não há serviço, mas comunhão. É o lugar dos desviantes, que sentem que seus valores não são os mesmos da sociedade em que vivem, mas que convergiram para um microuniverso onde suas utopias podem ser realidade.

Um senhor tenta relacionar padrões de arte rupestre com equações de ondas eletromagnéticas. Para estabelecer a ponte dessa relação ele transita por conceitos como Efeito Casemir e autovalores que não se entrelaçam. O que ele diz não é inteligível, mas é dito com muita fé. Ele acredita com tanta paixão em sua teoria que passo a acreditar nele. Vai que o louco sou eu? Talvez eu não acredite em Deus, mas sei que Deus acredita nesse velho sonhador.

No meio-fio de uma das ruas de pedras tortuosamente reunidas da pequena cidade uma mãe divide um baseado de maconha com a filha em plena luz do dia. Um outro senhor se apresenta como bruxo depois de uma conversa estranha e diz que irá me lançar um feitiço de oblívio para eu me esquecer do que ele disse. Outro me lança uma magia negra porque lhe recusei uma esmola. Uma legião troca algum ofício por abrigo. Um sujeito caminha todo dia 17 km da cidade até a fazenda onde trampa. Depois faz o caminho de volta, com a maior serenidade. Lá se viaja de carona sem temor. Dívidas não há, o que existe é troca de gentilezas. O favor não é uma penitência, não causa uma relação de obrigação entre as partes.

Guardo lembrança dos lugares por onde passei e das histórias que ouvi. Agrego estilo de vida dos hedonistas, dos loucos, dos outsiders. Levo a sensação de que o mundo é muito mais fascinante do que se pode registrar com palavras. Aprendo que produzir ideias pouco usuais pode ser um dos tantos caminhos criativos de se seguir na vida.