sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Buen Camino: um relato sobre o Caminho Português da Costa para Santiago de Compostela

Deu ordem para não levarem nada na viagem, somente uma bengala para se apoiar. Não deviam levar comida, nem sacola, nem dinheiro. Deviam calçar sandálias e não levar nem uma túnica a mais. Disse ainda: — Quando vocês entrarem numa cidade, fiquem hospedados na casa em que forem recebidos até saírem daquela cidade. Mas, se em algum lugar as pessoas não quiserem recebê-los, nem ouvi-los, vão embora.

Marcos 6, 7-13 

 

Viaje segundo um seu projeto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem. E, se lho pedir a sensibilidade, registre por sua vez o que viu e sentiu, o que disse e ouviu dizer. 

José Saramago 


I. Santiago e a Península Ibérica

Nascido na Galiléia, Santiago Maior era um pescador no mar de Tiberíades quando se tornou um dos primeiros homens a seguir Jesus Cristo como seu discípulo e apóstolo. Santiago esteve presente no milagre da transfiguração de Jesus e O escutou chamar os bem-aventurados e pobres no Sermão da Montanha. Consta que, após Sua ressurreição, Cristo solicitou aos Seus 12 apóstolos que propagassem Sua fé por toda a extensão do mundo então conhecido. Coube a Santiago a porção mais ocidental: a província romana da Hispânia, mais especificamente a "Gallaecia", atual Galícia, região também conhecida pelos romanos como fim do mundo (Finisterrae). Assim se inicia uma longa tradição de culto a Santiago na Península Ibérica.

A evangelização nas atuais regiões de Espanha e Portugal, inicialmente, não foi bem sucedida. Após seis anos, Santiago regressou à Judeia, onde ficou conhecido como um pregador eloquente e persuasivo. Perseguido pelo Rei Herodes Agripa, foi condenado à morte pelo crime de idolatria coletiva. Tornou-se, assim, o primeiro mártir do Cristianismo, morto pelo motivo de sua fé, ao ser decapitado com uma espada. Entre os apóstolos, Santiago é o único cujo martírio é registrado no Novo Testamento.

Lendas acerca de sua morte dizem que seu corpo e cabeça foram recuperados e transportados de volta para a Galícia por seus discípulos Teodoro e Atanásio. Um enterro digno não seria possível na Judeia, onde o rei proibia que o corpo permanecesse dentro dos muros da cidade. Era, também possivelmente, um desejo de Santiago ser enterrado no local de sua pregação. Acredita-se que os discípulos viajaram em uma arca de pedra feita embarcação, sem leme nem vela, guiados apenas por anjos. Teriam partido do porto de Jafa, próximo a Jerusalém, e navegado pelo Mediterrâneo, passando pela costa norte da África, colunas de Hércules no estreito de Gibraltar, depois pelo litoral português até, enfim, desembarcarem em Padrón, já na Galícia, então chamada de Iria Flavia. A viagem seguiu por terra até um bosque chamado Libredón, nas cercanias do que hoje é Santiago de Compostela, onde seu corpo teria sido enterrado. 

Durante oito séculos, o lugar de sepultamento de Santiago ficou desconhecido. Em termos de registros históricos, pouco é possível saber sobre o que aconteceu após sua morte descrita na Bíblia, ou mesmo se o apóstolo realmente pregou na Península Ibérica. De fato, é muito pouco provável que seu corpo tenha permanecido em Jerusalém: pouca dúvida há sobre sua decapitação, mas a escassez de registros de culto a Santiago na cidade indica que não se tinha conhecimento de que seu corpo fora enterrado ali. Rotas marítimas entre Judeia e a Espanha eram bem conhecidas, sendo viável que ele e seus discípulos tenham viajado em uma embarcação que fazia esse trajeto, tanto em sua primeira ida como evangelizador, como no traslado de seu corpo para sepultamento.

No ano de 814, contudo, um túmulo dos tempos de Cristo foi encontrado na Galícia e imediatamente associado à lenda de Santiago. A tradição diz que um eremita chamado Pelayo recebeu uma revelação durante um sonho: luzes vindas do céu, como estrelas cadentes, acompanhadas por cântico dos anjos, apontavam para um lugar ermo no meio da floresta. Ao procurar o lugar, o eremita constatou que havia três túmulos, um dos quais com o nome de um discípulo de Santiago. O bispo Teodomiro, de Iria Flavia, atestou o fenômeno, e a notícia rapidamente se espalhou. Os túmulos logo foram atribuídos ao apóstolo e a seus dois discípulos Teodoro e Atanásio. A descoberta se deu durante o reinado de Afonso II das Astúrias, que renomeou Libedrón para Campus Stellae (campo da estrela), então Compostela - o rei é considerado o primeiro peregrino jacobeu. Uma carta atribuída ao Papa Leão III (795-816) legitimou a descoberta e anunciou a todo o mundo cristão que o corpo de Santiago tinha sido transladado inteiro para a Espanha.

Apesar de haver pouco tempo entre sua morte e a descoberta do túmulo em 814, o Imperador dos Romanos, Carlos Magno, é considerado por outras tradições como o principal defensor do túmulo de Santiago. Nessa versão, o rei Afonso II teria informado sobre o descobrimento do túmulo ao poderoso imperador, que, por sua vez, teria ordenado esforços para conquistar o território, então ameaçado pelos avanços muçulmanos. Em 800, Carlos Magno foi coroado rei pelo Papa Leão III. Como protetor da Igreja, ao passo que expandia seu império, forçava a conversão dos povos conquistados ao Cristianismo. O imperador comandou incursões militares à Península Ibérica, de onde surgiram histórias sobre batalhas contra infiéis que inundaram a Europa de um sentimento religioso e guerreiro, resgatadas séculos mais tarde pelas cruzadas e pelas guerras de Reconquista. 

De fato, na época da descoberta do sepulcro do apóstolo, os muçulmanos viviam seu apogeu militar, artístico e cultural, avançando seus domínios desde o norte da África sobre toda a Península Ibérica. Os cristãos encontraram no Reino das Astúrias, território de geografia difícil e de menor interesse muçulmano, um baluarte contra a islamização. Certamente, a descoberta das relíquias de Santiago dentro dos limites do reino, que na época também abrangia a Galícia, foi um instrumento político, catalisador e unificador contra o Islamismo. A partir de uma ideia de proteção do corpo de Santiago, aquele território deveria ser inviolável para os cristãos. Já em 845, o poeta e filósofo árabe Al-Gazal, de Jaén, comparou as relíquias de Santiago à Caaba de Meca. O pequeno reino gradativamente foi se expandindo para sul. Novos reinos cristãos foram formados, como o de Castela, Leão, de onde surgiu o condado Portucalense, Pamplona (Navarra) e Aragão, que seriam os alicerces da Reconquista cristã da Península Ibérica.

Santiago virou o santo padroeiro da Espanha moderna e de outras nações hispano-americanas. Os relatos de aparição do santo nas guerras da Reconquista, sob o o epíteto de Santiago Mata-Mouros, o fez se tornar também, em dado momento, santo protetor dos exércitos português e espanhol. O dia 25 de julho, que não se sabe ao certo se diz respeito à data de sua morte ou chegada à Galícia, é seu dia litúrgico e dia da pátria galega. Durante a Idade Média, o caminho jacobino para o túmulo do apóstolo cresceu em popularidade como rota de peregrinação, tornando-se a terceira mais importante do mundo cristão, atrás de Roma e Jerusalém. Mais do que uma rota religiosa para a salvação da alma, os caminhos de Santiago passaram a ser uma porta aberta da Península Ibérica para a Europa continental, permitindo um intercâmbio cultural, comercial e religioso, ativo até hoje.

II. Os muitos Caminhos de Santiago

Uma peregrinação, do latim per agere, isto é, viajar longe, é uma jornada de um devoto a um lugar considerado sagrado. Comum em muitas religiões, o principal destino do Cristianismo é a Terra Santa, sobretudo Jerusalém, local da crucificação de Jesus. O peregrino que se dirigia a Jerusalém era conhecido como "palmeiro" devido à presença de ramos de palma nos oásis do deserto. Em seguida está Roma, de onde surge o termo "romaria", sede da Igreja Católica e, segundo a tradição, local de martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. Finalmente, como terceira rota mais importante, está o Caminho de Santiago, cujo peregrino é conhecido como jacobeu, nome derivado do latim Iacobus, por sua vez uma latinização do nome hebraico Ya'akov, que viria a se tornar Tiago, Santiago, Jacó ou Jaime em português, evoluindo ainda em outras direções como James (inglês), Jakob (alemão), Giacomo (italiano) e Jacques (francês).

O Papa Calisto II (1119-1124) é considerado o grande responsável pela popularização do Caminho de Santiago. Ao instituir o Jubileu Compostelano, quando o dia de Santiago coincide com um domingo - padrão que se repete a cada 6, 5, 6 e 11 anos -,  uma indulgência seria concedida ao peregrino que chegasse à Santiago de Compostela e ali realizasse ao menos uma oração. Data dessa época, embora a autoria do Papa seja contestada, o Codex Calixtinus, uma coletânea de textos em latim cujo quinto volume é um guia prático para a peregrinação jacobeia, incluindo conselhos, informações sobre o percurso, obras de arte e costumes das populações que vivam ao longo do caminho. Os demais volumes incluíam sermões e textos litúrgicos relacionados a Santiago. O exemplar mais antigo está conservado na Catedral de Compostela, e muitos guias de viagem ainda hoje reproduzem o conteúdo do códice.

A popularização do Caminho de Santiago se deu em meio às Cruzadas, guerras de teor religioso motivadas pela fé cristã, cujo objetivo era dominar e ocupar a Terra Santa. "Cruzada" é um termo anacrônico: os soldados que participavam de tais guerras eram chamados, na época, antes de cruzados, peregrinos. Por muitos séculos, a região da Palestina, onde fica Jerusalém, esteve sob domínio romano e depois bizantino, império de religião oficial cristã a partir de 380. Com a expansão árabe, dos Califados Ortodoxo e Omíada, já em 638, apenas seis anos após a morte do Profeta Maomé, a região passou ao domínio Islâmico. Décadas mais tarde, chegariam também à Península Ibérica. Apenas em 1099 os cruzados reconquistaram Jerusalém para os cristãos, mantendo-a dominada até 1187.

Mais estável e segura do que a peregrinação para Jerusalém, em região que ainda hoje sofre com intermináveis disputas religiosas e territoriais, o Caminho de Santiago viveu seu apogeu entre os séculos XI e XIII. Símbolo de uma Europa que se unia em torno do Cristianismo, o aumento de popularidade fez algumas rotas ganharam uma forma definida e melhorias em infraestrutura. De modo geral, diferentes caminhos saíam da França e se juntavam em Puente La Reyna, de onde seguiam por um bem estabelecido caminho passando por  Burgos, Carrión de los Condes, Sahagún, León e Astorga. Os reinos do norte da Espanha construíam hospedagens, mosteiros, igrejas, hospitais, pontes e estradas. Redes de estradas romanas já existentes foram ampliadas ou conectadas, o que também facilitou o estabelecimento de diversos povoados ao longo do percurso. Esse caminho, descrito no Codex Calixtinus - hoje conhecido como caminho francês - é o de maior tradição histórica e o que ficou oficialmente marcado como "Caminho de Santiago" ao ser incluído como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1993.

Depois do século XIV, uma série de tensões sociais na Europa causaram o declínio da peregrinação a Santiago de Compostela. Entre 1337 e 1453, duas das maiores potências da Europa estiveram envolvidas na “Guerra dos Cem Anos”. Em 1348, a Peste Negra chegou ao continente e teve um efeito devastador sobre toda a população. Já em 1378, o Grande Cisma do Ocidente divide a cristandade ocidental. Em 1492, o último reino islâmico que ainda não havia sido derrotado foi expulso de vez da Península Ibérica; a luta contra os infiéis foi dada como concluída, e os reinos ibéricos voltaram suas atenções para o sul. No século XVI, o surgimento do Protestantismo, cuja idolatria a santos é rejeitada, foi outro ponto de cisão do mundo cristão. Apenas no fim do século XX a peregrinação voltou a se popularizar, novamente como símbolo de uma Europa globalizada que buscava união. O impulso definitivo foi dado pelo Papa João Paulo II, que, em 1982, fez um discurso europeísta no altar-mor da Catedral de Santiago. De menos de 3 mil peregrinos registrados na Oficina de Acogida de Peregrinos da catedral em 1985, o número saltou para quase 500 mil em 2023.

Um velho ditado sobre o Caminho diz que ele começa na porta da casa de cada viajante. Naturalmente, seguindo esse raciocínio, o número de caminhos é infindável. Aos poucos, como afluentes de um rio que encontram rios maiores até desaguarem no oceano, os caminhos vão se juntando e se agrupando em vertentes principais. O "Caminho Francês", o mais tradicional, historicamente protegido pelo reino dos francos, consolidou várias rotas que traziam viajantes da Europa central e do norte. O "Caminho Primitivo", mais antigo, é inspirado no percurso que o Rei Afonso II das Astúrias, o primeiro peregrino, fez entre Oviedo e Santiago. O "Caminho do Norte", por sua vez, se inicia no País Basco e costeia o Mar Cantábrico. Mais difícil que o francês, era considerado mais seguro por estar mais afastado das batalhas de Reconquista. Formado por peregrinos que chegavam à Galícia embarcados, o "Caminho Inglês" é uma variante que surgiu durante a Guerra dos Cem Anos, quando cidadãos ingleses, proibidos de transitar pela França, desembarcavam diretamente nos portos de Ferrol ou Corunha. Uma série de outros entroncamentos ligam as regiões mais ao sul da Península Ibérica à Santiago, como o Caminho da Prata (saída em Sevilha), Caminho Levante (saída em Valência) e os Caminhos Portugueses, com diferentes variações desde cidades como Lisboa, Porto, Coimbra ou Braga.

Em Portugal, quatro itinerários compõem uma espinha dorsal de caminhos jacobeus: o "Caminho Central Português", o "Caminho da Costa", o "Caminho Português do Interior" e o "Caminho de Torres". Todos os caminhos se cruzam em alguma medida e estão fortemente ligados ao culto de Santiago na Península Ibérica. O "Caminho Central", fundamentado em antigos relatos, segue o trajeto que se acredita ser o principal usado pelos peregrinos medievais. O "Caminho da Costa", o que percorri, inicia-se no Porto e segue pelo litoral até Caminha, onde ruma para o interior até encontrar o "Caminho Central" em Valença, passando pelo mais antigo vestígio material de uma igreja consagrada a Santiago em território português. O "Caminho do Interior", por sua vez, percorre uma região de povoamento historicamente escasso, mas ainda assim profundamente marcado pelo culto a Santiago. Por fim, o "Caminho de Torres" é o único que liga cidades históricas importantes para a formação do Reino de Portugal, como Amarante, Braga e Guimarães.

Representando os muitos caminhos que convergem para um único ponto, a vieira, com sua concha de harmoniosa geometria composta por estrias radiais, tornou-se o maior símbolo da peregrinação a Santiago. As vieiras são pequenos moluscos facilmente encontrados na costa da Galícia. Inicialmente, eram um prêmio que viajantes levavam para casa como prova de que a peregrinação foi concluída. Depois, receberam novos sentidos práticos, como fazer as vezes de uma tigela para beber água ou um prato para colocar comida. Símbolo de identificação inequívoco de um peregrino, caminhantes costumam pendurá-la em seus chapéus, cajados ou mochilas. Algumas versões, ainda, a associam ao mito de Santiago: uma delas diz que, vindo para a Galícia desde Jerusalém pelo mar, sua embarcação teria se perdido em uma tempestade e miraculosamente emergido em Iria Flavia repleta de vieiras.  

Hoje, peregrinos que concluem o caminho podem solicitar a Compostela, um certificado de conclusão, no Gabinete de Atendimento ao Peregrino da Catedral de Santiago. Independentemente da rota escolhida, basta percorrer os últimos 100 km a pé ou a cavalo, ou os últimos 200 km de bicicleta, tendo ao menos dois carimbos por dia em sua credencial de peregrino. A credencial é um tipo de passaporte que pode ser obtido em alguma das Associações de amigos do Caminho e que permite ao peregrino o acesso à rede de albergues públicos, além de conceder alguns benefícios como desconto em restaurantes no percurso. Os carimbos podem ser solicitados principalmente em albergues, restaurantes ou igrejas.

III. Diário

Dia 14/08/2024

Lisboa a Porto, ponto de início da peregrinação

Levantei às 5h da manhã para apanhar meu trem que partia às 06:39 da bela estação Oriente, em Lisboa, com destino ao Porto, ponto de início clássico do Caminho Português da Costa. Minha bicicleta se encontrava pronta no meio da sala de minha casa. Como o metrô só abriria às 06:30, menos de 10 minutos antes de meu embarque, fui pedalando de casa à estação, por cerca de 6 km.

Foi a primeira vez que andei em minha bicicleta montada com minha bagagem e equipamentos. A experiência foi positiva, facilitada pelo desnível entre a região central de Lisboa e a estação, em lugar plano às margens do rio Tejo. As ruas de Lisboa estavam escuras e desertas, mas aos poucos eu via a cidade acordar. Era uma segunda-feira. Ao chegar na estação, já havia uma longa fila de trabalhadores se formando para aguardar a abertura do metrô.

Uma parte da cidade literalmente acordava dentro da estação. Sofrendo uma grave crise de habitação, a cidade de Lisboa abriu a estação Oriente para o abrigo de moradores sem-teto. Em um longo túnel que conecta a área comercial às plataformas de trem e ônibus, dezenas de famílias dormem e fazem sua higiene ali. Crianças, jovens, velhos, portugueses e imigrantes, em comum está a dificuldade em se encontrar casas disponíveis para aluguel a preços justos e realistas. Uns deixaram suas casas por não conseguir mais arcar com os custos, outros deixaram seus países, mas, ao chegar, não conseguiram se legalizar, tampouco arrumar emprego. Há uns anos chocante para um país como Portugal, o grande número de moradores de rua vai se tornando parte da paisagem de uma das áreas de passagem mais movimentadas do país. Com o tempo, infelizmente, isso deixará de causar espanto e será aceito como algo comum, sobre o qual poucos acreditam poder fazer algo. Uma estação de trem consegue juntar, no mesmo espaço, trajetórias de vida muito diferentes. 

Comprei um café e um sanduíche em uma lanchonete da estação e subi até a plataforma para aguardar meu trem. Um funcionário dos Comboios Portugueses me viu com a bicicleta e me orientou sobre aonde me posicionar para o embarque. Entrar com a bicicleta foi um pouco difícil. Havia muitos passageiros embarcando e pouco espaço para erguer a bicicleta de modo a pendurá-la em um gancho na parede entre dois vagões. Recebi a ajuda de um cabo-verdiano, com quem conversei brevemente. Foi a primeira pessoa a me desejar "bom caminho" quando soube que eu estava indo a Santiago de Compostela.




Chegada ao Porto

Cerca de três horas depois de deixar Lisboa, cheguei à estação Campanhã no Porto. Em menos de dez minutos, um segundo trem me levou até a estação São Bento, um edifício monumental. Em seu átrio principal, um enorme painel com mais de 20 mil azulejos retrata momentos importantes do início da nação portuguesa, da evolução dos meios de transporte, além de cenas campestres entre os rios Douro e Minho.

A estação, assim como diversos pontos da cidade por onde passei, estava repleta de turistas. Eu, com minha bicicleta preparada para uma viagem de cinco dias, tinha dificuldade em me locomover por ali e me sentia um pouco fora do lugar. Subi a Av. Dom Afonso Henriques até chegar à Sé do Porto, marco inicial do Caminho Português da Costa.

A Sé teve uma capela em seu interior destinada à Santiago, desaparecida após obras de restauro no século XX. Ainda assim, em seu museu, há uma imagem de grandes dimensões do santo em estilo flamenco, que não tive, dessa vez, oportunidade de visitar. Como já eram quase 11h da manhã, não tendo um lugar adequado onde deixar a bicicleta com a minha bagagem, preferi seguir viagem para não terminar a etapa do dia muito tarde. Na catedral, é possível obter uma credencial do peregrino e conseguir um carimbo.

Desde a Sé do Porto, já é possível seguir o sistema de sinalização de setas amarelas para Santiago. Em um ponto muito fácil de ser visto, na praça, um totem aponta para a direção das ruas das Aldas e da Pena Ventosa, tortuosas ruelas de ares medievais erguidas durante o período de dominação romana. Ao descer por essas ruas, distraído por sua beleza e por tantos outros estímulos visuais, logo perdi as setas de vista. Tive que programar meu GPS para me levar até o Cruzeiro do Senhor do Padrão, um ponto de referência pelo qual deveria passar em meu roteiro. Encontrei um caminho que saía do confuso centro histórico pela Rua de Anibal Cunha, que depois passa a se chamar Oliveira Monteiro.

Discreto, espremido entre duas ruas, deve-se estar muito atento para não passar despercebido pelo Cruzeiro do Senhor do Padrão. Construído em 1738, é um monumento religioso que saúda os peregrinos que seguem para o norte. Na época de sua construção, servia não somente como um símbolo religioso, mas era um marco geográfico que apontava o caminho para Santiago.





Porto a Vila do Conde

O agitado centro do Porto, de muitas ruas estreitas e movimentadas, aos poucos dá lugar a uma zona metropolitana essencialmente industrial, tediosa e sem muitos encantos. Cheguei ao Largo do Souto, na freguesia de Custóias, próximo ao ponto de atravessamento do Rio Leça. Nessa região, tive uma adorável passagem pela ponte medieval D. Gomil, com seu harmonioso arco ogival construído em alvenaria de granito. 

As características da ponte apontam para uma construção de finais do século XIII ou inícios do século XIV, conforme contava uma placa informativa ali ao lado. Apesar de ter sofrido diversas reconstruções ao longo dos séculos, as pedras originais ainda são visíveis na parte inferior, sobrepostas por pedras de épocas mais recentes. A estrada que servia essa ponte, a Via Veteris, já aparece mencionada nas Inquirições de 1258. Ela começava no Rio Douro e seguia por Pedras Rubras até Vila do Conde, foz do Rio Ave, trajeto semelhante ao que eu estava prestes a percorrer.

Apoiei a minha bicicleta na ponte e sentei para um pequeno lanche antes de seguir viagem em direção à Igreja de Santiago de Labruge. A região da ponte era envolvida por um parque, que, por sua vez, rodeava a autoestrada Litoral Norte. As árvores, a ponte, o rio Leça e os carros deixando a cidade indicavam que Porto já estava ficando para trás. Atravessando o parque, todavia, ainda tive que contornar o aeroporto antes de, finalmente, seguir pela maior parte do tempo por sendeiros rurais que foram margeando a autoestrada praticamente até chegar à Vila do Conde.


Vila do Conde

Até então, a viagem, passando por trechos majoritariamente urbanos, não vinha sendo muito agradável. Parei para almoçar em uma churrascaria em Pindelo, antes de cruzar a ponte sobre o rio Ave e adentrar no centro histórico de Vila do Conde. Novamente, ao chegar a uma cidade grande, rapidamente me perdi ao tentar seguir as setas amarelas para Santiago. Olhei em meu GPS a localização da Calçada de Santiago, a qual havia marcado como um ponto de interesse. Atravessando a ponte, a calçada estava a minha esquerda, mas as setas apontavam para a direita.

Segui, mesmo assim, em direção à calçada. No caminho, passei pela Nau Quinhentista, parte do núcleo museológico Alfândega Régia. A nau portuguesa do século XVI, dada a necessidade de armazenar grandes quantidades de alimento e mercadorias durante as longas viagens à Índia, tinha uma capacidade de carga maior do que a conhecida até então nas navegações portuguesas. Hoje, uma réplica fiel fica exposta no rio Ave.

Vila do Conde tem sua história intimamente ligada à construção naval e ao comércio marítimo. No início do século XVI, a cidade atingiu o seu apogeu com o próspero comércio de especiarias das Índias. O Rei D. Manuel I, em 1502, passou por ela em peregrinação a Santiago de Compostela. Em função de sua passagem, uma série de obras como a construção da Igreja da Matriz, Paços do Concelho e abertura de novas vias na malha urbana foram feitas. A ascenção de cidades costeiras como Vila do Conde foi um impulso à consolidação do Caminho da Costa como rota de peregrinação.

Tive dificuldade para achar a calçada de Santiago, uma pequena rua muito escondida, que outrora foi uma das principais vias da vila, conectando o porto ao centro. Na mesma área da cidade, está a peculiar Capela Nossa Senhora do Socorro, implantada sobre um maciço rochoso, de base quadrangular coberta por uma abóboda. Pensei ser uma construção moura. Não exatamente, mas, de fato, seu patrono, Gaspar Manuel, piloto-mor das carreiras da Índia, China e Japão, construiu a capela à semelhança de templos orientais que encontrou em suas navegações.

Voltei as minhas atenções para o mapa. Eu pensava que, se não seguisse o tempo todo pela rota oficial, poderia estar perdendo partes importantes da experiência da peregrinação. Em Vila do Conde, entre divergências entre as setas e a rota que eu havia planejado, comecei a me sentir estressado tentando encontrar qual caminho seguir. Acho que parte dessa dificuldade se dá, também, por a cidade oferecer duas opções de caminho: o da Costa, que segue a Esposende, e o Central, uma ramificação com direção à Braga. Acabei pegando uma rua por engano. Quando me dei conta, estava embaixo de um lindo aqueduto de inspiração romana, sobre o qual a existência eu não tinha conhecimento.

Foi quando entendi que me deixar guiar um pouco pela intuição também me renderia gratas surpresas. Deixei a rota oficial de lado para poder andar junto ao Aqueduto de Santa Clara, concebido em 1626, que originalmente tinha 999 arcos e cobria cerca de 7 km de extensão. Apesar de alguns arcos não existirem mais, ainda é considerado o aqueduto com maior número de arcos do mundo. É uma construção muito bonita. Enquanto eu tentava encontrar novamente o caminho correto, acabei chegando, sem querer, à porta do cemitério da cidade, virado para os arcos. A visão dos túmulos, preenchidos pelo horizonte dos arcos, com o céu azul claro e limpo daquele dia ensolarado, me remeteu àquelas imagens da porta do mundo celestial ao qual supostamente atravessamos após a morte.






Póvoa do Varzim a Esposende, fim da primeira etapa

Em Vila do Conde, finalmente encontrei o mar, que me trouxe a sensação de renovação necessária para percorrer os últimos 20 km do dia. Já havia pedalado cerca de 40 km e ansiava pelo oceano. Não havia quase encontrado peregrinos no caminho, apenas um ou outro rapaz que andava sozinho em ruas asfaltadas de calor escaldante. A partir dali, cruzar com outros peregrinos portando suas mochilas decoradas com a vieira passou a ser cada vez mais comum. A maioria dos que fazem o caminho a pé se dirige diretamente para Vila do Conde, evitando a longa etapa urbana do Porto.

Passei a andar por uma extensa ciclovia litorânea, em trechos de praia com alto movimento típico dos meses de verão europeu. Vila do Conde e a próxima cidade, Póvoa do Varzim, formam uma conurbação, de modo que a mudança de uma para outra foi imperceptível. Importante estância balnear documentada desde finais do século XVIII, o mar é o personagem central de Póvoa do Varzim, cidade de enorme tradição pesqueira. Como uma peregrinação, em que se busca andar por horas a fio em silêncio e em contemplação, a passagem por ali, contudo, foi um tanto barulhenta: os postes de iluminação pública eram equipados por alto-falantes que tocavam uma rádio local para entretenimento dos banhistas.

Ao me afastar da cidade, as praias foram ficando mais desertas, e finalmente eu andava por passadiços sobre dunas ouvindo o som do mar. No entanto, passei a pedalar contra o temido vento de norte do litoral português, conhecido como nortada. Em momentos assim, é fácil esquecer a beleza da jornada e focar apenas no desafio. Eu ouvi falar da nortada antes de iniciar meu caminho, mas não tinha ideia do quão difícil seria pedalar contra esse forte vento. Segundo o glossário climatológico do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), a nortada é o "vento de norte ou de noroeste que sopra na costa ocidental de Portugal Continental, atinge um máximo de intensidade durante a tarde e é característico nos meses mais quentes do ano, entre Maio e Setembro".

Foi o único momento que temi não conseguir cumprir meu roteiro. Enquanto meu corpo ainda se acostumava com a carga de esforço necessária para percorrer o caminho, eu fazia muita força para seguir em frente, mas parecia que eu não saía do lugar. Meu GPS indicava que faltavam 15 km para meu albergue, e todo o trajeto parecia ser contra o vento. Eu havia reduzido a marcha da bicicleta para a mínima, tornando o pedalar o mais leve possível, mas a sensação era a de andar com uma pesada pedra amarrada no pé. Para atenuar os efeitos do vento, resolvi fazer desvios para fora da costa, o que me permitiu seguir viagem em condições melhores. Foi uma decisão acertada para lidar com os ventos. A partir de então, consegui chegar tranquilamente a Fão, uma vila do município de Esposende, destino final de meu primeiro dia. Conforme me aproximava do albergue, conseguia avistar, ao longe, o lindo Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, no topo de uma montanha. Sabia que já havia chegado longe.

O albergue cumpriu sua função de servir como um tranquilo repouso após uma longa jornada. Eu havia pedalado 55 km. Cheguei bastante cansado, mas me senti bem após tomar um banho e comer. O albergue ficava em um pequeno bairro de clima interiorano próximo ao mar. Tinha um agradável jardim que me trouxe paz e silêncio, onde pude relaxar um pouco e massagear minhas pernas, ritual que cumpriria durante todos os dias. O dono era muito simpático. Mostrou-me os aposentos e me levou ao pequeno bicicletário onde deixei minha bicicleta. Foi o primeiro a carimbar a minha credencial do peregrino. Não era um albergue tão grande, encontrei mais quatro peregrinas, todas mulheres viajando em dupla, e um dos quartos estava totalmente ocupado por uma mesma família de imigrantes. No segundo andar, havia um grande grupo de jovens que pareciam estar em uma viagem de surf. Não era muito diferente de um típico hostel de mochileiros, com algumas precisas intervenções com foco no bem-estar do peregrino, como um tanque para limpeza e cuidado com os as bolhas dos pés, mal do qual ciclistas não padecem. Por volta das 20h já estava em minha beliche pronto para dormir.




Dia 15/08/2024

Esposende a Viana do Castelo

Tive uma boa noite de sono e acordei antes de o sol nascer. Era um mês de verão, de forte calor, mas nas primeiras horas da manhã fazia um pouco de frio em Fão. Na noite anterior, estava demasiado cansado para procurar um restaurante depois que cheguei ao albergue. Havia jantado apenas as castanhas e barrinhas de cereal que trouxera para a viagem. Logo depois que me arrumei e montei minha bicicleta, fui à padaria mais próxima tomar um café da manhã.

Em seguida, cruzei a ponte sobre o rio Cávado com o sol ainda nascendo. A luz do sol leve, de tom alaranjado, a temperatura agradável e as poucas pessoas na rua davam uma sensação de relaxamento e paz. Apenas alguns outros peregrinos e poucas pessoas praticando exercícios físicos já tinham deixado suas camas. O enorme estuário do rio Cávado forma um ecossistema diverso, com praias marítimas e fluviais, dunas, recifes e florestas, por onde andei durante os primeiros quilômetros do dia.

Logo cheguei ao fim do estuário e passei a andar por uma faixa litorânea. As setas amarelas apontavam para o interior, mas preferi seguir por mais um tempo andando pelo litoral, por passarelas sobre dunas. Entre seguir as setas ou um mapa, eu sabia, afinal, que poucos elementos na natureza facilitam mais a orientação do que seguir um curso d'água. Mantendo o mar à minha esquerda, eu havia de chegar, em algum momento, à Galícia.

Em Marinhas, antiga freguesia de Esposende, deixei a costa e fui em direção do Castelo de Neiva, um dos pontos mais emblemáticos do Caminho Português da Costa. Nessa freguesia fica a Igreja de Santiago de Castelo de Neiva, o mais antigo vestígio material de culto à Santiago em Portugal. Em 1931, durante uma obra de restauração, foi encontrada uma inscrição da sagração da igreja primitiva em 862, poucas décadas depois da descoberta do túmulo do apóstolo. Ainda longe do rio Minho, a existência da igreja mostra como a devoção a Santiago rapidamente se espalhou pela Península Ibérica.

No topo de um morro, é necessário subir mais de cem metros em relação ao nível do mar para alcançar a igreja, que se transforma, naturalmente, em um ponto de descanso e apreciação. Ainda não havia visto tantos peregrinos juntos em um mesmo lugar. Além da igreja, existe ali um cemitério, uma estátua de um peregrino, uma fonte d'água e um café com um mirante, de onde é possível ver o mar. Dentro da igreja, havia uma mesa com o carimbo para a credencial. Castelo do Neiva é também o local de deságue do rio Neiva, que delimita a fronteira entre Esposende e a cidade seguinte, Viana do Castelo.

A partir desse ponto, seguindo as setas amarelas, passei por trás do cemitério e passei a andar por uma longa trilha florestal. Em um dado momento, comecei a ouvir o som da Ave Maria de Schubert, vindo de um alto-falante cuja localização exata não consegui descobrir. A bela música me pareceu muito adequada ao ambiente e reforçou a vocação ascética de uma peregrinação, em que se renuncia aos prazeres como prática de desenvolvimento espiritual. Após horas andando sozinho, já convivendo com algumas dores no joelho, aquele som, de algum modo, me fez bem e me trouxe força para seguir meu caminho.

A viagem até Viana do Castelo seguiu por calmas vias locais e ruas residenciais pelas freguesias de Chafé e Vila Nova de Anha. Entrei em Viana do Castelo pela Ponte Eiffel, sobre o rio Lima, que nasce na Galícia e tem sua foz na cidade. A ponte foi projetada por Gustave Eiffel, engenheiro francês mundialmente conhecido por ter construído a Torre Eiffel, de Paris. A ponte é um belo exemplar da arquitetura do ferro em Portugal, que, dentre outras obras, também conta com o elevador de Santa Justa, em Lisboa, e a Ponte D. Luís, no Porto. 










Viana do Castelo

Viana do Castelo é uma cidade relativamente grande. Quando passei por ela, ainda de manhã, pouco antes do horário de almoço, já estava cheia e movimentada. Tive que descer da minha bicicleta em alguns momentos para passar pelas estreitas ruas repletas de lojinhas e pedestres distraídos com suas compras. Tão logo atravessei a ponte para entrar em Viana, dobrei à esquerda e me dirigi ao hospital velho, uma construção medieval, do ano de 1496, pensada para abrigar peregrinos a caminho de Santiago. Havia um pequeno posto de informações e acolhimento de peregrinos, mas as luzes estavam apagadas e as portas trancadas. No fim, queria ter visitado o hospital, mas não entendi se estava fechado ou se não era aberto ao público.

Eu estava na região do centro histórico, e em meu caminho estava uma linda avenida chamada Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, decorada e montada para algum desfile. Estava fechada para carros e havia arquibancadas metálicas nas calçadas. Apontando os olhos para o norte, direção do meu trajeto, era possível admirar o Monte de Santa Luzia e o Santuário do Sagrado Coração de Jesus, por uma vista aberta e sem obstruções entre os baixos prédios. O Santuário é o símbolo maior de Viana do Castelo. Criado para ser uma construção à altura da beleza da vista que se tem de cima do monte, lembra muito a Basílica de Sacré Cœur, de Paris. Muitos peregrinos incluem um pernoite na cidade, onde aproveitam para tomar o elevador de Santa Luzia e subir o monte. 

Depois eu viria a descobrir que o festejo que ocorria naquela semana, entre 14 e 22 de agosto, era a Romaria de Nossa Senhora da Agonia, uma das maiores celebrações religiosas de Portugal. A Senhora da Agonia é uma representação de Virgem Maria invocada por antigos pescadores de Viana do Castelo para proteção contra os perigos do mar. Os festejos ocorrem anualmente desde meados de 1750 e trazem mais de um milhão de pessoas para Viana do Castelo.






Viana do Castelo a Caminha, fim da segunda etapa

De Viana do Castelo até Caminha, seguimos pelo último trecho de litoral em território português. Também é certamente um dos trechos mais bonitos de toda a viagem. Na saída de Viana fica a freguesia de Areosa, em região de encosta, por onde andei em ruas de pedra com vista para o mar. Entre o mar e o morro, existe uma longa distância preenchida por largos campos agrícolas. Em alguns momentos, as setas amarelas apontavam para trilhas florestais, por onde seria difícil passar com a bicicleta. Ao mesmo tempo, o mar exercia um enorme poder de atração sobre mim, e preferi sair da rota para andar perto da praia. Aqui, o peregrino pode optar pelo caminho oficial, pela montanha, beirando a serra de Santa Luzia, ou seguir pelo mar, por caminhos vicinais às vezes em terra batida.

Eu andava, agora, por vias que pareciam costuras em uma colcha de retalhos, entre as plantações. A paisagem, de muita beleza, pouco mudou desde os tempos dos peregrinos medievais. Passei por vinhas, plantação de milho e zonas de pasto, onde cabras andavam livremente. Na região costeira há alguns moinhos, hoje desprovidos de vela, mas que no passado aproveitavam os fortes ventos da região para moer cereais.

A desvantagem de seguir pela costa é que a região é deserta, sem serviços e infraestrutura. Não é uma distância tão longa a se percorrer, mas, à altura, estava com muita fome e precisava encontrar um restaurante. De modo geral, todo o caminho até Santiago é repleto de vilas, aldeias e cidades onde se pode facilmente encontrar padarias, bares, restaurantes e supermercados. Por um erro de cálculo eu já estava há muito tempo sem me alimentar, e precisei deixar o litoral para encontrar, enfim, um restaurante na freguesia de Carreço.

Fiz uma longa pausa para almoço e depois fui em direção à Afife, ainda em Viana do Castelo. Havia colocado como ponto de parada em meu roteiro o Convento de São João de Cabanas, um pequeno mosteiro em uma floresta na beira de um riacho de água cristalina, no meio de uma colina. É fantástico como a paisagem muda tão rapidamente. Eu havia deixado o mar e o calor e estava novamente na montanha, sob uma temperatura amena. Era, a propósito, um lugar alto, e, para deixar o riacho, precisei ainda empurrar minha bicicleta sobre uma ribanceira.

Retornei para a costa e passei pela praia de Âncora. Dali, já conseguia avistar o monte de Santa Trega, de formato cônico. O monte fica na Galícia, no concelho de A Guarda, marcando a fronteira entre Espanha e Portugal na foz do rio Minho. Em seu topo há um importante sítio arqueológico da cultura castreja, de povos ibéricos anteriores aos romanos que construíam castros, isto é, fortificações, geralmente em regiões estratégicas de topo de montanha. O monte era um sinal de que Caminha, destino do dia, já estava próxima. Voltei a passar por videiras e paisagens de praia deserta, embora não por muito tempo: cerca de 8 km depois, já estava em Caminha.

Passei pelas agradáveis ruas de Caminha, vendo o rio e o ponto onde ele se encontra com o mar, até que cheguei ao meu albergue. O albergue era em um elegante casarão cujo nível superior tinha um terraço com jardim e uma bonita vista para o rio. A recepcionista, uma senhora galega, prontamente me convidou para o jantar que seria organizado para os hóspedes. Aceitei a oferta e logo depois conheci Victor, um rapaz brasileiro, de minha idade, que trabalhava no albergue e prepararia o jantar naquela noite. Também ciclista, iniciamos uma conversa sobre bicicletas que depois tomou um longo rumo em outras direções. Foi por meio dele que ouvi falar pela primeira vez da variante espiritual do Caminho Português, uma vertente que segue parte do "Traslatio", uma "Via Crucis" marítimo-fluvial pela foz do rio Ulla até Iria Flavia, por onde o corpo do apóstolo teria sido transportado. Segundo ele, o caminho passa por belas montanhas, e é sem dúvida o melhor caminho a se seguir para Santiago. Combinei de voltar ao albergue para fazer a variante espiritual em uma segunda peregrinação a Santiago.

No jantar, éramos nove: eu, duas senhoras irlandesas viajando juntas, uma espanhola, que seguia sozinha mas havia se juntado às irlandesas na etapa anterior, um casal de polacas, uma italiana, um senhor alemão e uma jovem também alemã, ambos viajando sozinhos. As polacas estavam atrasadas e as esperamos chegar para iniciar a refeição. O esforço requerido na peregrinação parecia as ter castigado mais que os demais. Eu, o único ciclista, sentia que estava trapaceando ao reduzir o esforço de uma peregrinação que, por princípio, deveria ser exigente. Elas chegaram exaustas e pouco conseguiram interagir durante o jantar. A italiana, também, se queixava de muitas dores no pé. O alemão, um senhor de sessenta anos, mas de aparência muito jovial, de músculos firmes e pele bronzeada, tinha no corpo uma porção de tatuagens alusivas ao caminho de Santiago. Ele me contou que era a terceira vez que fazia o Caminho, e que o fez pela primeira vez com seu filho que sofria de depressão. As irlandesas faziam o caminho sem pressa e sem se sentirem obrigadas a concluí-lo. Gostaram tanto de Caminha que estavam decidindo se passavam mais uns dias ali para aproveitar o sol, raro em seu gélido país, e as praias. Se eu me senti trapaceando ao viajar de bicicleta, a alemã, por sua vez, pediu minha ajuda para traduzir informações do site dos Comboios Portugueses. Ela havia ouvido que uma greve poderia a impedir de chegar, de trem, ao seu próximo destino, Vila Nova de Cerveira. 

São motivos muito diversos que trazem milhares de pessoas, a cada ano, a Santiago de Compostela. O Caminho funciona como uma metáfora de um processo necessário para alcançar determinado fim. O fim não é, necessariamente, adorar as relíquias do apóstolo. Há os devotos que caminham para pagar promessas ou agradecer milagres, quem busque simplesmente caminhar por vários dias seguidos em novas paisagens, há quem procure dias de sol ou desafios esportivos. No meu caso, o que me motivava era a curiosidade - uma imensa vontade de explorar uma nova realidade tendo como ponto de partida e chegada o fenômeno que é o Caminho de Santiago. Eu estava do lado dos antigos peregrinos que viam no Caminho uma possibilidade de chegar ao limite do conhecimento de mundo de seu tempo, na Finisterra, onde a terra acabava e imenso oceano desconhecido se iniciava.







Dia 16/08/2024

Caminha a Valença pelo Rio Minho

O dia começou com a excitação de saber que eu finalmente chegaria à Galícia. Em Caminha, os peregrinos podem atravessar o rio Minho de balsa e continuar a peregrinação em A Guarda, na Espanha. Dali, podem aproveitar mais 30 km de litoral até Baiona, onde seguem o curso da ria de Vigo até a cidade homônima, antes de encontrarem, novamente, o Caminho Central Português em Redondela.

Seria estranho já deixar Portugal. A minha jornada havia começado em um trem entre Lisboa e Porto, quando o sotaque português do sul foi aos poucos dando lugar a variações do norte, até começar a ouvir galego em Caminha. Em um primeiro momento, a língua soa como um falante nativo de espanhol que aprendeu a falar português; era um meio-termo entre o português e espanhol, mais próximo do português, que permitia completa compreensão entre os falantes de ambos idiomas. Como na natureza um ecossistema gradativamente dá lugar a outro, também a natureza humana tem suas zonas de transição, onde áreas intermediárias agrupam características das culturas adjacentes. Como falante de português, a viagem em direção à Galícia acabava de ganhar, também, uma notável dimensão linguística. Eu estava ávido por conhecer as dinâmicas de uma fronteira tão antiga.

Para chegar em Valença, pedalei por uma longa ciclovia na margem sul do rio Minho, cujo curso, em seus últimos 75 km, delimita a fronteira entre Espanha e Portugal no noroeste da Península Ibérica. O trajeto passa quase o tempo todo pelo leito do rio, possui alguns pontos de descanso e as árvores fazem sombra sobre o caminho, amenizando a sensação de calor. É um trecho muito agradável de se andar. A fácil orientação pela ciclovia, seguindo o curso do rio que fica visível por praticamente todo o tempo, assim como a paisagem natural, distraía meus pensamentos das preocupações mundanas da viagem e praticamente me forçava à meditação.

Nessa região, português e galego parecem estar em perfeita simbiose. Em determinado ponto no tempo, a língua galaico-portuguesa, ancestral comum do galego e do português, foi a mesma falada em ambas as margens do rio Minho. O idioma se desenvolveu a partir do latim vulgar trazido por soldados e colonos romanos e estima-se que, embora ainda não tivesse um nome, já fosse considerado distinto do latim por volta do século VIII. Em 882, um documento chamado "Carta de Fundação da Igreja de Lardosa" é considerado o mais antigo a trazer elementos do latim vulgar falado na região. Contudo, o galego-português, como uma nova língua, surge apenas entre 1170 e 1220 com diversos exemplares de textos conhecidos como "produção primitiva". O Testamento de Afonso II, rei de Portugal entre 1211 e 1223, escrito em 1214, é considerado o mais antigo documento escrito em galaico-português. Frequentemente é também considerado o primeiro documento escrito em português, ainda que na época não houvesse distinções em relação ao galego.

Um pouco de história: Portugal foi o único território peninsular que não fez parte do domínio e influência do Reino de Castela, de modo que a língua portuguesa se desenvolveu com independência em relação ao galego. Noções diferentes de nação entre Portugal e Galícia também distanciaram os idiomas de sua raíz comum por meio da idealização de um idioma nacional. Ao expandir para o sul, o português adquiriu léxicos árabes e moçárabes dos então habitantes da região. Quando Portugal estabeleceu sua capital em Lisboa, as variantes setentrionais do português passaram por um processo de normalização centrado na nova capital. Já no século XV, quando Portugal iniciava sua Era dos Descobrimentos, expandindo o alcance do português ao passo que adquiria novas palavras de origem sobretudo ameríndia e africana, a Galícia passou a viver os chamados "Séculos Escuros", quando, enfraquecida, a língua galega perdeu relevância perante o castelhano. Diferentemente do português e castelhano, sintetizado como "espanhol", que passaram por processos de consolidação e codificação, o galego deixou de ser usado em documentos e passou a ser considerado uma língua não literária, de uso oral, tipicamente falada em meios rurais. Os galegos que buscavam ascensão social buscavam falar, invariavelmente, o castelhano, que aos poucos foi penetrando e modificando o galego.

Foi apenas no século XX que surgiram movimentos significativos de ressurgimento, estudo e codificação do galego. A Real Academia Galega, dedicada aos estudos da língua e cultura da Galícia, foi fundada em 1906. Nessa época, houve um expressivo aumento em obras escritas no idioma, interrompido, todavia, pela ascensão da ditadura de Francisco Franco após a Guerra Civil Espanhola. Ironicamente tendo nascido na Galícia, o ditador proibiu o uso do galego e de outros idiomas que não o castelhano na Espanha. O galego, assim, por boa parte do século XX se desenvolveu na clandestinidade, causando uma grande defasagem de ensino entre nascidos até meados da década de 1970. Ainda hoje, estudiosos do tema afirmam que português e galego são variantes de uma mesma língua, e há quem defenda a inclusão da Galícia, estado espanhol autônomo com denominação de nação histórica, na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).




Valença do Minho, fim do Caminho da Costa e passagem para Galícia

Valença do Minho é o fim oficial do Caminho da Costa. Dali até Santiago de Compostela, estamos em território do Caminho Central Português, que, vindo também do Porto, passa por cidades como Barcelos e Ponte de Lima. Restavam, ainda, 120 km. A distância total do Caminho da Costa - que eu havia percorrido até então - é de 150 km. Notei que, ao deixar Caminha, eu já havia superado, assim, a metade do percurso total.

O movimento rumo ao interior é, antes de tudo, imposto pela geografia. Atravessar a foz do rio Minho, embora não haja pontes entre Caminha e A Guarda, é um tarefa simples. Depois de Baiona, contudo, o litoral espanhol se torna muito acidentado, perfurado por grandes vales fluviais que apontam para dentro do continente, chamados de ria, uma palavra galega que deu nome ao acidente tão típico do litoral da Galícia. Até a altura de Santiago, são três grandes rias: ria de Vigo, de Pontevedra e de Arousa. A última se liga ao rio Ulla, que, por sua vez, se conecta a Padrón, antiga Iria Flavia, onde teria desembarcado corpo de Santiago.

Em Valença, depois de pedalar por umas horas na silenciosa Ecovia do rio Minho, encontrei novamente uma grande cidade. Eram cerca de 10h da manhã e parei em um café no centro para comer algo. Ponto emblemático do Caminho Central, muitos peregrinos começam suas jornadas ali, onde esperam chegar em Santiago em cinco ou seis dias a pé. A influência do Caminho de Santiago como um fenômeno turístico e cultural em Valença é bem forte, explicada sobretudo pela sua localização na fronteira com a Galícia. Muitas lojas de lembrancinhas vendiam amuletos e itens para a peregrinação. Comprei uma vieira para pendurar em minha bicicleta antes de seguir viagem.

Chama-se uma cidade como Valença de cidade-fortaleza. Uma significativa parte da cidade está dentro de muros, em uma praça-forte cheia de vida. No interior da fortaleza fica o centro medieval, com muitos restaurantes, lojas, hotéis e serviços públicos. Cidadãos frequentemente entram e saem da muralha por portões estreitos, cuja passagem é limitada a um carro por vez. Pequenas filas e engarrafamentos constantemente se formam nos portões. Também o Caminho de Santiago, como apontam as setas amarelas, passa por dentro da fortaleza. Contornei os muros até uma longa escadaria que me deixou no ponto de atravessamento do rio Minho.

A muralha existe desde os primórdios de Portugal como uma nação e fica estrategicamente posicionada de modo a defender sua margem do rio das ameaças do poderoso reino vizinho da Espanha. A fronteira entre Espanha e Portugal, chamada de A Raia, é a mais antiga da Europa. Em especial, a fronteira no rio Minho remonta à origem do Condado Portucalense como um reino independente de Leão, no século XII. Apesar de alguns conflitos esporádicos, é uma fronteira estável e possui livre circulação desde 1995, com o Acordo de Schengen. Valença, do lado português, e Tui, do espanhol, formam uma "euro-cidade" de fronteiras abertas. A ponte rodo-ferroviária de Valença, de estrutura metálica e treliças, conecta as duas margens, os dois países. Uma pequena proeminência nas laterais permite o fluxo de pedestres e ciclistas. Bem na metade da ponte, uma singela linha desenhada no chão indica que entramos na Espanha.





Tui a Redondela, fim da terceira etapa

Tui parece um reflexo de Valença no espelho. Na parte mais alta da cidade, no lugar de um antigo castro, foi erguida, na primeira metade do século XII, a catedral-fortaleza de Tui, destaque absoluto da paisagem. A catedral foi iniciada em estilo românico e finalizada durante o período gótico, no século XIII, tornando-se um dos primeiros exemplos góticos da Galícia. A capela-mor, construída como um remendo barroco em 1696 por um escultor local, mostra a imagem de Santiago a matar mouros.

Segui meu caminho pelas partes baixas da cidade e deixei a catedral e o rio Minho para trás. Na passagem para a Galícia, o cenário muda aos poucos. As sinalizações em português passam para galego. Rapidamente, nota-se o uso muito singular e estranho do "X" no idioma galego, em muitos casos substituindo o "J" do português, às vezes o "G". As placas passam a vir com símbolos da "Xunta de Galicia", e as setas indicam a direção da "Ruta Xacobea". As cores da viagem mudam. Após o azul predominante do céu e do mar em Portugal, a paisagem se torna bucólica, onde predomina a cor das plantas, da terra, das árvores e das pedras, tanto as que aparecem no caminho, como as usadas nas construções das casas.

O Caminho, nesse ponto, passa a seguir por partes da antiga Via Romana XIX, uma das muitas estradas criadas pelo Império Romano na província da Hispânia. O trecho entre Braga e Santiago foi e ainda é, de certo modo, amplamente usado pelos peregrinos. Descrita no "Itinerário de Antonino", a estrada passa por cidades como Bracara Augusta (Braga), Ponte de Lima, Tude (Tui), Turoqua (Pontevedra), Aquis Celenis (Caldas de Reis) e Iria (Iria Flávia). A estrada como era originalmente não existe mais, mas alguns troços revitalizados e marcos podem ser encontrados no caminho.

Na Galícia, o Caminho é de muito contato com a natureza. Logo após deixar Tui, começaram alguns trechos de trilho florestal, por onde muitas vezes foi difícil trafegar com a bicicleta. As passagens eram estreitas, com algumas pedras soltas e muitas raízes de árvores. Precisei alternar entre pedalar e carregar a bicicleta no braço. Em alguns momentos, outros caminhantes me ajudaram, de bom grado, a empurrar a bicicleta ladeira acima. Mesmo em trechos florestais, o cuidado que se tem com o peregrino quando na Galícia é especial: em um bosque, perto de uma ponte de pedra sobre um riacho, havia um pequeno posto de ajuda e informação, onde se vendia lanches, água, mapas. Parei para carimbar minha credencial e ouvi uma breve explicação de um senhor sobre uma rota alternativa para evitar o desagradável trecho industrial de O Porriño, que se aproximava.

Todos que se aventuram no Caminho Central Português passam por O Porriño. Curiosamente, é um dos trechos mais bem documentados em relatos que havia lido antes da viagem. Talvez pela quebra de expectativas, pelos sentimentos de decepção que desperta, muitos peregrinos dedicam um pouco mais de palavras para descrever essa região. Ao nos aproximarmos da cidade, vemos uma montanha aberta, repleta de pesadas e barulhentas máquinas. Dali sai o famoso e bem conceituado granito rosa, usado como decoração em construção civil, exportado para países como Estados Unidos e Japão. Na mesma zona ficam os polígonos industriais de As Gándaras e As Graxas, de favorecida localização no entroncamento das estradas N-550 e A-52 e perto do porto de Vigo.

Como o senhor na floresta havia dito, cheguei ao ponto de onde é possível desviar da rota para evitar a zona industrial. O local era muito bem sinalizado e havia uma seta amarela apontando para a esquerda - para fora da zona industrial - e outra para a direita - para dentro. Seguir à esquerda certamente deveria ser mais aprazível. No entanto, o caminho era 1 km mais longo e passaria novamente por trilhos florestais, por onde eu andava com mais dificuldade. Optei pelo caminho à direita, por uma longa e retilínea avenida de mais de 3 km cercada por fábricas em ambos os lados. Parecia não ter fim. É fácil constatar, ainda mais no Caminho de Santiago, que a costa marinha, uma montanha ou um rio - como o Minho que divide dois países - têm forma irregular e não seguem padrões geométricos definidos. Na zona industrial, contudo, a linha reta, símbolo do poder destrutivo que o homem exerce sobre a natureza, prevalece.

Foram cerca de dez minutos na bicicleta apenas esperando a zona industrial terminar. Havia indústrias de setores muito diversificados, como o de automóveis, automação industrial, de alimentos e processamento de matéria-prima. Em especial, algumas fábricas tinham um espantoso mau cheiro, como a de processamento de lixo, a de fertilizantes e a de pescados. O mundo como ele existe não é belo o tempo inteiro, pelo contrário. Não há por que exigir que, só porque estamos em peregrinação, encontremos apenas beleza no caminho. O Caminho faz parte de um mundo que tem poluição, barulho, produção e destruição. Por que deveria ser diferente disso?

Dali até Redondela, o cenário volta a ser preenchido por paisagens bucólicas. Todavia, para chegar a Redondela, era preciso, ainda, transpor a serra de Santiaguiño de Antas, cujo cume está a mais de 210 metros de elevação em relação ao nível do mar. Fazia um calor tremendo, de cerca de 35°C. Foi provavelmente a subida mais exigente de toda a viagem. Se não foi a mais alta, foi a de maior declividade, a mais abrupta ou, no mínimo, a que mais me cansou. Juntei-me aos que caminhavam ao descer e empurrar minha bicicleta com as mãos, progredindo lentamente montanha a cima. Os ciclistas são numerosos, mas a quantidade de peregrinos a pé é muito maior. A velocidade da bicicleta dificulta muito o encontro e reencontro com outros peregrinos que, quando a pé, muitas vezes cumprem etapas no mesmo ritmo e se hospedam nos mesmos albergues.

Enquanto eu subia, ora parando para beber água, ora para descansar, comecei a reparar que eu ultrapassava e era ultrapassado pelas mesmas pessoas. Finalmente pude, uma vez caminhando, prestar atenção em outros peregrinos, em seus semblantes, vestimentas, supor suas motivações. Ali trocávamos mensagens de estímulo, desejávamos força uns aos outros para superar a subida. Um rapaz português em específico, um tipo curioso de aparência muito peculiar, roubava as atenções para si. Ele era um homem jovem e forte, caminhava em um ritmo rápido e constante, sozinho, com uma caixa de som pendurada em seu corpo e uma mochila muito pequena nas costas. Suas panturrilhas, largas e musculosas, eram comprimidas por um justo par de meias longas com desenhos de cannabis, que combinava com seu boné e óculos verde escuro. Como um treinador de um time de futebol, ele passava por todos berrando frases como "é preciso coragem para vencer!". O seu caminhar rápido equiparava sua velocidade à minha, já que eu alternava entre caminhar e pedalar quando a inclinação da subida era menor. Seguimos aproximadamente juntos até o fim da serra, na capela de Santiaguiño, quando iniciamos a triunfal descida de toda altura percorrida até ali e o deixei para trás. Até Redondela, volta-se, uma vez mais, ao nível do mar.

Cheguei ao albergue, na zona rural de Redondela, depois de ter vencido os 68 km da maior etapa da minha peregrinação. Diferentemente dos albergues que eu tinha ficado até então, com belos jardins, em casarões bonitos, este não possuía grandes encantos. Todas as dezenas de beliches ficavam em um único grande cômodo, sem paredes ou divisões internas, como em uma espécie de galpão. Esse cômodo dava acesso a dois banheiros, a uma cozinha comunitária e à recepção. Do lado de fora, havia mais duas casas: uma apenas com chuveiros, banheiros e lavanderia, e outra onde morava a família dos donos do albergue, um casal de uma argentina e um paraguaio. A argentina, também cidadã espanhola por ser neta de galegos, trouxe seu marido e filhos para a Espanha. O paraguaio se interessava muito pela história dos peregrinos e facilmente se engajava em longas conversas com os hóspedes. 

Fiz uma pequena caminhada até um restaurante ali perto, onde pude comer um farto hambúrguer com batata frita para repor as energias. Sentei em uma mesa de frente para a estrada, onde observava a vida passando devagar. A monotonia do lugar era quebrada apenas por peregrinos, que passavam cada vez menos conforme anoitecia. Eu pensava como soava improvável a Galícia ter uma rota de peregrinação capaz de mobilizar tantas pessoas. Quando voltei ao albergue, com a noite já caindo, horas após eu ter chegado, tomado banho e comido, encontrei o rapaz português da caixa de som fazendo check-in. Ele dispensou a apresentação do espaço que a argentina fazia com os recém-chegados, afirmando que sempre se hospeda ali quando faz o Caminho.










Dia 17/08/2024

Redondela a Pontevedra

Quando acordei, o dia estava ainda muito escuro. Os caminhos portugueses guardam uma peculiaridade: ao entrar na Espanha, os ponteiros do tempo se ajustam, avançando uma hora, a despeito de o sentido da viagem ser de sul para norte e não de oeste para leste. A Galícia, embora na mesma faixa longitudinal que Portugal, segue o mesmo horário do restante da Espanha. Isso fazia o sol nascer, mesmo em meados de agosto, às quase 8h da manhã. Não foi apenas a mudança do horário que estranhei durante minha primeira noite na Galícia: em lugar mais alto e distante do mar, fez um pouco mais de frio durante a noite.

Enquanto eu esperava o dia amanhecer para iniciar minha penúltima etapa, tomei um café da manhã oferecido pela argentina dona do albergue. Conversamos bastante sobre as semelhanças entre nossos países, bem como a vida como imigrante na Europa. Ela preparou torradas com geleia e café, que tomei lentamente enquanto o sol nascia. A cada gole, outros peregrinos despertavam ao meu redor. Seu marido, o paraguaio, estava na porta de saída do albergue se despedindo dos hóspedes um a um. Para cada um que passava, ele pedia para tirar uma foto e perguntava uma música que simbolizava a sua viagem para postar nas redes sociais do albergue.

Após três dias de peregrinação, eu já havia aprendido o melhor jeito de preparar a minha bicicleta antes de iniciar o dia. Eu viajava com um alforje duplo, uma bolsa no guidão, uma para o celular e uma bolsa de selim. As roupas e itens de higiene pessoal ficavam no alforje, enquanto as demais bolsas carregavam sobretudo ferramentas, itens de reparo de bicicleta e alguns objetos que eu precisava acessar com mais frequência, como pequenos lanches e protetor solar. Com duas cordas elásticas eu prendia, ainda, sobre o bagageiro, um saco de dormir e uma garrafa d'água que não cabia no suporte do quadro. Levava pouco, mas era tudo o que eu tinha. Ao fim de cada etapa, eu precisava retirar praticamente tudo da bicicleta e levar para o quarto do albergue, do mesmo modo que, no início do dia, precisava prender tudo de volta e garantir que minha bagagem estava bem fixada. Nessa manhã, como se meu corpo já soubesse o que fazer, fiquei pronto rapidamente.

Conforme eu adentrava no interior da Galícia, me aproximando de Santiago, o percurso passava por mais trilhos florestais, e os caminhos ficavam cada vez mais densamente povoados por peregrinos. Logo após deixar o albergue, com o fôlego fresco de um novo dia, iniciei a subida até o Alto do Lomba por uma estrada de terra ladeada por postes de alta tensão. A partir de então, tive pela frente a longa descida da serra com direção a Ponte Sampaio. A descida se dá também em trecho florestal, ao longo da enseada de San Simón, à esquerda. É um trecho belíssimo, onde a brisa marinha tão presente em Portugal volta a nos saudar.

Ao me aproximar de Ponte Sampaio, observei uma grande movimentação de peregrinos em uma linda lojinha chamada Casa Atilano. Parei minha bicicleta na estreita ladeira que termina no rio Verdugo e entrei para tomar um café. Em meio a deliciosos produtos locais, como geleias, mel e queijos, a dona da loja exibe com muito orgulho uma foto de seus avós, fundadores do estabelecimento em 1932, junto ao carimbo que eles usavam para estampar as credenciais dos peregrinos. Carimbei a minha com uma réplica do selo, símbolo das diferentes gerações de uma família que vende, há quase um século, suas mercadorias para os peregrinos. O carimbo ocupa uma página inteira da credencial e, dizem alguns, é o maior de todo o Caminho de Santiago. 

Há algo de extremamente belo nas pontes medievais. A ponte de Ponte Sampaio, construída no século X sobre fundação romana, compõe uma das mais lindas paisagens urbanas da peregrinação. Seu traço curto em arcos repousa sobre o rio e, com muita delicadeza, cumpre sua simples mas desafiadora função de ligar as duas margens. Para seguir o Caminho de Santiago, é necessário atravessá-la. Em 1809, a ponte foi palco de uma importante batalha dos espanhóis contra o poderoso exército de Napoleão. Os espanhóis, organizados em guerrilhas, destruíram dois arcos da ponte para impedir o avanço das tropas inimigas e se entrincheiraram na margem sul, armados com pedras, troncos de árvore e dois canhões. Derrotados, os franceses deixaram a Galícia pouco depois desse episódio.

Depois da passagem pela ponte, voltei a ter dificuldade com os caminhos florestais. Era hora, novamente, de abandonar as setas amarelas e tentar encontrar um caminho melhor. Após uma longa subida por trilha, onde era impossível pedalar, cheguei ao acostamento de uma estrada no topo de uma serra. O asfalto brilhava, reluzia, estava completamente novo e deserto. Não passava nenhum carro, não havia barulho. Tinha em minha frente uma enorme descida que me surgiu como a alegria que se localiza no extremo oposto em que se acha a dor. Seguir de bicicleta por essa estrada, na encosta de montanhas cobertas de vegetação, tornou-se minha obsessão. 

Antes de seguir, olhei meu GPS para confirmar que descer aquela serra me levaria a Pontevedra. Fazer o Caminho a pé ou de bicicleta tem suas nuances, e espero um dia poder fazê-lo a pé. Mas se existe uma sensação maravilhosa que apenas a bicicleta proporciona é a de poder descer uma montanha como essa. Do alto, eu conseguia ver floresta, montanhas a se perder de vista e a cidade de meu destino. Por alguns longos minutos de descida, eu era o único ser humano passando por ali. O topo da serra desaparecia atrás de mim conforme minha velocidade aumentava. Eu me sentia simplesmente um fragmento de matéria entregue à força da gravidade, do mesmo modo como o mais inútil dos objetos cai no chão se largado de alguma altura. Muitos fazem o Caminho de Santiago em busca de explicações sobre um mundo duro, complexo e para o qual atribuímos múltiplos significados. Para mim, poder ser apenas um objeto desprovido de qualquer sentido, sem carregar nenhum peso do mundo, foi a experiência que eu buscava quando me pus a correr o mundo até a Catedral de Santiago.

Assim, cheguei à Pontevedra, onde logo me perdi no emaranhado de ruas do centro histórico. Eu procurava a Capela da Virgem Peregrina, mas a cidade parecia me querer ali por mais tempo. Pontevedra, com sua origem envolta em um mito tão grandioso quanto os versos de Homero, teria sido fundada, segundo se conta, por Teucro, herói da Guerra de Troia, que, ao ser renegado por seu pai Telamon, buscou ali um recomeço.

A Capela da Virgem Peregrina guardava, em sua planta singular em formato de vieira, um tributo aos peregrinos. Ali se viveu um complicado paradigma de se homenagear duas padroeiras das rotas jacobeias: a Virgem do Caminho e a Virgem Peregrina. Até o século XVIII, Pontevedra cultuava a Virgem do Caminho em alusão a uma lenda da peregrinação da Mãe de Jesus ao túmulo de Santiago, desde a antiga cidade de Éfeso, na atual Turquia. Nessa época, peregrinos franceses trouxeram a imagem da Virgem Peregrina, que adquiriu também grande devoção. Essa dualidade resultou na convivência das duas imagens sob um mesmo teto, na Capela da Virgem do Caminho, cada uma com seu altar, sob tutelas distintas. Quando uma tempestade devastadora em 1795 destruiu a antiga capela, a longa reconstrução celebrou a Virgem Peregrina, agora a padroeira incontestável de Pontevedra.





Pontevedra a Calda de Reis, fim da quarta etapa

Ao deixar Pontevedra, afastei-me definitivamente do último centro urbano de maior porte até Santiago de Compostela. Restavam 65 km. O caminho até Calda de Reis se deu por encantadores povoados e estradas do interior galego, onde um peculiar elemento arquitetônico me causou espanto, assim como os moinhos de vento de La Mancha causaram a Dom Quixote. Eram construções de pedra, às vezes com um telhado de madeira, em formato de um prisma com base pentagonal e faces longas. Seu corpo era erguido do solo por eixos de duas colunas de pedra, parecendo patas de um monstro fantástico. Apesar de terem o teto ornado por uma cruz, pareciam estruturas pagãs, de rituais esquecidos pelo tempo, onde mais se valorizava a terra do que os céus.

As estruturas que preenchiam o meu caminho, logo aprendi, eram os espigueiros, típicos do noroeste da Península Ibérica. Estavam por toda a parte, nos quintais das casas, na beira da estrada e nas encostas dos montes. Na Galícia, dizem quem não há dois iguais. Descobri também sua função: armazenar e proteger o milho após a colheita, mantendo-o erguido em relação ao solo para proteção contra a umidade e animais. As paredes laterais possuem fissuras para circulação de ar e o telhado fornece proteção contra a chuva. O formato remete a uma casa, e elementos religiosos são usados na decoração.

Quando dei por mim, cheguei ao meu albergue, localizado junto a um campo repleto de videiras, na área rural de Calda de Reis. Ainda estava cedo, havia pedalado menos do que nos dias anteriores e meu corpo queria ir mais longe, já vislumbrando a chegada à catedral do apóstolo. O albergue tinha um sereno quintal, onde crianças de uma família local que foi ali almoçar e passar o dia brincavam em um largo ofurô. Resolvi conceder-me uma pausa no frenético ritmo das etapas e me permiti apenas observar o tempo passar. Encontrei no albergue uma pequena biblioteca com muitos livros sobre a geografia da Galícia, os quais li e fiz algumas anotações absorvendo as paisagens descritas. Gostaria de ter encontrado algum texto em galego para me aventurar no idioma, mas infelizmente não havia nenhum. Mais ao fim do dia, aproveitando ainda as longas horas de um sol forte, parei para lavar e secar minhas roupas, como em um ritual de limpeza antes de chegar a um local sagrado.


Dia 18/08/2024

Última etapa: Calda de Reis, Padrón e Santiago de Compostela

Finalmente começou o último dia da peregrinação. Fiz os meus preparativos ainda antes da alvorada, o breu era suavizado apenas pela lanterna do meu celular. Tomei o café da manhã junto a outros hóspedes, que saíam aos poucos, antes de mim. Quando o dia clareou, deixei o albergue e os ultrapassei de bicicleta me despedindo de novo e desejando bom caminho a cada um. Diferentemente dos outros dias, onde minhas jornadas eram feitas de maneira mais contemplativa, até preguiçosa, dessa vez eu fui envolvido por uma estranha inquietação, ansiava por chegar logo.

Caldas de Reis surgiu diante de mim como um suspiro breve. Rapidamente passei por seu centro, que não havia visto no dia anterior. É uma cidade pequenina, cortada pelo Rio Ulmia e alguns de seus afluentes; passar por ela quase não me tomou tempo. Caldas de Reis é famosa sobretudo pelos banhos termais, bem conhecidos ao menos desde o tempo dos romanos, que chamavam a localidade de Aqua Celenae.

O dia começou muito nublado, quase chuvoso, o que aumentou ainda mais a minha sensação de pressa. Eu pedalava pensando em chegar antes de a chuva cair, como se eu não fosse passar as próximas cinco horas ao ar livre. Voltei a passar pelos estreitos trilhos florestais, onde muitos peregrinos andavam em fila e tornavam minha progressão mais lenta. Apenas fiz uma pausa quando cheguei a uma bonita igreja construída toda em pedra, ainda na zona rural a norte de Calda de Reis. A igreja se chamava Igrexa de Santa Mariña de Carracedo. Possuía em seu entorno um cruzeiro, bancos também de pedra e era envolvida por um pequeno muro, ideal para sentar-se e descansar. Ao lado, havia um descampado onde vacas pastavam, compondo uma linda paisagem campestre, que me trouxe de volta aos azulejos da estação de São Bento, no Porto, onde havia começado minha viagem. Aos poucos eu já ia me despedindo das paisagens e histórias dos caminhos de Santiago. Parei para respirar, tirar fotos e pegar o meu primeiro carimbo do dia. Observei que as nuvens escuras estavam se dissipando e guardei a capa de chuva que havia vestido no início do dia antes de seguir até Padrón. As nuvens não voltariam mais a me ameaçar, e o dia ficava cada vez mais bonito conforme me aproximava de Santiago.

Ao chegar em Padrón, encontrei uma cidade viva com uma grande feira de rua às margens do rio Sar. Foi preciso descer da bicicleta para poder avançar no meio da pequena multidão que se formava. A rua terminava na junção com a ponte de Santiago, diante da Igreja de Santiago Apóstolo de Padrón. A tradição diz que foi nessa cidade, antiga Iria Flavia, que Santiago pregou pela primeira vez na Península Ibérica. Também foi ali que seu corpo e cabeça teriam chegado antes de serem levados para sepultamento em Compostela. O topônimo do município remete à lenda do apóstolo: a barca na qual viajou foi supostamente amarrada a uma pedra (pedrón em galego), hoje situada por baixo do altar da igreja. Depois de ter pedalado tantos quilômetros durante cinco dias, eu havia chegado ao espaço físico onde os fatos míticos teriam acontecido. Até então, eu estava ainda no vasto território por onde a lenda se espalhou. Agora, eu havia definitivamente entrado na última etapa da peregrinação.

Na saída de Padrón, o caminho por diversas vezes tangencia ou mesmo conflui com a N-550, estrada nacional espanhola que, assim como o Caminho Português de Santiago, segue partes do trajeto da antiga Via XIX entre Tui e Coruña. Ela na verdade está presente em todo o Caminho Português na Galícia, mas a evitamos ao máximo. Nos arredores de Padrón, contudo, precisamos passar por ela com um pouco mais de frequência. Assim, me espremi entre carros em A Escravitude, em um pedaço estreito da via, onde um santuário se ergue bem na beira da estrada. Ali, vira-se à direita para retornar aos caminhos rurais e florestais, iniciando-se uma longa subida que nos leva até O Milladoiro. Embora longa, a declividade não era tão acentuada, e passei por ela sem grandes dificuldades, na maior parte do tempo sem perceber que estava em trecho de subida.

Em Milladoiro, a longa jornada já estava praticamente concluída. Nesse ponto, faltavam apenas 6 km até a Catedral de Santiago. O Milladoiro se tornou um lugar emblemático na peregrinação: por ser um ponto alto, no topo de uma colina, era de onde se podia ver as torres da catedral pela primeira vez. Existem diferentes versões sobre o topônimo relacionados à peregrinação. A primeira delas diz que era onde os peregrinos "se humilhavam" ao ver a igreja, botando-se de joelhos no chão, de onde teria surgido o nome "humilhadouro". Uma segunda versão diz que o nome surgiu da palavra "mirador", ou mirante, devido à vista para a catedral. Por fim, uns acreditam que a palavra, em galego medieval, denotava uma pilha de pedras, como um marco, que peregrinos formavam como sinal de sua passagem por ali. Apesar do forte significado, O Milladoiro não me despertou nenhum sentimento, tampouco pude atestar se era possível avistar a catedral, ainda hoje, dado o número de prédios no povoado. Já na região metropolitana de Santiago de Compostela, havia um movimento mais intenso de carros, e novamente me pus na rodovia N-550 para poder entrar na cidade.

Entre o Milladoiro e Santiago de Compostela, o relevo faz um pequeno U, e logo eu estava em uma nova subida indo de encontro à catedral, no ponto mais alto da cidade, onde catedrais devem estar. Na subida, todo o sentimento de pressa e ansiedade que senti no início do dia voltou, como se o destino me chamasse com urgência. Muitos peregrinos chegavam comigo, carregando suas mochilas ladeira acima, pelo acostamento da estrada, ritmados e calados, como em uma oração em marcha. Eu, nesse momento, me sentia um atleta olímpico, em uma maratona, após passar pela última curva e entrar na reta da linha de chegada, em primeiro lugar, prestes a colher os louros da vitória. Imaginava que uma nação inteira me assistia e torcia por mim.

Em algum momento da ladeira, entrei nos limites do município de Santiago de Compostela, pela Rua da Volta do Castro, a sudoeste do centro. A partir de então, segui um caminho bem reto, até que cheguei às movimentadas vielas do centro histórico, onde desci da bicicleta. Terminei por completar os últimos metros da peregrinação à pé. Cheguei à catedral primeiro pela fachada sul, na Praça das Pratarias, onde fica a entrada para fiéis, peregrinos e demais visitantes. Diante da escadaria que dá acesso à basílica, havia uma imensa fila, daquelas de dar volta no quarteirão, que me afastou daquele espaço apertado e me encaminhou para a ampla Praça do Obradoiro, onde pude, de uma vez por todas, desfrutar de minha chegada. Ali é o ponto de encontro de todos peregrinos, dos mais variados lugares do mundo, onde as fisionomias cansadas se transformam em semblantes de triunfo e emoção. Muitos caíam aos prantos diante da catedral, grupos se abraçavam e celebravam o fim da peregrinação. Uns erguiam a bandeira de seu país, outros tiravam fotos usando uniformes criados especialmente para o Caminho. Muitas mochilas eram deixadas no chão, e peregrinos deitavam com as pernas para cima, a massageavam, uns a tomar sol, outros nas sombras das bordas da praça. 

O que fazemos quando cumprimos um objetivo que tanto almejamos? No caso do Caminho de Santiago, há algumas tarefas e rituais que costumam ser cumpridos na chegada. O primeiro é entrar na catedral, ir  ao túmulo do apóstolo e abraçar sua escultura no altar-mor. Não menos importante, deve-se levar a credencial com os carimbos até a Oficina de Acolhida ao Peregrino para obter a Compostela, documento emitido pelas autoridades eclesiásticas, escrito em latim e que comprova que a peregrinação foi feita por motivos religiosos ou espirituais. Há também a missa do peregrino, em que se lê o nome de quem obteve a Compostela nas últimas 24h. Da Praça do Obradoiro, voltei-me primeiro para algumas de minhas necessidades práticas mais iminentes. Eram cerca de 13h, e o ônibus que me levaria de volta à Lisboa sairia mais tarde naquele mesmo dia, às 18h. Fui então buscar a minha Compostela. Em seguida, bati na porta de um albergue, na mesma rua da oficina, para poder tomar um banho e deixar minha bicicleta e minha bagagem. A essa altura eu já estava com muita fome e parei em um restaurante, também ali perto, para poder almoçar. Eu passei tanto tempo planejando o Caminho, detalhes do percurso, mas esqueci de pensar no que faria ao chegar. Notei que não haveria tempo suficiente para entrar na catedral, dada a longa fila de espera.

A Praça do Obradoiro, embora grandiosa e icônica, revelou-se um contraste marcante com os caminhos que percorri até ali. O lugar estava cheio, caótico, de um jeito que eu não sentia desde que deixei o Porto. A longa fila para entrar na catedral era um lembrete da metrópole que Santiago de Compostela é hoje - uma cidade vibrante e movimentada, muito distante da serenidade dos vilarejos por onde passei. Senti uma irritação inesperada, quase um luto pelo silêncio, introspecção e sensações que havia deixado para trás. Mas ao mesmo tempo, entre a confusão e as celebrações ao meu redor, lembrei-me de outras experiências na vida que me ensinaram algo semelhante: o caminho importa mais que a chegada. Ao olhar para trás, a distância que percorri - os 270 km - já não parecia mais tão longa. Cumprir um objetivo é, no fundo, um convite a seguir adiante, a buscar novos horizontes. Santiago não era o fim. Era apenas uma pausa no grande caminho que continua, tanto em direção ao próximo destino, quanto dentro de mim.











IV. Aprendizados

Do mesmo modo como listei dificuldades de planejamento e preparação para o caminho na postagem sobre o roteiro, listo agora um anexo com aprendizados que coletei durante a jornada. São algumas informações que, caso eu soubesse antes, teria aproveitado melhor a jornada.

- Setas amarelas: o caminho é amplamente sinalizado com setas amarelas indicando a rota oficial para Santiago. Setas azuis também são muito frequentes. Demorei a entender o que elas significavam e notei que muitos caminhantes também tinham essa dúvida. No contexto dos caminhos portugueses, as sinalizações azuis indicam a direção de Fátima, na maior parte do tempo como caminho inverso ao de Santiago. Em alguns pontos onde é mais fácil se perder, um "X" amarelo indica que você seguiu a direção errada. As setas são pintadas em pedras, postes e paredes. Nas zonas mais rurais e interioranas, é possível confiar apenas nas setas e seguir seu caminho sem muita preocupação com a orientação. Nas cidades, contudo, com tantos estímulos visuais, é fácil não perceber alguma seta e errar o caminho. Nesses casos, um mapa ou GPS serão seus melhores amigos.

- Seguindo a sinalização: seguir a rota oficial de bicicleta pode ser inconveniente em alguns trechos, onde se anda por trilhas estreitas, com muitas pedras e raízes de árvore. Além disso, muitas passagens no caminho, principalmente em Portugal, são formadas por paralelepípedos, sobre onde também é ruim pedalar. Nesses casos, convém desviar um pouco da rota oficial, pensada sobretudo para peões andarem longe dos carros e em contato com a natureza. As cidades litorâneas portuguesas possuem extensa rede de ciclovias junto ao mar. O mesmo acontece no rio Minho, quando deixamos o oceano e adentramos no continente margeando o rio. Geralmente são redes chamadas de eco via ou via litoral. Não é preciso ter medo de se perder, afinal nada facilita mais a orientação do que seguir um curso d'água; mantenha o mar ou rio sempre a sua esquerda e você estará na direção certa até a Galícia. O caminho oficial, por outro lado, nas zonas litorâneas costuma seguir um pouco mais por dentro, onde a paisagem se torna monótona depois de um tempo, sem muitos pontos de interesse relacionados à peregrinação. De modo geral, uma bicicleta de montanha passa sem dificuldades pelo terreno durante todo o caminho. O sul da Galícia, entre Tui e Redondela, foi onde tive mais dificuldade. Sair da rota oficial me rendeu boas surpresas, como ter uma bela vista do aqueduto de Vila do Conde ou descer sozinho uma serra com asfalto renovado perto de Pontevedra.

- Nortada (vento do norte): eu ouvi falar da nortada antes de iniciar meu caminho, mas não tinha ideia do quão difícil seria pedalar contra esse forte vento. Em meu primeiro dia, entre Porto e Esposende, enfrentei a forte ventania quando faltavam 15 km para completar a minha etapa do dia, após ter andado já mais de 40 km. Foi o único momento de todo o caminho que temi não conseguir cumprir meu roteiro. Para atenuar os efeitos do vento, resolvi fazer desvios para fora da costa, o que me permitiu seguir viagem em condições melhores.

- Albergues: fiz todas as minhas reservas com antecedência e não tive nenhum problema. Era bom começar o dia sabendo que eu chegaria ao meu destino tendo uma cama garantida para descansar. O lado negativo é que ter reservas fechadas coloca uma pressão para que você se mantenha no seu roteiro e tiram um pouco da flexibilidade da viagem. Planejar reservas para cinco dias, como no meu caso, foi fácil, mas em peregrinações mais longas, a partir de 10 dias, torna-se difícil prever com acurácia onde passará todas as suas noites. Acho que o melhor dos mundos é não reservar com tanta antecedência, mas sempre sair para o próximo destino tendo uma reserva confirmada. Conversei com pessoas que reservavam albergues sempre no mesmo dia e funcionava bem. Além disso, os albergues costumam ter um horário limite para entrada, entre 18h e 20h. A recepção fecha, mas os donos costumam deixar algum contato telefônico para peregrinos que se atrasaram em seu caminho. Vi casos de viajantes chegando depois do horário, mas entrando tranquilamente. Pelo que percebi, os albergues em que me hospedei atingiram praticamente toda lotação. 

- Localização dos albergues: levar em conta a localização precisa dos albergues na hora de escolhê-los e planejar o roteiro. A maioria das cidades no caminho, embora os núcleos urbanos costumem ser pequenos, possuem extensas zonas rurais, onde alguns albergues se localizam. No meu planejamento de distâncias, fiz as contas considerando as distâncias entre os centros da cidade, o que gerou variações entre o roteiro inicial e as distâncias reais percorridas em algumas das etapas. Essa diferença, quando acumulada etapa após etapa, pode causar grandes distorções no roteiro. Em Esposende, meu albergue ficava a 3 km do centro, em Redondela a 3,5 km e em Calda de Reis a 2 km. A maior variação que tive em uma etapa entre o planejado e o percorrido foi de 5 km além do planejado. De bicicleta, alguns poucos quilômetros a mais no fim de uma etapa não fazem tanta diferença, mas a pé podem ser brutais.

- Lavagem de roupa: eu decidi fazer uma mala de modo a não precisar lavar roupa no caminho, mas me arrependi. Em todos os albergues que fiquei, era muito fácil lavá-las e secá-las. O ideal é levar três mudas, o que permite lavá-las dia sim, dia não. Os albergues contam com máquinas de lavar e cobravam cerca de 3€ para utilizá-las. Os dias de verão são longos, e sempre que eu chegava ao albergue, havia bastante tempo disponível para lavar, estender e secar as roupas. Ainda que eu tivesse roupa suficiente para os cinco dias, preferi lavá-las uma vez no meio da viagem, pois transportar tanta roupa suja e suada já estava me incomodando. Vale ressaltar que, quanto menos roupas na bagagem, menos peso é necessário carregar.

- Zonas metropolitanas e industriais: o Caminho de Santiago não é prazeroso e contemplativo em toda a sua extensão. Em alguns momentos, precisamos andar em estradas, atravessar viadutos e transitar em zonas industriais. Dois trechos me marcaram negativamente: a região metropolitana do Porto e a zona industrial de Porriño. No Porto, a rota oficial segue por uma extensa zona industrial e aeroportuária, em caminhos estritamente urbanos, por praticamente todo o tempo até Vila do Conde, onde se vê o mar pela primeira vez. Depois, descobri que há uma rota alternativa que margeia o rio Douro até o mar, passa por Matosinhos e segue, desde então, pela costa. Em Porriño, há uma imensa zona industrial às margens de uma estrada retilínea que parece não ter fim. As sinalizações oficiais indicam um desvio que evita as fábricas, mas preferi ir por lá por a distância ser mais curta e, sendo uma via asfaltada, por ser melhor para a minha bicicleta.

- Temperatura: fiz a viagem em agosto, época de muito calor na região. Sofri com um calor de 35 graus na extenuante subida a Santiaguiño de Antas, entre Porriño e Redondela. Ainda que a temperatura fosse alta, de noite e nas primeiras horas da manhã faz um pouco de frio, maior nas etapas finais, que se localizam mais a norte, mais longe do mar e com altitude mais elevada. Eu não levei tanta roupa de frio, apenas uma capa de chuva corta-vento, que serviu perfeitamente, e uma calça conversível, que acabei não usando.

- Fuso horário: quando se cruza a fronteira entre Portugal e Espanha, adianta-se uma hora no relógio. Embora eu não tenha levado isso em conta em meu roteiro, a diferença de horários não me prejudicou. Esteja, contudo, atento caso seu planejamento envolva horários precisos no dia de atravessar a fronteira, ou caso precise estimar um horário de chegada ao albergue.

- Saco de dormir: é recomendado que se leve (especialmente nos albergues públicos), mas eu acabei não usando nos albergues privados, onde recebi roupas de cama que julguei limpas. Ainda assim é um item importante para higiene e proteção do frio que possa fazer a noite, já que nem todos os lugares fornecem edredom. Em minha experiência, passei muito mais calor do que frio nos albergues, mas tive uma noite ruim de sono em que passei um pouco de frio sem ter deixado meu saco de dormir ao alcance para me aquecer um pouco. 

- Beliche: não sei se por azar, mas em todas as minhas noites em albergues fui colocado em uma cama alta de beliche. Na terceira noite, dadas as dores no corpo, estender as pernas e fazer força para erguer o corpo naquelas pequenas escadas era um esforço tremendo. Se durante o caminho as dores estiverem muito fortes, lembre-se de solicitar camas baixas no ato da reserva.

- Distâncias de bicicleta: percorrer 60 km por dia está de ótimo tamanho. Sem pressa, parando para comer e para contemplar o caminho, cada etapa me tomava de 4 a 5 horas em movimento, e 7 a 8 horas de tempo total. Eu começava meu dia tão logo o sol nascesse, entre 7h e 8h e planejava concluir no meio da tarde, por volta das 15h. Em meu planejamento, procurei destinar 60 km para cada etapa, até que restaram 80 km finais entre Redondela e Santiago. Decidi dividi-los em duas etapas de 40 km, mas era melhor ter divido entre 60 km e 20 km. Na penúltima etapa, quando andei 40 km, cheguei muito cedo ao meu destino e com bastante disposição para seguir viagem. Do mesmo modo, se eu tivesse andado apenas 20 km na última etapa, teria tido mais tempo em Santiago para aproveitar a cidade e entrar na longa fila para visitar a catedral.