— Sire, já te falei de todas as cidades que conheço.
— Falta uma de que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça.
— Veneza — disse o Kan.
Marco sorriu. — E de qual julgavas que eu te falava?
O imperador nem pestanejou. — Mas nunca te ouvi dizer o seu nome.
E Polo: — Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
— Quando te pergunto por outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te pergunto por Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implícita. Para mim é Veneza.
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
1. A cidade e o desenho do tempo
O Marrocos não se descreve, se vive. Mas se fosse possível descrevê-lo, talvez fosse como um tapete entrelaçado por cheiros e cores, onde cada fio conduz a um destino inesperado. Que palavras podem descrever o ar quente de uma medina, onde o cheiro das especiarias se dissolve, ou o céu estrelado visto entre a poeira dourada do deserto do Saara? Cada elemento se insinua na narrativa, mas antes que se possa fixá-lo, já se move como a areia ao vento.
Marraquexe me recebeu com a agitação própria dos grandes acontecimentos. Havia ali um festival internacional de cinema, pelas ruas transitavam mulheres em vestidos elegantes e homens de trajes impecáveis. Como um estrangeiro que acabou de aterrissar no país, o que vi foi um país moderno, aberto para o mundo. Do aeroporto até minha hospedagem, foi um curto caminho, apesar do tumulto causado pelo festival.
Minha primeira noite foi breve, em um conjunto habitacional perto da estação de trem, por onde tomaria meu rumo em direção a Casablanca na manhã seguinte. A entrada do edifício, com um emaranhado de corredores que não pareciam traçados por um arquiteto, já era um prenúncio das medinas medievais. O apartamento tinha um jogo de espaços que carregavam a tradição marroquina: uma sala ampla, quase vazia, exceto por um grande sofá que percorria todas as paredes, um tapete de centro e uma pequena mesa que podia ser facilmente transportada de um lado para outro. Parecia uma tenda, como às dos nômades do deserto, maleável e disfarçada de apartamento. O amplo espaço era um convite à reunião, ao convívio.
Alcancei a hospedagem às 22h e logo percebi que não seria difícil achar comida a essa altura do dia. Ao lado, uma cafeteria funcionava a noite inteira, estava movimentada, homens traziam seus computadores para trabalhar, sorviam chá e fumavam seus cigarros. Mais adiante, barracas de comida perfilavam-se ao longo da calçada, servindo passageiros do terminal de ônibus que também ficava por ali. O ambiente era iluminado pela luz difusa das lâmpadas, filtrada por lustres e abajures ornamentais. A noite não trazia ausência, mas continuidade, talvez como um eco da antiga tradição do Ramadã entre sociedades muçulmanas, quando se deve jejuar durante a luz do dia e saciar-se à noite.
Pela manhã, cheguei à estação central de Marraquexe. Sua estrutura é grandiosa, homenageia as construções fortificadas tão presentes no Magrebe. Por dentro, o ambiente era novo, havia uma praça de alimentação com as principais redes internacionais de fast-food, lojas e o silêncio adequado às viagens de trem, quebrado apenas pelo arrastar das malas. Entrei em meu vagão e encontrei meu assento em uma cabine de seis lugares, com fileiras de três assentos dispostas de frente para outra, daquelas em que os passageiros são obrigados a se encararem. O fluxo de pessoas entre as estações no caminho criava histórias efêmeras. Um grupo de quatro senhoras tentava remanejar seus assentos com outros passageiros para sentarem juntas. Uma mulher estudava os papéis de sua universidade escritos em francês. Ao meu lado, um senhor de tempos em tempos lia passagens do alcorão. O trem avançava sob a paisagem árida.
Depois de três horas e meia no trem, chega-se à Casablanca. Desembarquei na estação Casa Voyageurs, tingida de branco, em estilo colonial francês. Dali tomei um bonde em direção ao Marché Central, que deslizou pelo longo Boulevard Mohamed V, com seus diversos exemplares da arquitetura Art Decó, de edifícios claros, cor branca e varandas ornamentadas. Ao branco contrastava o vermelho dos meios de transportes, dos taxis e do próprio bonde em que eu estava, pulsando como o sangue da cidade entre os edifícios estáticos. As palmeiras completavam a paisagem essencialmente urbana de uma metrópole distinta das outras, de forte identidade.
Completei o trajeto até a minha riad a pé, atravessando uma fronteira muito clara nas grandes cidades marroquinas, entre a cidade velha e a nova. Os bairros novos, chamados de Villes Nouvelles, foram erguidos durante o período do protetorado francês (1912-1956), planejados com conceitos urbanos modernos para abrigar os expatriados europeus. A ideia era atender aos interesses econômicos coloniais: em Casablanca, foi criado um complexo automotivo e industrial que incluía ruas planejadas, malha ferroviária e o porto. A cidade velha, chamada de medina, por sua vez, surgiu de forma orgânica, ao longo de muitos séculos, dentro de muros, onde as técnicas de construção e habitação dos antigos marroquinos se prolonga no tempo.
Não foi muito difícil de me orientar na medina de Casablanca. A riad em que me hospedei ficava logo próxima a uma entrada, por um largo boulevard. Também a medina de Casablanca não é, relativamente, tão antiga, já que foi reconstruída depois do grande terremoto de 1755, o mesmo que destruiu Lisboa e cujos efeitos foram sentidos até no litoral de Pernambuco. Achada a rua, a maior dificuldade foi, contudo, perceber, no meio de tantas portas, em qual eu deveria entrar. Do lado de fora, a riad apresenta-se com discrição: um muro sólido, uma porta estreita, sem sinais de opulência. Por dentro, esconde luxo e um frescor que silencia o barulho da medina.
Riad - jardim em árabe - é o nome que se dá às tradicionais habitações das medinas no Marrocos. Elas são fechadas para o exterior e contam com um pátio central interno, de formato retangular, geralmente ajardinado. Possuem não mais do que três andares, e às vezes uma dezena de quartos, todos com portas voltadas para o pátio interno. Eram habitações construídas por famílias ricas e decoradas tais qual um palácio. Do terraço, pode-se ver o pôr do sol, a laje de outras riades e tomar um chá. Em anos mais recentes, as famílias ricas preferiram se mudar das medinas para os bairros novos, deixando muitas riades abandonadas e deterioradas. Hoje, renasceram como hotéis e restaurantes.
Ao atravessar a cidade velha de Casablanca, cheguei à magnífica Mesquita de Hassan II, construída pelo Rei Hassan II como um mausoléu para o seu pai, Rei Mohammed V, primeiro rei após a ocupação francesa. A mesquita marca uma continuidade entre a arte marroquina ancestral e as técnicas modernas de construção. O minarete, as típicas torres construídas ao lado das mesquitas, é o segundo mais alto do mundo, visível a quilômetros de distância. Durante a noite, luzes de led apontam a direção de Meca, para onde os muçulmanos devem rezar cinco vezes ao dia. A construção conta com tecnologia anti-sísmica, portas elétricas e teto retrátil. Seis mil artesãos marroquinos, de habilidades excepcionais, trabalharam durante cinco anos na decoração, criando mosaicos deslumbrantes, arcos, colunas de mármore esculpido e portas de bronze ornamentadas. A mesquita pousa sobre o oceano, inspirada em uma passagem do alcorão que diz que o trono de Deus encontrava-se sobre a água.
A mesquita é uma das poucas do mundo que permite a entrada de não muçulmanos, mas apenas em dias e horários específicos, que não coincidiram com minha passagem por ali. Foi projetada para acomodar mais de 100 mil fiéis, 80 mil no amplo pátio exterior, 25 mil nas salas destinadas às orações. Os espaços de reza de homens e mulheres eram separados. Os homens acessavam a mesquita por um imenso e lindo portal, enquanto mulheres usavam uma entrada discreta, pelas laterais, depois de descer um pequeno lance de escadas. Na entrada dos homens, podia-se pegar uma sacola em um baú para colocar os sapatos; para entrar é necessário estar descalço. Um segurança vigiava a porta e barrava a entrada de mulheres desavisadas e homens que julgava não serem muçulmanos. A avaliação se dava apenas pela aparência dos visitantes. Os loiros, altos e brancos, por padrão, eram barrados. Quem não falava árabe, talvez se passasse por turco. Por uma falha do método, quando passei por ali, em meio a turistas e mulheres que se aglomeravam na porta para tentar ver a mesquita por dentro, repeti o gesto de retirar o sapato que os muçulmanos faziam e a minha entrada foi permitida.
Quando se entra, a vastidão impressiona. Não deve haver, no mundo, templo mais digno para um encontro com Deus. Andar descalço, em um espaço tão amplo, o chão todo coberto por suaves tapetes em tons de vermelho e branco, como um deserto domesticado, é uma sensação muito prazerosa que pouco praticamos. Os arcos, o teto alto e a pouca luz que entrava não intimidavam; acolhiam, convidando à introspecção. Diferentemente dos templos cristãos, não há símbolos, imagens humanas retratadas. A arte fala por si só, seu significado é imaginado e moldado pela espiritualidade de cada um. A memória presente naquele lugar, construído por tantos artesãos motivados pela fé, em vez de reforçar nossa irrelevância, nos envolve em sua grandeza.
![]() |
Marrakesh |
![]() |
Mesquita de Hassan II |

![]() |
Casablanca |
2. A cidade e o caos planejado
Na manhã seguinte, continuei meu caminho, novamente em um trem. Aqui deveria ser o início do meu relato, onde o Marrocos parecia de fato começar. Cheguei em Fez e procurei um táxi para me levar até a medina. A riad que reservei havia previamente enviado instruções para encontrá-la. Eu deveria ir até o "Blue Gate", lugar mais próximo que um carro poderia chegar, e depois seguir a pé por dentro da medina. O taxista não entendia o que era "Blue Gate", só soube do que se tratava quando mostrei o nome árabe, "Bab Bou Jeloud", no celular. Seguimos de carro, passamos pelos muros da cidade velha e logo estávamos na entrada daquele mundo enigmático.
Dentro da medina, o lado de fora dá lugar a uma realidade atemporal. A medina de Fez parece uma das cidades descritas por Marco Polo a Kubai Klan em Cidades Invisíveis. Talvez se assemelhe à Zobeida, construída entre muros, pela memória de homens que sonharam o mesmo sonho, em que perseguiam uma mulher nua por uma cidade desconhecida. Ao despertarem, cada um criou o traçado das ruas conforme recordava de seu sonho, erguendo muros para que a mulher não escapasse. Nunca foram, contudo, capazes de encontrá-la. Trata-se de um paradigma diferente de cidade, fictícia e metafórica, como uma realidade construída a partir de um sonho.
É difícil descrever uma medina a partir de referências conhecidas. A primeira impressão que se tem é a de um grande bairro de comércio popular, lembrando a rua da Alfândega no Rio de Janeiro ou a rua 25 de março em São Paulo, ambas cuja origem remete à imigração sírio-libanesa para o Brasil. A medina de Fez, a maior do mundo islâmico, contudo, tem uma escala muito maior, como uma rua da Alfândega multiplicada por mil. O tamanho, a informalidade urbana, as ruas sem traçados planejados, as casas às vezes sem acabamento, as lajes das construções, lembram, a grosso modo, uma favela. Mas a medina não é margem, não é periferia. É centro, é origem, é a essência uma nação.
Cabe, assim, perguntar: como tudo isso começou, como a cidade evoluiu até ficar desse jeito? Tentei buscar explicações. A que mais me convenceu, e que pude atestar através dos sentidos, é que a forma da medina foi o artifício que tornou a vida no deserto uma hipótese plausível. As ruas apertadas são sombreadas, a casas de barro isolam o calor, feito uma estufa às avessas. Dentro das construções, a temperatura é mais amena que nas ruas, que, por sua vez, é mais amena que do outro lado do muro, onde o sol arde. A medina é um ecossistema que respira, expulsando o calor e retendo o ar fresco.
Seria o caos, se não fosse a ordem implícita que governa cada transação, cada gesto. São em torno de 800 mil habitantes, a maioria de classe média ou pobre, transitando por cerca de 7 mil vielas labirínticas, algumas tão estreitas que se passa apenas uma pessoa por vez. O comércio exerce um papel central. Os vendedores são hábeis, se comunicam em diversas línguas, como se as tivessem aprendido no berço de Babel, e guardam o antigo saber de negociar. Ali se vende de tudo: tapetes, especiarias, cerâmicas, lustres, roupas, alimentos, perfumes, quinquilharias chinesas, óleo de argan, artigos de couro, cobre, joias. É possível perceber uma certa setorização, não sei se por um acordo não declarado, onde lojas que vendem o mesmo tipo de produto se aglomeram. Para comprar, no entanto, é necessário ter paciência e disposição para negociar: nenhum produto tem preço fixo, o valor pago será sempre um meio termo entre o preço informado pelo vendedor e a oferta inicial do comprador. A tradição berbere diz que tanto quem compra quanto quem vende deve sair feliz ao fim de uma transação, cujo objetivo é chegar ao ponto ótimo e justo entre o que um pode pagar e o que outro pode vender.
Orientar-se dentro da medina é um desafio. Os habitantes locais, sabendo disso, muitas vezes se oferecem como guias, nem sempre, infelizmente, agindo de boa fé. Às vezes a intenção é receber alguma recompensa por ter te ajudado. Nesses casos, o valor a ser pago também passa pelo processo de barganha, com valores altos pedidos inicialmente. Em outras situações, te levam até alguma loja e logo você se vê, contra sua vontade, assistindo a demonstrações de produtos e tendo que se desvencilhar do vendedor. Um último caso é quando você passa a seguir alguém dizendo te mostrar algum lugar secreto que só os locais conhecem, até um ponto em que você fica completamente perdido. O suposto guia, então, te pedirá dinheiro para te levar ao seu destino, de modo que você se sente inseguro e coagido a pagar. São relatos comuns, mas não cheguei a passar por nada disso. Para lidar com tais golpes, basta dizer "não" firmemente, de forma cordial. Posto isso, não chega a ser perigoso. A maioria dos marroquinos se incomoda com essa fama de trapaceiros e querem que o visitante estrangeiro tenha uma boa experiência em seu país, para que sempre voltem. Perder-se na medina é inevitável, faz parte da experiência, chega a ser lúdico. É um dos maiores encantos do Marrocos.
Depois de um susto inicial, os segredos da medina começam a ser desvendados, ao passo que andar por ela se torna mais fácil. A medina de Fez tem duas artérias principais, que a percorrem de leste a oeste, ligando o Blue Gate à Universidade Al Quaraouiyine: são as ruas Talaa Kebira (grande ladeira) e Talaa Seghira (pequena ladeira). O truque é, sempre que se perder, procurar uma dessas ruas, seja usando um GPS ou perguntando para comerciantes ou transeuntes. Uma informação valiosa: as ruas possuem nome e placas de identificação. Se o formato da placa for retangular, significa que é uma rua aberta que se conecta a outras. Se, por outro lado, o formato for hexagonal, será um beco sem saída. A maioria dos golpes é dado por homens jovens, sendo recomendável pedir informações para mulheres, pessoas mais velhas ou pessoas trabalhando. Aprenda, também, a chegar à sua riad a partir de uma dessas ruas principais, e o seu caminho de volta será sempre direto e simples como uma linha reta. O Google Maps funcionou bem comigo dentro da medina, tanto para traçar rotas como para orientação em geral, mas não acertará em todos os casos. Em minha primeira vez ali dentro, por exemplo, buscando minha riad, a rota traçada no GPS me levou para a parede dos fundos, em um beco sem saída. Para chegar à porta, tive que seguir um caminho bem mais tortuoso, tentando não parecer um turista completamente perdido com uma mochila nas costas.
Sobre o chão de pedra gasta, 1200 anos de história. A medina de Fez é um exemplar excepcional de uma cidade islâmica medieval, a maior de todas. É a maior zona pedonal do planeta: dentro dela circulam apenas burros de carga, algumas motos, bicicletas e carrinhos de mão, transportando desde malas de turistas a mercadorias e itens de trabalho. A tradição está também no ar, denso de aromas, que carrega a memória olfativa das caravanas que cruzaram o deserto até o coração da cidade. Está no perfume das rosas, no açafrão, no chá de menta. Em especial, está no curtume, na antiga técnica de se tingir couro, cujo forte cheiro, perceptível de longe, é capaz de causar náusea a qualquer um. Os curtumes parecem uma colmeia cravada na pedra, com tanques que armazenam diferentes pigmentos usados no couro. Quando vistos de cima, dos terraços, parecem uma paleta de tinta. Nos tanques de cor clara, o principal ingrediente são excrementos de pombo, misturados com ácidos e urina de vaca, parte de uma alquimia que transforma pele em matéria nobre. Para suportar o odor, folhas de hortelã, que devem ser mantidas sempre perto do nariz, são entregues aos visitantes. Quando o couro está curtido, ele é levado para um telhado para secar e depois é vendido como matéria-prima. Dele são feitos calçados, bolsas, jaquetas, cintos - objetos que carregam a memória de um ofício, de uma cidade.
Rapidamente, percebemos que tradições de tempos muito distantes ainda fazem parte dos movimentos da medina, como uma peça de teatro encenada há gerações. No mundo antigo, Fez se tornou um célebre centro intelectual a partir da Universidade Al Quaraouiyine, mais antiga do mundo ainda em atividade, fundada como uma madraça em 859. Madraças são as escolas islâmicas, onde se ensina árabe - língua de natureza sagrada -, religião e outras disciplinas seculares. Estima-se que dentro da medina existam mais de 30 madraças, além de mais de 300 mesquitas. As vestimentas, também, não parecem pertencer ao nosso tempo: no mês de dezembro, mais frio, muitos circulavam pelas estreitas ruas vestindo jelabas, um robe de lã comprido com capuz pontudo. Em dias mais quentes, usam sua versão mais leve, chamada gandoura, fabricada com algodão.
Nas profundezas da medina, para além dos hotéis nas riads e do comércio vibrante, há um modo de vida modesto que escapa aos olhos apressados. A coleta de lixo é feita por um pequeno automóvel de quatro rodas, semelhante a um trator, estreito, adaptado àquele ambiente. O caminhão não percorre, contudo, todos os cantos do labirinto; lixo se acumula nos refúgios esquecidos. Há uma imensa população de gatos de rua que sobrevive se alimentando desse lixo. Alguns moradores se incomodam com a presença dos animais e, para mantê-los longe, fazem uso de um artifício curioso: depositam na porta de suas casas uma garrafa com enxofre. Algumas pessoas vivem nas chamadas "dar", semelhantes a uma riad, mas de menor porte, sem um jardim. Nas partes menos favorecidas, muitas habitações estão degradadas. Com mais ou menos luxo, todas as construções são concebidas para manter o isolamento em relação ao mundo exterior. As poucas janelas que se abrem para fora costumam utilizar um elemento arquitetônico chamado muxarabi - delicadas treliças de madeira que permitem ver sem ser visto, preservando a intimidade do lar ao mesmo tempo em que conectam o interior ao movimento da rua.
![]() |
Bab Bou Jeloud![]() ![]() ![]() ![]() |
3. A cidade e o silêncio do sagrado
A região de Fez tem ares de Velho Testamento. De terra muito fértil, as estradas cortam imensos campos de trigo, oliveiras, videiras e hortaliças. A próspera agricultura atraiu homens desde o princípio da história: os primeiros a formarem um assentamento foram os fenícios-cartagineses no século III a.C. Já no século I a.C., os romanos conquistaram a região e fundaram a cidade de Vollubilis. Como uma verdadeira cidade romana, que surgiria para trazer ordem em meio ao caos, ali foram erguidos um arco do triunfo, um fórum, uma basílica e um capitólio. Sendo um dos lugares mais longínquos que o Império Romano atingiu, no auge 20 mil pessoas viveram ali. Em torno do ano de 285, os berberes conquistaram Vollubilis, tendo-a defendido com tal fervor que os romanos nunca a recuperaram. Por alguns séculos mantiveram uma cultura cristã e uso do idioma latim, até a islamização que ocorreria séculos mais tarde, ainda antes da chegada de Mulai Idris, em 787, que viria como o presságio de um novo mundo que surgiria no norte da África.
Mulai Idris é bisneto do Profeta Maomé e neto de sua filha Fátima. Vindo de Meca, estabeleceu o que se considera o início do Marrocos moderno, uma nação árabo-berbere, africana e muçulmana. Formando alianças com tribos locais, seu filho Mulai Idris II fundou a cidade de Fez e iniciou uma tradição que perdura até hoje no Marrocos, de organização do poder em torno de dinastias que descendem diretamente de Maomé. Como que para seguir dialogando com a antiga cidade romana, foi fundada, perto de Vollubilis, uma cidade com seu nome para abrigar o seu mausoléu, hoje lugar sagrado para os muçulmanos marroquinos. A tradição diz que sete peregrinações à Mulai Idris equivalem a uma peregrinação à Meca.
Visitei as ruínas romanas de Vollubilis, Mulai Idris Zerhoun e Meknes em uma excursão de van que saía bem cedo de Fez. As três cidades juntas (Fez, Mulai Idris e Meknes) formam um triângulo de 160 km de perímetro e compõem uma região sintetizada como Fez-Meknes, situada sobre a fértil planície de Saïs entre a cordilheira do Rife a norte e Médio Atlas a sul. É o centro espiritual do Marrocos, um mapa do nascimento de uma cultura. A cidade de Mulai Idris Zerhoun foi um respiro de ar fresco depois de uma visita à medina de Fez. Ali, por muito tempo não se podia pernoitar, não havendo hotéis, e a entrada de não muçulmanos foi proibida até o início desse século. Se a medina de Fez já havia me impressionado por parecer pertencer a outro tempo, Mulai Idris intensificou ainda mais essa sensação.
Sem o mesmo agito urbano de Fez, em Mulei Idris Zerhoun pude observar a vida comum, rural e mais escondida dos olhares estrangeiros. A palavra Zerhoun, que compõe o nome da cidade, é o nome de um belo monte verdejante que rodeia o pequeno núcleo urbano. Do alto, vê-se uma linda cidade tingida de branco, onde a cúpula piramidal verde - cor sagrada do Islamismo - do mausoléu do antigo rei, hoje um santo, se sobressai. A medina sagrada sobe as encostas dos morros com suas ruas estreitas e possui algumas passagens fechadas por barras de madeira, feitas para impedir a entrada de não muçulmanos e dos burros de carga, numerosos na cidade e, a propósito, um de seus elementos mais encantadores. A presença desses animais é comum nas regiões montanhosas do Marrocos, sobretudo aonde os carros não chegam. São o símbolo inesgotável de resistência, de um tempo que ainda não se curvou às máquinas. Trabalhadores leais, silenciosos e humildes, carregam o pão, o gás, galões de água, transportam passageiros, fazem, em suma, a vida funcionar.
Deixando Mulei Idris em direção a Meknes, passamos com a van por uma grande região de campismo. Perguntei ao motorista do que se tratava, e ele explicou que o grande espaço servia para acomodar os inúmeros peregrinos que se dirigem à cidade para homenagear o fundador espiritual do Marrocos. Em seguida, falou sobre o moussem, uma dessas palavras árabes que denotam um conceito religioso difícil de se traduzir diretamente. O moussem é um festival que mistura devoção religiosa com celebração popular; no Marrocos, um sincretismo entre a tradição islâmica e os rituais e misticismos tribais. A celebração inclui música, dança, comida e vai além do cunho religioso, servindo também para organização de feiras, comércio, encontro entre famílias e até negociação de casamentos. Como uma espécie de carnaval, o festival em Mulei Idris ocorre depois do Ramadã, para celebrar o fim do período de jejum.
Depois, passamos por uma estação de controle policial. Ainda explicando sobre os festivais, o motorista começou a se enrolar com as palavras. Segundo ele, alguns moussem incluíam "magia negra" e estavam ganhando fama internacional por meio de vídeos em redes sociais, atraindo europeus e "pessoas suspeitas", o que justificava o controle policial mais rigoroso. Ele falava sobre o moussem Sidi Ali Ben Hamdouch, outro santo venerado no Marrocos, adorado principalmente por aqueles que se sentem rejeitados pela sociedade, exilados da fé normativa, que não encontram proteção no islamismo tradicional. Associada a Sidi Ali, uma princesa mítica chamada Lalla Aicha, independente e poderosa, representa o poder feminino, a sensualidade e o desejo. Percebi, assim, que o desconforto do homem tinha menos a ver com feitiçaria e mais com os frequentadores. O que chamava de "magia negra" e "pessoas suspeitas" eram, na verdade, mulheres tidas como subversivas, e, sobretudo, homossexuais. Lalla Aicha também é associada à água: existe ali uma fonte que brota das pedras, onde acredita-se ser o sepulcro da princesa santa. Os fiéis se banham na fonte como forma de proteção. Outros rituais incluem fazer uma tatuagem de henna como uma forma de conexão com a princesa. Ali é, talvez, o único espaço onde não são julgados por sua orientação sexual. No Marrocos, a homossexualidade é um crime punível com penas de três meses a três anos de prisão.
Finalmente chegamos a Meknes e estacionamos a van no portão do mausoléu de Mulei Ismail, outro célebre sultão do Marrocos. O mausoléu é aberto para visitação de não muçulmanos, como um testemunho da vaidade póstuma do antigo rei. Ele teve o mais duradouro reinado no Marrocos, de 55 anos entre 1672 e 1727, escolhendo Meknes como sua capital. Admirador do seu contemporâneo Rei Luís XIV da França, o Rei Sol, construiu um palácio que, séculos depois, fez Meknes receber a alcunha de Versalhes do Marrocos durante o período de protetorado francês. Seu reinado foi marcado pela expulsão de colonizadores cristãos, a crueldade com que tratava opositores e a formação de um poderoso exército formado por escravos negros trazidos na África subsaariana. Mas, a despeito de seus feitos como estadista, é por outra razão que seu nome atravessa os séculos: a vastidão de seu harém, com mais de quinhentas mulheres, e a descendência quase mítica de oitocentos filhos - como se buscasse conquistar a eternidade com o corpo.
Meknes, a cidade imperial esquecida, era como uma irmã mais discreta de Fez. Sua imponência não estava nas multidões, mas no silêncio dos portões e na solidão dos palácios. Os muros eram mais altos e mais amedrontadores que os de Fez, talvez pelos fantasmas dos inimigos que Mulei Ismail mandou decapitar e expor ali. Ao tentar entrar na medina, precisei caminhar rente aos muros por mais de vinte minutos, até encontrar um portão que, por acaso, dava acesso à melah, os bairros tradicionalmente judeus.
A convivência entre judeus e muçulmanos no Marrocos - por vezes pacífica, por vezes tensa - é antiga. Houve um aumento significativo da população judaica após 1492, quando a Espanha, concluindo a chamada Reconquista, expulsou de suas fronteiras mouros e judeus, que, por sua vez, emigraram em massa para o Marrocos, especificamente Fez, local do mais antigo bairro judeu no país. Na sociedade muçulmana, muitas vezes foram convenientemente tolerados, a custo de um imposto específico, e até admirados por suas habilidades como artesãos e comerciantes. Contudo, embora não proibidos, os judeus eram confinados nas melah, tipo de guetos, onde vivam de forma segregada em relação aos muçulmanos. Em Meknes, a melah murada foi construída próxima ao palácio real, por Mulei Ismail, como forma de controle e proteção. Após a criação do Estado de Israel, muitos judeus deixaram o Marrocos. Hoje, a população é muito pequena. Ficaram as casas, as pedras e as sinagogas, lembranças da discreta mas não invisível influência judaica na formação cultural do país.
Assim foi que, entre os becos de Meknes, encontrei-me, sem saber bem como, diante de uma loja que brilhava na sombra de uma rua que parecia esquecida. A loja estava vazia, escura, com o tipo de calma que antecede uma boa história. O dono da loja, Sr. Sid Mohamed, um judeu-berbere apaixonado pelos produtos que vendia, era mais um guardião do que um comerciante. Falava sobre suas peças antigas, os lustres, os bules e os castiçais como quem recita um poema. Tinha um livro de depoimentos escritos em diversas línguas de clientes satisfeitos de todo o mundo, que mostrava como testemunho e selo de sua credibilidade. Sua predileção, no entanto, era por produtos que tinham nomes gravados com letras hebraicas, as quais lia com os dedos e, com a voz, traduzia o significado. Apresentou uma peça da mão de Fátima, um objeto de fé islâmico e hebraico, que representa a proteção contra o mau olhado. A mão, com seus cinco dedos dispostos simetricamente, um desenho da medina e uma inscrição em hebraico, era ela própria encarnação do sincretismo da cidade. Iniciamos, então, uma longa e jocosa negociação pelo preço da peça. Ele anotou no papel seu valor inicial. Eu anotei a minha oferta. O papel passava de mão em mão, os preços atualizados, até que fechamos o negócio, em um acordo de dois viajantes de mundos que se cruzam por um instante. Levei para casa a mão de Fátima envolta em papel de jornal antigo, como se levasse não um objeto, mas um fragmento suspenso da alma de Meknes.
![]() |
Ruínas de Vollubilis |
![]() |
Muros de Meknes |
Mulei Idris Zerhoun |
4. A cidade e a travessia
A essa altura da viagem, já havia tocado as ruas agitadas de Marrakech, as avenidas largas de Casablanca e os becos silenciosos de Fez. Faltava, no entanto, algo essencial: atravessar o interior do país. Partindo de Fez, embarquei numa excursão de três dias que passaria por Merzouga, Ouarzazate e outros pequenos vilarejos, antes de me deixar novamente em Marrakech, onde me despediria do país.
O Marrocos do interior revela um outro ritmo, outra paleta. As paisagens, marcadas por extensas cadeias de montanhas, alternam entre o verde esparso das florestas e os tons ocres do deserto e das construções em adobe. São três os principais conjuntos montanhosos do país - o Médio Atlas, o Alto Atlas e o Rif -, e parece que, ao longo da estrada, ao menos um deles está sempre à vista. Seus picos nevados, ainda visíveis mesmo sob o sol forte, desenham um contraste bonito com os vales áridos que se estendem abaixo.
É também no interior que a presença berbere se faz mais visível. São os povos originários do norte da África, cuja cultura e história antecedem em muito a chegada dos romanos, bizantinos e árabes à região. Logo após deixarmos Fez, já pude avistar, num largo descampado à beira da estrada, um grupo nômade montado em tendas. Estavam ali com seus animais, suas roupas pesadas, e um jeito de habitar o espaço que parecia imune à pressa. Mais da metade da população do Marrocos é, ou descende diretamente, de berberes. O termo "berbere", a propósito, tem origem na mesma raiz de "bárbaro", como os romanos nomeavam os povos ditos não civilizados, que não falavam sua língua. Eles mesmos, porém, se chamam Amazigh, que significa "homem livre". Isto é, para o invasor, bárbaros; para si mesmos, livres. Apesar da conotação histórica pejorativa, vi muitos marroquinos usarem o termo "berbere" (que soa como "béri-béri" em sua pronúncia) com orgulho, como um símbolo daquilo que é verdadeiramente marroquino. É por isso que, neste relato, continuo a adotá-lo.
Como seria de se esperar da natureza humana, os povos berberes não formam um bloco homogêneo, embora compartilhem elementos culturais que os aproximam. A língua amazigue, na verdade uma família de línguas, é hoje reconhecida como oficial no Marrocos, ao lado do árabe. Há também uma bandeira própria e um alfabeto ancestral, o tifinague, que pode ser visto tanto em documentos institucionais quanto em sinalizações, funcionando como símbolo de afirmação identitária. Embora muitas vezes associados ao nomadismo, grande parte dos berberes se estabeleceu em cidades do interior, vivendo da agricultura ou de pequenos comércios. Outros tantos habitam hoje os grandes centros urbanos. De forma ampla, três numerosos povos berberes distintos se sobrepõem às três principais cadeias montanhosas do país, regiões onde, historicamente, as culturas dominantes que chegaram ao Marrocos encontraram mais dificuldade de se impor por completo.
Outro idioma amplamente falado no Marrocos é o francês, resquício do período de protetorado que durou mais de quatro décadas, entre 1912 e 1956. A influência francesa vai além da língua: está presente no sistema educacional, em documentos, nas placas de rua e, sobretudo, na arquitetura. Ela aparece tanto nas ville nouvelles quanto, de maneira mais explícita, em lugares inteiramente concebidos segundo o imaginário francês.
Foi, assim, com certo estranhamento que cheguei a Ifrane, primeira parada desde que saímos de Fez. Construída como estação de veraneio para colonos franceses, a cidade está situada a 1.600 metros de altitude, no flanco das montanhas do Médio Atlas, cercada por florestas de cedro. As casas seguem um estilo alpino, com telhados inclinados próprios para escoar a neve, e uma simetria que destoa da lógica labiríntica das cidades marroquinas. O clima também surpreende: ali, o inverno é rigoroso, e a neve é frequente. Naquela manhã, uma fina camada branca já cobria as calçadas. Estava tão frio - eu sem a roupa adequada - que, em vez de andar pela cidade, entrei em um café para me aquecer.
Por alguns instantes, parecia não estar no Marrocos, mas em alguma pequena cidade nos Alpes. A cidade é bonita, limpa, organizada. Mas não combina com o que se espera do Marrocos, país de arquitetura original e reconhecida em todo o mundo. Ifrane parece quase um enclave, um cenário deslocado, mantido com certo orgulho como a "Suíça do Marrocos". A comparação, usada com frequência, não é apenas descritiva - carrega também uma ideia de prestígio, como se houvesse algo de superior em parecer europeu. O que se considera belo ou elegante, muitas vezes ainda passa pelo filtro colonial, seja na preferência pela língua francesa, considerada mais culta, seja na celebração de formas urbanas que pouco dialogam com as raízes locais. Essa estética forjada à imagem da Europa parecia destoar ainda mais conforme nos aproximávamos das regiões onde o Marrocos revela a força de suas raízes berberes.
No caminho até Merzouga, é preciso atravessar as montanhas do Atlas, entre duas cidades que encarnam uma dualidade geográfica e simbólica: Midelt e Errachidia. A primeira, ao norte, repousa no silêncio das montanhas; a segunda, ao sul, recebe os primeiros ventos do deserto. Midelt não é cidade de chegada nem de partida, mas de pausa - e talvez por isso, muitos acabam por ficar. Nas ruas, celebra-se a maçã, motor da economia local, vendida em pilhas geométricas que parecem ter sido polidas pela neve. Por situar-se na linha de transição entre o norte urbano do Marrocos e o sul árido e rural, Midelt sempre foi ponto de encontro de pessoas e mercadorias, especialmente durante os tempos das rotas de comércio transaariano. Chamaram minha atenção os homens negros nas ruas - altos, esguios, alguns pedindo esmola nos sinais - provavelmente vindos das regiões ao sul do Saara. A presença negra no Marrocos tem raízes profundas: parte descende de antigos escravizados trazidos por essas rotas históricas; outros tantos buscam trabalho sazonal na agricultura e na mineração, também forte na região.
Atravessado o Atlas, a partir de Errachidia, a paisagem muda abruptamente: as montanhas, ao barrar a umidade vinda do Atlântico, deixam para trás um vale ressequido. Transpô-las é como virar uma página - atrás, os bosques de cedros e as ladeiras geladas; à frente, o deserto do Saara, seco, desconhecido. Eu havia iniciado o dia passando por uma floresta de coníferas, visto neve. Agora estava no deserto, de chão duro e pedregoso, que se estendia até onde a vista alcançava. Em Merzouga, já próxima à tensa fronteira argelina, fica o Erg Chebbi, um dos maiores desertos de dunas do país. Embora visualmente impactante, desertos de dunas, os "erg" são muito menos frequentes no Saara do que os desertos de pedra e cascalho, chamados "reg". Durante horas, seguimos por essas planícies áridas, onde o vento, incessante, sussurra entre blocos de rocha gasta, arrastando partículas que, pouco a pouco, se acumulam nas dunas adiante. A vida aqui é rarefeita: um ou outro dromedário surge no horizonte, sempre em trânsito. Apenas em algumas regiões de oásis foi possível se estabelecer cidades, como Arfoud, que surge como um bolsão verde em meio à vastidão mineral.
Ao me aproximar de Merzouga, as dunas do Erg Chebbi surgiram no horizonte como uma miragem que, em vez de se dissipar, ganhava forma e imponência. Era como se um mar imóvel se erguesse diante de mim. Após horas cruzando os regs, aquelas dunas pareciam pertencer a um mundo suave, luminoso e potente. Vistas à distância, davam a impressão de que poderiam engolir, a qualquer momento, as pequenas vilas que repousam em suas margens. A área do erg não é particularmente vasta - cerca de 5 por 28 quilômetros -, mas é grande o suficiente para, uma vez dentro dele, fazer desaparecer qualquer referência exterior: a visão se preenche inteiramente por areia e céu. A cor das dunas varia conforme a luz do dia, oscilando entre o dourado pálido das manhãs e o laranja vivo do entardecer.
O Erg Chebbi é um dos ícones turísticos do Marrocos, onde visitantes se dirigem para passeios de camelo, pernoites em acampamentos no deserto e excursões em veículos off-road. Ao chegar em Merzouga, uma pequena caravana já nos aguardava para conduzir o grupo até o acampamento onde passaríamos a noite. Hoje turísticas, essas caravanas ainda preservam algo da sua familiaridade milenar com o deserto - visível sobretudo no olhar dos guias, no modo como lidam com os dromedários, todos formados por aquele ambiente. Subi no animal com alguma dificuldade: a sela é estreita, e o movimento do dromedário, embora ritmado, provoca um desconforto crescente nas pernas e na coluna. Há uma diferença de escala que impressiona: eles são altos, musculosos, o couro duro como pedra, a passada firme sobre a areia fofa. A marcha lenta, em fila, desenhava uma bonita trilha entre as dunas, repetindo caminhos invisíveis do passado.
No acampamento, vivemos algo próximo ao imaginário de uma noite na Arábia - céu ricamente estrelado, dunas ao redor, sons distantes de tambores. A passagem foi breve: chegamos já com a noite avançada e fomos recebidos com um banquete berbere, servido sob tendas baixas e coloridas. Havia tajine, cuscuz e pão quente, tudo preparado pelos moradores das vilas vizinhas, que também vieram trazer música. Com tambores, organizaram uma roda animada em torno da fogueira, convidando os hóspedes a dançarem ao seu modo. A fogueira cumpria mais do que a função simbólica: nos aquecia de um frio cortante, que naquela época do ano beirava os zero graus. Os guias, bem adaptados, se enrolavam em túnicas pesadas, protegidos sob as jelabas. Partimos antes do nascer do sol. No silêncio da madrugada, subimos em uma das dunas e, de lá, vimos o dia clarear.

![]() |
Pequena cidade em um oásis |
![]() |
Erg Chebbi |
***
A viagem seguiu pelos chamados oásis do sul. Entre Arfoud e Ouazazate, há um número de oásis que compõem as vistas mais extraordinárias e deslumbrantes do Marrocos. É algo de miraculoso - uma verdadeira maravilha natural - a existência de oásis dessa magnitude em pleno deserto. Mais do que refúgios verdes, são centros vivos de cultura, história e resistência humana diante de um ambiente hostil.
Em uma parada na estrada, em um ponto alto próximo ao vale do Rio Todra, detivemos-nos a admirar o oásis de Tinghir. Para se ter uma ideia de seu tamanho, ele se alonga por mais de 30 quilômetros, com cerca de 500 metros de largura, abrigando mais de 80 mil pessoas. Densamente povoado, a agricultura é fértil: planta-se tamareiras, oliveiras, alfazema, milho e hortaliças. Cercado por falésias de tons avermelhados, o povo berbere local desenvolveu um sofisticado sistema de irrigação que ampliou o cultivo e trouxe ainda mais vida à região.
Para se viver ali, recorre-se a uma construção típica do país: os kasbahs e ksours, feitos de barro e palha, com muros altos e janelas pequenas, próprios para suportar o calor. Depois de experimentar as riads e as medinas dos centros urbanos, chegava o momento de habitar outras expressões da arquitetura vernácula que tornam o Marrocos tão fascinante. Originalmente eram residências fortificadas, centros de poder, em formato de bloco com torres nas quatro esquinas. Hoje, embora já não abriguem a maioria da população, sua técnica construtiva, intimamente ligada à paisagem e ao clima, foi preservada e reinterpretada nas moradias modernas. Ao longo da estrada, muitas kasbahs em ruínas permanecem de pé, como poesia de barro ressecado, recitando a memória de um tempo que o deserto ainda guarda.
Enquanto as kasbahs são construções privadas, erguidas por famílias influentes como símbolos de prestígio e poder, os ksour, embora feitos com as mesmas técnicas de terra crua, são assentamentos coletivos, verdadeiras vilas fortificadas. Neles, as casas se agrupam dentro de muralhas contínuas, como nas medinas, formando um emaranhado de ruas estreitas que protegem tanto do calor intenso quanto de eventuais invasores. Os ksour completam a paisagem exuberante dos oásis, somando-se às palmeiras, falésias e extensões de areia, traçando, em barro e geometria, a presença humana em meio à vastidão natural.
A travessia termina, simbolicamente, em Aït Benhaddou, o mais famoso dos ksours marroquinos. Já nas imediações da cordilheira do Atlas - que eu cruzaria novamente rumo a Marrakesh -, a cidade surge como se fosse parte do deserto, erguida por um povo que a todo momento desafia o esquecimento. A cidade representa perfeitamente a união entre função prática e estética refinada, respondendo ao clima e integrando-se à paisagem, respeitando o ambiente. Fui inteiramente absorvido por sua beleza: a arquitetura, um campo que raramente me tocava em outras viagens, aqui se impunha com força, como linguagem viva. Tamanha expressividade - a paisagem parece sair de um sonho - fez do lugar um cenário recorrente no cinema mundial: Hollywood encontrou ali um espelho de seus próprios mitos.
Aït Benhaddou é símbolo, sobretudo, do fascínio que o Oriente “exótico” - palavra que, aliás, a essa altura já me parecia vazia - ainda exerce sobre o Ocidente. Foi ali que percebi que o que mais me fascinava no Marrocos não era sua beleza, tampouco o suposto exotismo, mas a forma como tudo coexistia em tensão: passado e presente, fé e comércio, arte e sobrevivência. Como se o país inteiro fosse uma tapeçaria viva - feita de fios que não se misturam, mas vibram lado a lado.
![]() |
Residência berbere em Aït Benhaddou |
![]() |
Aït Benhaddou |
![]() |
Oasis de Tinghir e ksour (vilarejo fortificado) |
Fim