"Mas ele descobriu que a vida do viajante inclui muita dor em meio aos seus prazeres. Os sentimentos dele estavam sempre no limite e quando começava a mergulhar no repouso, via-se obrigado a abandonar aquilo em que repousava com prazer por algo novo, que novamente atraía sua atenção e que ele também abandonava por outras novidades."
Mary Shelley, Frankstein
"O grund é um país inteiro, vocês não sabem porque nunca lutaram pela pátria"
Ernesto Nemecsek em Os meninos da Rua Paulo
Quando li Os meninos da rua Paulo na escola, há muitos anos, apesar de todos aqueles nomes esquisitos, não lembrava de ser uma história húngara. Só me dei conta quando, caminhando pelas ruas de Budapeste, por acaso encontrei umas estátuas de uns meninos brincando de bolinha de gude. Não acreditei quando fiz a associação. Eu estava sozinho, e um senhor húngaro que não falava inglês percebeu o entusiasmo com o qual eu tirava fotos da estátua. Ele gentilmente fez gestos se oferecendo para tirar fotos minhas e indicou enfaticamente para que eu me posicionasse diante de uma estátua específica. Depois, me levou até uma placa com passagens do livro fixada em uma parede de tijolos e apontou o dedo para o nome de Nemecsek, querendo dizer que tal estátua representava o menor, mas mais valente menino da Rua Paulo, protagonista da história e tratado como um herói nacional. As estátuas, no entanto, diferentemente do grund que fica na esquina da Rua Paulo com a Rua Maria, estão a um quarteirão dali, na Rua Prater. Em meio aos edifícios apertados da cidade, o grund é um terreno baldio e cercado, onde os meninos brincavam à vontade e mantinham seu império de faz-de-conta; era uma representação do infinito e da liberdade, ao qual os rapazes juravam lealdade.
Reli o livro após novos ventos de mudança em minha vida soprarem em direção à Hungria. A história sobre a passagem de uma sonhadora infância para a dura realidade adulta é uma rara obra que consegue furar a barreira do idioma húngaro e se tornar um clássico da literatura universal - sem nenhum parentesco com as línguas indo-europeias, escritores que se servem do húngaro ficam restritos ao palco de seus conterrâneos. Nas entrelinhas do livro feito para os adolescentes de Budapeste em 1907 está um sentimento nacionalista exacerbado, sobre o qual me apoiei para tentar entender esse distante país que é a Hungria. Na época em que Férenc Molnar escreveu o livro, a industrialização preambular mudava os tradicionais costumes húngaros e transformava sua capital em uma metrópole inquieta. O autor se preocupava com os efeitos dessas mudanças sobre a juventude de seu país.
Budapeste é das mais belas cidades que existem no mundo. Em meus primeiros dias, fiz um passeio de uma tarde a Szentendre, uma colorida e charmosa cidadezinha a 40 minutos de trem da capital. Para pegar o trem, precisava ir à estação Batthyány tér. Sem estar preparado, fui pego totalmente de surpresa pela vista que se tem ao sair da estação: lá estava, do outro lado do Danúbio, o Parlamento de Budapeste, uma construção deslumbrante. Alguns dias depois, ainda sem me orientar direito entre Buda e Peste (no passado eram cidades distintas, cada uma em uma margem), fiz um passeio de bicicleta por toda a extensão do rio, dentro dos limites da cidade. Confuso sobre qual lado eu estava, enquanto procurava o Parlamento na margem oposta, acabei passando bem debaixo dele na margem em que eu pedalava. Novamente fiquei surpreendido pela visão e por seu incrível tamanho, agora olhando mais de perto. Essa sensação de espanto ainda se repetiria em outras vistas da cidade, como do alto, no Bastião dos Pescadores, ou durante a noite, quando ele fica completamente iluminado.
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Estátua dos Meninos da Rua Paulo |
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Parlamento de Budapeste |
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Estátua de Santo Estevão no Bastião dos Pescadores |
O Parlamento ficou pronto em 1904, três anos antes da publicação de Os meninos da rua Paulo. É um símbolo da soberania do povo húngaro, que apesar de sua história milenar, esteve durante a maior parte do tempo sob o domínio ou ameaça de alguma potência estrangeira. Os magiares, outro nome para a etnia húngara, se estabeleceram no território da Hungria no ano 900 e, por volta do ano 1000, foi fundado o católico Reino da Hungria. Em 1526 se iniciou um longo período de dominação otomana, que durou 150 anos até a conquista da região pelos Habsburgo em 1686, quando a Hungria foi incorporada ao Império Austríaco. Em 1848, no contexto da Primavera dos Povos, os húngaros lutaram pela sua autonomia do Império Austríaco até que em 1867 a Áustria cedeu e reconheceu a Hungria como um estado autônomo, em um sistema de Monarquia Dual, conhecido como o Império Austro-Húngaro. Nessa época, a própria Hungria negava o poder às outras nacionalidades dentro de seu território, como os eslovacos, tchecos e romenos. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Áustria-Hungria se dissolveu e o novo estado húngaro perdeu territórios como a Transilvânia, de maioria romena. Sem fronteiras territoriais claras entre as muitas etnias da região, muitos magiares se viram excluídos de sua pátria.
No entreguerras, após uma rápida experiência comunista inspirada pela Revolução Russa, e ratificado o desmembramento do Reino da Hungria, houve a restauração da Monarquia. A principal pauta política era reconquistar os territórios perdidos na Primeira Guerra. Com a deterioração econômica e social causada pela Grande Depressão, a radicalização à extrema-direita ganhou força. A Hungria se aproximou da Alemanha Nazista e fortaleceu as políticas de magiarização. A parceria com a Alemanha prometia a expansão territorial e permitiu à Hungria sair da recessão, à custa da promoção das políticas de Hitler, incluindo as referentes aos judeus. Férenc Molnar, autor de Os meninos da Rua Paulo, judeu, fugiu para os Estados Unidos em 1939 e morreu longe de sua terra, a qual engrandeceu com sua obra. Paulo Ronai, nascido Rónai Pál em Budapeste, também judeu, mudou-se para o Brasil em 1941 - ele é o tradutor do livro para o português. Entre 1890 e 1910, os judeus formavam não um pequeno contingente populacional, mas um grande setor da classe média, de 20 a 25% da população de Budapeste. Antes da Segunda Guerra Mudial, eram 800 mil judeus na Hungria, hoje, passados mais de 70 anos, são cerca de 80 mil. Derrotada na Segunda Guerra ao lado dos alemães, a Hungria passou ao controle soviético. A influência soviética durou de 1944 até a transição para uma democracia aos moldes ocidentais, por volta de 1990.
Sem dúvida, do ponto de vista dos húngaros, o passado soviético é o que mais traumas causou à memória coletiva da nação. A realidade é próxima: qualquer cidadão húngaro com mais de 40 anos tem lembranças da República Soviética, e a primeira geração que nasceu após o fim do regime recém chegou à idade adulta. Longe da região central de Budapeste, quase nos limites do município, fica o Memento Park, que me apressei em visitar tão logo tomei conhecimento de sua existência. Assim que as forças soviéticas deixaram a Hungria, a prefeitura de Budapeste retirou todas as estátuas alusivas ao regime de locais públicos e as reuniu em um parque-museu. O mês era fevereiro e fazia muito frio, o parque tinha uma atmosfera tenebrosa. Logo na entrada, havia uma reprodução em escala real das "botas de Stálin". Em um movimento revolucionário em 1956, manifestantes anti-stalinistas, que defendiam o que chamavam de Socialismo real, destruíram uma enorme estátua de Josef Stálin, de modo que só restaram suas botas. Nesse episódio, uma bandeira húngara com um furo no meio se popularizou entre os manifestantes. Como a atual, a bandeira da República Popular da Hungria era tricolor, com três faixas horizontais vermelha, branca e verde, mas tinha um brasão com a foice e o martelo no centro, removidos pelos revolucionários. O parque conta com mais de 40 estátuas de Lenin, Marx, Engels e de tantas outras que exaltam o proletariado, mas nenhuma de Stálin - essas não foram poupadas pela população.
Houve um concurso entre arquitetos para decidir quem projetaria o parque. O vencedor se apoiou em um conceito inspirado pelo poema de Gyula Illyés chamado A Sentence about Tyranny (Uma frase sobre a tirania), escrito em 1950 e censurado pelos soviéticos. A entrada do parque é uma enorme e colossal parede de 40 metros de comprimento, cuja porta central está sempre fechada. Apesar de uma fachada magnífica, o visitante não consegue acessá-la, tendo que entrar por pequenas portas laterais. Um caminho reto liga a entrada até um paredão que marca o fim do parque, simbolizando não ter caminho possível a partir dali. Essa reta é cruzada por três rotas em formato do símbolo do infinito, representando, nas palavras do arquiteto, "caminhos sem fim", que não chegam a lugar algum. No centro geométrico da composição, há, no chão, um arranjo de flores no formato da estrela vermelha de cinco pontas. O tom do parque é sobretudo de sátira e ironia: na entrada, uma lojinha vende produtos com piadinhas sobre os comunistas, e, ao lado, está exposto um carrinho Trabant, produzido na Alemanha Oriental e muito popular no lado oriental da Cortina de Ferro. O motivo de o carro estar ali é para fazer chacota com a indústria do bloco não capitalista. O Trabant era um carro pequeno, com pouca potência e produzido com fibras de plástico que sobravam da indústria têxtil e plástica da Rússia e Alemanha. Muitos desses carros do período comunista ainda podem ser vistos em Budapeste e eu os achava muito simpáticos; frequentemente parava para fotografá-los.
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Estátua de Lenin no Memento Park |
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Carro dos tempos do comunismo estacionado em Budapeste |
Distante do Memento Park, em um vistoso prédio na avenida Andrássy, chique Boulevard de Budapeste, está o Museu Casa do Terror, próximo a construções importantes como a Ópera e a Praça dos Heróis. O museu tem esse nome apelativo dedicado a retratar o período em que a Hungria esteve primeiro sob o domínio nazifascista e depois comunista. O prédio serviu tanto como sede do partido nazista do país (Partido da Cruz Flechada), quanto como sede da segurança estatal no período comunista - Escritório de Segurança Estatal (ÁVO) e depois Autoridade de Segurnaça Estatal (ÁVH). Dos seus quatro andares, o primeiro apresenta o período nazista e os outros três, o comunista. Tido como um dos principais museus de Budapeste, o visitante costuma sair de lá de fato horrorizado e tocado com tantas histórias de sofrimento do povo húngaro ao longo do Século XX. Com muitos recursos multimídia, a experiência, contudo, serve muito bem à propaganda política anti-comunista, sem um contraponto crítico.
Eu me questiono se o modo como os horrores do comunismo são retratados no museu e na memória coletiva da Hungria são visões legítimas de um povo que quer contar a sua própria história. Mas também sei que a História oficial é um terreno de disputa e costuma servir aos interesses dos que ocupam o poder. Tentativas de equiparação entre fascismo e comunismo são comuns entre pensadores liberais, que, sobretudo após o fim da Guerra Fria, se colocam como o centro democrático e moderado, em oposição aos extremos. Essa ideia ressoa no termo Totalitarismo, cunhado por Hannah Arendt. Como comparar um regime que institucionalmente se apoia na superioridade racial, racismo e xenofobia com um que quer promover a igualdade e a extinção de classes sociais? A Revolução Húngara de 1956 é tão importante para a Hungria que a data de seu início se tornou um feriado nacional. Imre Nagy, seu principal líder, era comunista da ala reformista do Partido Comunista Húngaro, que julgava que Stálin estava se desviando do projeto socialista marxista. Não houve, por sua vez, nenhum desvio ao projeto nazista originalmente proposto por Hitler. Mária Schmidt, historiadora e diretora do museu, é frequentemente criticada por seus pares por ser uma revisionista do Holocausto. Ela já publicou artigos conspiracionistas afirmando que a esquerda aumentou o número de judeus mortos e que a ocupação soviética fazia parte de uma "vingança" dos judeus contra os húngaros. Na seção de pessoas mortas pelo regime comunista, havia destaque aos que eram judeus, como que para mostrar que os comunistas também mataram judeus. Além disso, a despeito da figura de Imre Nagy, ela faz parecer que todos que lutaram contra o Stalinismo eram anti-comunistas. Como bem disse Thomas Mann: colocar no mesmo plano moral o comunismo russo e o nazifascismo, como sendo ambos totalitários, no melhor dos casos é superficialidade, no pior dos casos é fascismo.
No XX Congresso do Partido Comunista em 1956, o stalinismo foi duramente criticado. O culto à personalidade e uma série de crimes cometidos por Stálin e seus colaboradores foram denunciados. Informações que chegavam do leste europeu frustravam os marxistas ocidentais e serviam como instrumento de propaganda negativa aos liberais. Os regimes socialistas existentes estavam longe de ser o que eles gostariam que fosse uma sociedade dedicada ao processo de construção do Socialismo. No ocidente, o Socialismo voltou a ser uma esperança para o futuro muito insatisfatoriamente ratificada pela experiência prática. O mundo passou a relacionar o Marxismo única e exclusivamente ao que acontecia na União Soviética - pensavam que a única estrada que saía do Manifesto Comunista era a que terminava nos Gulags da Rússia de Stálin.
Com todos seus defeitos, fora a única iniciativa que lograra construir uma sociedade socialista, produzindo uma superpotência que foi um contrapeso ao capitalismo global. O mundo que surgiu na década de 1990, sem a contraposição do comunismo, combinando o globalismo e a geração de riquezas, aprofundou desigualdades e culminou na maior crise mundial desde a década de 1930. Nesse período, a Hungria deixou o Pacto de Varsóvia, ingressou na OTAN e posteriormente na União Europeia. A emergência do atual Primeiro-ministro Viktor Orbán, em 2010, em uma tendência política com diversos paralelos no mundo, colocou em cheque o modelo da democracia liberal ocidental. Projetando-se politicamente com discursos de salvação da Hungria cristã contra a imigração muçulmana, Orbán aumentou consideravelmente o seu poder, cerceou a imprensa livre e erodiu a independência do poder judiciário, atuando sempre com bases legais e usufruindo dos próprios instrumentos da democracia. Afirmou textualmente que o tempo das democracias liberais havia passado, dizendo ser seu Estado "iliberal". Em um país com forte sentimento nacionalista e com ostensiva propaganda anti-comunista, há um terreno fértil para uma nova ascensão da extrema-direita. A democracia liberal, em tempos de crise, permite que o fascismo se crie. Os discursos de intolerância religiosa e à diversidade sexual, tão caros à Orban, radicalizam a população e sempre são colocados como um mal menor, desde que a ordem econômica liberal seja preservada. Felizmente, o retrato da Hungria não é um retrato de Orban: enquanto sua base eleitoral é principalmente composta pela população mais velha do interior, a população jovem da cosmopolita capital clama por mudanças e mais tolerância às diversidades.
Muitos caminhos podem nos conduzir ao futuro. A democracia é amplamente considerada o melhor sistema político por garantir a liberdade, igualdade perante a lei e um estado de direitos, embora não tenha nunca alcançado plenamente esses ideais. No entanto, temos assistido ao crescimento da intolerância social em todo o mundo sob a justificativa do exercício livre de opiniões. Se uns dizem que é utópico pensar na construção de um estado socialista, eu digo que utópico é pensar que o mundo seguirá sempre como está. A ideia de uma economia totalmente planificada da União Soviética se mostrou falha, assim como a ideia de se entregar a sociedade humana ao mercado, supostamente autorregulador e maximizador de riquezas e do bem-estar. O Século XXI chega a sua segunda década, mas questões supostamente resolvidas no século anterior voltam à tona. O leste europeu, com tantas culturas, em uma região historicamente em disputa pela influência otomana, russa ou das potências ocidentais, representa muito dos desafios da humanidade para o futuro.
Durante minha viagem à Hungria, a Rússia invadiu militarmente a Ucrânia, no que foi considerado o maior confronto militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Vi muito medo na população, o florim húngaro se desvalorizando e refugiados ucranianos chegando nas principais estações de trem de Budapeste. Os medos dos tempos de ocupação soviética voltaram, e muitos julgaram que a Rússia podia estar tentado recriar a União Soviética. Entre as narrativas que permeiam essa guerra, muitas reverberam no passado recente húngaro: os russos acusam fascistas ucranianos de praticarem genocídio contra a população russa na Ucrânia e consideram a entrada da Ucrânia na OTAN como ameaça a sua segurança nacional. A Ucrânia, por sua vez, quer garantir a sua independência política pós-soviética e sua autodeterminação em seguir uma política externa pró-ocidente.
Sobre o que restou da ocupação comunista na Budapeste de hoje, acho que o mais notável são os conjuntos habitacionais que se tornam mais comuns conforme nos afastamos do centro histórico. Alguns podem dizer que são frios e feios, mas eu, acostumado a ver tantos moradores em situação de rua em São Paulo, os achei lindos. Construídos nos anos 1950, após Budapeste ter sido fortemente bombardeada na Segunda Guerra, com técnicas baratas de construção, o governo comunista rapidamente resolveu os problemas habitacionais da cidade - hoje, os países do leste europeu são os que possuem as mais altas taxas de moradores com casa própria no mundo. Muitos desses prédios, grandes blocos retangulares de concretos numerados e serializados, receberam intervenções artísticas.
No prefácio de Os meninos da Rua Paulo, Paulo Ronai conta como recebeu felizes mensagens de amigos que haviam reconhecido o grund em suas infâncias, em locais tão distintos quanto Belém do Pará e Pinhal. Um deles disse: O mundo é um só, pena que os donos da vida continuem a dividi-lo para proveito próprio. Quando eu era criança, também tive o meu grund e o meu grupo de amigos organizado em sociedades. Leitores de todo o mundo encontraram o seu próprio grund, pois, afinal, o mundo é um só, apesar dos donos do poder.
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Prédios construídos durante o regime comunista |
Ideias sobre marxismo nesse texto foram baseadas em: Eric Hobsbawm: Como Mudar o Mundo - Marx e o marxismo