quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Meu encontro com um campo de refugiados

A poucos quilômetros ao norte de Amã, o mundo chora o drama dos mais sofridos exemplares de seus habitantes. Ali fica o maior campo de refugiados do mundo, onde 150 mil sírios esperam o fim de uma guerra civil que já dura sete anos. O fim da guerra, contudo, é uma esperança vazia. O campo, concebido como uma estrutura temporária, evolui para uma grande, permanente e desordenada cidade, a quarta maior da Jordânia. As casas não possuem paredes de concreto, não há tubulação de água, o fornecimento de energia é apenas pontual, não há ruas ou vias pavimentadas. Os refugiados tiveram seus lares despedaçados e, se antes da guerra já tinham pouco, agora não possuem mais nada.

Saem em busca da libertação, mas encontram uma vida de cárcere. O campo é completamente cercado, sempre com altas grades e arame farpado no topo. Por motivos que não se compreende bem (o governo jordaniano afirma que por "segurança"), os refugiados são impedidos de deixar o local até que alguém decida algum destino para eles. Embora alguns burlem as regras, ninguém consegue ter uma renda própria ou determinar o próprio rumo de suas vidas; dependem totalmente de ajuda humanitária. O que acontece com os sírios é uma verdadeira diáspora dos nossos tempos, e muitos países, como a própria Jordânia, penam em receber ou ocupar todos esses miseráveis indivíduos, que vivem no completo marasmo, sonhando com dias melhores. 

O que se vê ao percorrer o perímetro do campo é a mais triste imagem da vida humana. Caminhões-pipa enchem reservatórios d'água, e, sem uma rede de encanamento, os refugiados devem buscar sua água no intenso calor do deserto. Por não haver ruas, automóveis não transitam dentro do campo, e muitos precisam caminhar longas distâncias para ter acesso a um bem tão essencial quanto a água. Alguns mais sortudos dispõem de bicicletas para locomoção, como um jovem garoto que tenta vender na beira da estrada colchões que recebe de doações. Esta, a propósito, é uma prática bastante comum: refugiados buscam converter as esmolas que recebem em mercadorias. Os campos verdes ficam mais largos conforme se deixa a Jordânia em direção à Síria, e, quem consegue, a despeito das proibições, deixa o vilarejo para trabalhar em fazendas da região. Os refugiados vivem em tendas de estrutura metálica, que podem ser erguidas com muita facilidade. Isso permite que o complexo aumente rapidamente de tamanho, sem que, no entanto, a infraestrutura melhore no mesmo ritmo. Famílias, quando não separadas pela guerra, dividem banheiros e cozinha. Apesar da grande atuação das Nações Unidas e de diversas ONGs, mal existe o mínimo para se viver. Para onde se olha, há dor, caos e desespero.

Muitas são as emoções que movem o nosso coração quando estamos diante da insuficiência. Suficiente é a qualidade do mínimo necessário para a vida humana, um limite acima do qual podemos nos concentrar em qualquer outra coisa além da nossa própria sobrevivência. Quando vemos situações de insuficiência, sentimos caridade pelo sofrimento alheio, ao passo que passamos a temer o desamparo e a desolação. Não é fácil ser observador da insuficiência: lidamos com sensações que podem ser nobres ou caprichosas, enquanto nos resta tentar nos colocar no lugar dos que levam uma vida escassa. A guerra rouba a humanidade das pessoas, as reduz a organismos buscando se adaptar - viver, afinal, é se adaptar. Onde existe fome, miséria e escassez, existe uma guerra que pode explicar todas essas mazelas. O homem passa a seguir regras sobrenaturais, alheias inclusive às Leis da Selva, em que, salvo em raras exceções, indivíduos da mesma espécie não matam seus iguais. Não há pena ou dor em matar, a bondade é condenada: que poder teriam os homens para concederem a si próprios uma qualidade tão divina quanto a bondade?

Essa tenebrosa guerra um dia deve acabar. Mas o que acontecerá com todos esses refugiados quando esse sonhado dia chegar? Como recomeçar a vida quando sua nação está devastada e suas raízes já não existem mais? Como deixar um lugar sabendo que, se algo der errado, não poderá voltar? Como encontrar uma direção quando não se tem lar, renda, estudo ou, mesmo, família? O que a nossa experiência na Terra diz é que todos se tornarão náufragos à deriva em um oceano incapaz de lhes fornecer uma vida digna e suficiente. O campo de refugiados provavelmente se transformará em um gueto, de onde a pobreza será transmitida de geração em geração, como já acontece com descendentes de refugiados palestinos na Jordânia.

A guerra pode parecer distante, mas é causada e fomentada por seres humanos como nós, educados para a ganância e ensinados a ter amor pelo poder. O mundo é regido pelo princípio orwelliano de que guerra é paz, isto é, de que somente a guerra pode trazer a paz, em um paradoxo que torna os dois conceitos indistinguíveis. Enquanto a guerra civil síria continuar com tanta indefinição, com tantas forças buscando ocupar o vazio de poder deixado pelo conflito, a miséria irá seguir se perpetuando em segundo plano até que, um dia, toda essa corrosão da vida humana será irreversível.