sábado, 10 de setembro de 2022

Fantásticas histórias do Amapá (1/2)

"Socialismo! Utopia? Sim, e que se pode transformar em realidade. Afinal nascemos para isso, para superar os limites e as situações que nos desumanizam e encontrar os caminhos da nova humanidade, aquela que construímos com a nossa ação."

Randolfe Rodrigues, "O Amapá, o Senado e o desafio no futuro: fé no que virá"  


I. O mais ambicioso projeto de engenharia do mundo

Poucos meses antes de minha chegada à Laranjal do Jari, Amapá, uma cheia atingiu mais de 4 mil famílias na cidade. Por dois meses, moradores conviveram com água na altura da cintura dentro de suas próprias casas, viram a suspensão de aulas em 11 escolas, e enfrentaram a crise com o fechamento de duas Unidades Básicas de Saúde. No fim de 2020, um apagão de energia deixou todo o estado, isto é, 800 mil pessoas, sem energia por 22 dias. Nos quatro primeiros, o apagão foi total, causando pânico com as incertezas sobre o restabelecimento de energia. A cadeia produtiva foi interrompida, os alimentos apodreciam em geladeiras que não refrigeravam. A BR-156, estrada que passa por praticamente todos os municípios do estado, tem 350 dos seus 815 km em estrada de terra, em uma das regiões que mais chove no mundo inteiro. A obra de pavimentação já dura 40 anos, e a condição da estrada é um crime contra o povo do Amapá - de fato um crime, denunciado pelo Ministério Público Federal. Além das piores rodovias, o Amapá tem, ainda, os piores indicadores em abastecimento de água tratada e tratamento de esgoto.

A falta de infraestrutura básica, como estradas, fornecimento de energia, hospitais e escolas, sem dúvida é uma situação que nos desumaniza. Em minha passagem de uma semana pelo Amapá, sozinho, muitas vezes o sentimento de fragilidade diante daquela geografia consumia a vitalidade que me é tão comum em uma nova viagem. Senti-me frágil ao percorrer a BR-156 de ponta a ponta, onde postos de gasolina se localizam a mais de 200 km um do outro, quase não há pontos de apoio, e onde os buracos na estrada agrediam a todo momento o carro que eu dirigia. Do mesmo modo, senti-me frágil quando, em Tartarugalzinho, uma inflamação em minha garganta me roubou uma noite de sono. Se eu adoecesse ali, temia pela estrutura de saúde que eu teria à disposição.

Por muito tempo, comunidades em todo o globo conviveram com o constante risco de serem dizimadas pela fome ou pela peste. Bastava um inverno mais rigoroso ou um verão sem chuvas para que lavouras inteiras deixassem de produzir o necessário para a subsistência. Uma doença desconhecida podia rapidamente se alastrar por toda uma população. No cenário de um país tropical, atravessado pela linha do equador, colonizado por europeus, como o nosso, a peste muitas vezes veio a partir do indesejado contato com estrangeiros dominadores. Embora o grande salto tecnológico do século XX tenha, na média, nos permitido preocupações mais ambiciosas além da fome e da peste, existem lugares não muito distantes que, ainda hoje, convivem constantemente com os riscos da frágil natureza humana. 

Laranjal do Jari é um desses lugares. Frequentemente referida como "a maior favela fluvial do mundo", é uma cidade que cresceu desordenadamente a partir de pressões demográficas causadas pela busca por emprego digno. A palafita é um elemento permanente na paisagem amazônica, símbolo de quem tem o sustento vinculado ao fluxo fluvial, e a vida ritmada pelos ciclos de cheia dos rios. São estruturas de madeira que erguem as casas em relação ao nível do solo, para impedir sua destruição nos períodos de inundação. Elas têm sua beleza, mas em Laranjal do Jari ganharam a preconceituosa qualificação favela, como um estado natural, escondendo a complexidade do surgimento do munícipio.

Como uma típica favela, Laranjal do Jari surgiu como um subproduto de um grandioso projeto capitalista, capaz de gerar riqueza para alguns e miséria para muitos. A região começou a receber migrantes do Nordeste que vinham trabalhar com a extração do látex durante o ciclo da borracha. Um deles, o cearense José Júlio de Andrade, aos 28 anos já era um dos maiores latifundiários do ocidente, com mais de 3,5 milhões de hectares de terra sob sua propriedade. Um arquétipo do sistema político do país durante a República das Oligarquias, José Júlio de Andrade foi deputado estadual e senador do Pará, o que o ajudou a aumentar seu poder - um verdadeiro coronel, que enriquecia com a borracha, castanha, pecuária e influência política. Depois da Revolução de 1930, o movimento tenentista, em nome do interventor do Pará, conseguiu obrigar o "Coronel" a se desfazer de suas posses, posteriormente adquiridas por um bilionário norte-americano em 1968, que iniciou ali um enorme empreendimento industrial chamado Projeto Jari. A "favelização" de Laranjal do Jari ganha impulso a partir daí.

O objetivo do bilionário americano era construir, no Baixo Amazonas, um grande complexo industrial envolvendo atividades agrícolas, pecuárias e de extração mineral e vegetal. Em especial, dedicou uma imensa área da floresta amazônica para a implantação de uma fábrica de celulose, substituindo a vegetação nativa por uma quase monocultura, introduzindo duas espécies estrangeiras. Também criou a maior área contínua de cultivo de arroz no mundo e a planejada cidade de Monte Dourado, Pará, nas margens do Rio Jari, que divide os estados do Pará e Amapá. No lado amapaense do rio, trabalhadores sobretudo do nordeste começaram a se aglomerar na "Vila do Beiradão", primeiro nome de Laranjal do Jari. Sem emprego para todos e sem recursos para voltar para seu território de origem, famílias foram erguendo suas casas sob as palafitas sem saneamento básico e sem as mínimas condições de higiene. Quando eu caminhei por uma das passarelas que conectam dezenas dessas casas em palafitas, no bairro Santa Rita, vi um triste tapete fétido sobre o qual os moradores despejam seu esgoto. Em 1982, sem a produtividade esperada, lidando com críticas de devastação da floresta, más condições de trabalho e concentração irregular de terras, o bilionário encerrou suas atividades. O empreendimento fracassou, e os prejuízos foram assumidos pela população local, condenada à pobreza. Hoje, sabe-se que o Projeto Jari foi um enclave estrangeiro na Amazônia, protegido economica e politicamente pela ditadura militar.

A Laranjal do Jari que encontrei estava ainda se recuperando da traumática enchente que de tempos em tempos ameaça milhares de famílias nas palafitas. Quando tragédias assim ocorrem, o município pode decretar estado de emergência, que facilita o recebimento de recursos do estado e da União, mas também facilita o desvio de dinheiro de público. Os moradores, que dentro do possível seguiram realizando suas atividades em constante contato com a água, expostos à doenças como leptospirose, dengue e hepatite, tinham motivos para suspeitar do mau uso dos recursos emergenciais. Também precisaram lidar com cortes no fornecimento de energia: quando o nível da água chegava a determinado nível, a rede elétrica precisava ser desligada por segurança. 

O Projeto Jari foi continuado por um grupo de empresários brasileiros, que comprou as ações do bilionário, com forte participação do governo federal e do Banco do Brasil - o acordo foi celebrado no Palácio do Planalto com participação do presidente João Figueiredo. A fábrica Jari Celulose é uma das herdeiras, mas entrou em recuperação judicial em 2019. Laranjal do Jari hoje reflete o seu passado. Uma grande parte da população mora em terrenos irregulares, sem condições básicas de higiene, ameaçados pela natureza e pelo desemprego. Se no passado muitos imigrantes não conseguiram se empregar no Projeto Jari, hoje o enorme mercado Zanotto, localizado no centro da cidade, exibe cartazes com escritos como "não estamos contratando", "não estamos recebendo currículo". A existência de pobreza facilita a exploração da mão de obra. O velho coronelismo segue presente em regiões assim. Em um estado cujo serviço público corresponde a 70% da massa salarial e a extensão territorial dos municípios é imensa, a população confia mais em velhos políticos endinheirados do que em projetos de transformação social para garantir um emprego e a vida digna. Para se ter noção do poder que a política fornece para algumas pessoas, o prefeito de Laranjal do Jari tem jurisdição sobre um território que faz fronteira com duas nações estrangeiras (Guiana Francesa e Suriname) e é maior que o estado do Alagoas. 


Passarela em um bairro de palafitas em Laranjal do Jari
Passarela em um bairro de palafitas
Favela fluvial em Laranjal do Jari
"Favela fluvial"

***

Eu estava em minha primeira manhã em Macapá quando conheci uma professora de Laranjal do Jari no hotel. Na recepção havia um painel com fotos da belíssima cachoeira de Santo Antônio. Comentei que eu planejava ir até lá, e a professora me deu o contato de sua assistente, Netinha, que também organiza rallies de motocicleta na região do Jari. Desbravadora de trilhas e caminhos de difícil acesso na região, foi minha guia em Laranjal do Jari. Marquei um ponto de encontro na estrada próximo a um pequeno ramal para a cachoeira do Sucurijú, descoberta por ela e seu marido em suas andanças de moto. O percurso de Macapá a Laranjal do Jari foi meu primeiro encontro com a BR-156 e com a solidão dessa estrada. Posteriormente eu iria realizar toda a sua travessia, do Jari ao Oiapoque.

Existe uma significativa queda topográfica entre o Escudo das Guianas e a Planície Amazônica. Somada à abundância de água na região, o norte da Amazônia é repleto de impressionantes cachoeiras. Junto com Netinha, saí da estrada principal e dirigi o meu carro por um pequeno caminho na floresta, aberto para a prática de um rally, até chegar à comunidade de Padaria. Lá um senhor chamado de Jacaré, apresentado a mim como um faz-tudo da Polícia Militar, nos esperava com seu barco para nos conduzir à cachoeira. A cachoeira fica a cerca de 25 km rio acima do núcleo urbano de Laranjal do Jari. Saindo da Padaria, o trajeto fica um tanto mais curto. Depois de alguns minutos no barco, em um lugar de difícil acesso, com turismo incipiente, pude, finalmente, desfrutar de um momento rodeado por toda a beleza natural de um arco de quedas d'água de mais de 10 metros de altura. 

Tanta abundância de água evidentemente torna a região ideal para a instalação de usinas hidrelétricas. De fato, em 2014 foi concluída a obra de uma usina ali, após um longo processo de estudo de viabilidade iniciado na década de 1970. Hoje, cerca de 50% do potencial hidrelétrico do território nacional está concentrado na região amazônica - o estado do Amapá conta com quatro usinas. Quem viu a cachoeira de Santo Antônio antes da hidrelétrica me jurou que a beleza era muito maior. No caminho, tirei poucas fotos: era muito difícil achar um bom enquadramento para fotografar o rio sem que aparecessem torres e cabos de transmissão de energia na composição da foto. Muitas placas, nas margens do rio e em comunidades ribeirinhas, também poluíam a paisagem com dizeres alertando para riscos de vida e apontando rotas de fuga em caso de acidente na usina.

Pude visitar uma comunidade ribeirinha e uma quilombola nas margens do rio próximas à cachoeira. Na comunidade ribeirinha, parei para uma caminhada e para um almoço. As belas casinhas dividiam espaço com edifícios administrativos da usina e com as placas das rotas de evacuação. Havia postes de luz alinhados nas beiradas de uma pequena rua de terra, com casas se estendendo na mesma direção. Era como um pequeno bairro. Uma grande edificação construída para escoar as castanhas, aparentemente a principal atividade econômica dali, se destacava na comunidade. Contudo, não vi sinais de pessoas trabalhando com extração de castanhas durante minha passagem. Por fim, tive um belo almoço com peixe fresco do Rio Jari. 

A comunidade quilombola já apresentava um aspecto diferente. As construções eram bem na beira do rio e as palafitas muito altas; na comunidade ribeirinha, as casas ficavam mais afastadas do rio a alguns poucos degraus do nível do chão. Lá fui recebido pelo líder da associação do quilombo, que celebrava o recente reconhecimento da comunidade como quilombola. Por lei, descendentes de quilombos têm o direito à propriedade de seus territórios coletivos. Ele me levou a um pequeno escritório da associação, que não tinha nada dentro. Andei pelas casas, e os poucos moradores apareciam em seus balcões para observar ou cumprimentar o estranho visitante. Alguns me mostravam as cestas usadas para coleta de castanhas, principal instrumento de trabalho do castanheiro, símbolo cultural homenageado com um monumento na principal praça de Laranjal do Jari. Quando eu estava indo embora, senti-me triste com a visão de um pequeno menininho nu com um enorme inchaço abdominal e pernas finas. A julgar pelas fezes humanas que quase pisei quando saía do barco para conhecer a comunidade, provavelmente aquele menino sofria de esquistossomose, a barriga d'água, ou ventre crescido que envolve o vazio, como cunhou João Cabral de Mello Neto. Essa doença só existe em lugares com precário acesso à água potável e sem tratamento de esgoto. 

Uma semana depois eu estava no agradável Museu Sacacá, na capital, quando voltei a me lembrar do menininho com barriga d'água. Peguei um livro do Randolfe Rodrigues, senador pelo Amapá, para ler, em uma pequena biblioteca montada ao ar livre no museu. Fazendo uma série de análises sobre seu estado, o senador comparou a pobreza do Norte com a do Nordeste. Enquanto o Severino de João Cabral de Mello Neto sofria com a escassez de água e de florestas em um árido sertão, o menininho, com natureza, água e fartura à disposição, não tinha um destino muito diferente. Dentre os condicionantes natural, social e político que infelicita os mais humildes, com certeza os dois últimos são os de papel preponderante. A pobreza no Norte, tal qual no Nordeste, é resultado do atraso estrutural de uma elite política de tradição patrimonialista que nunca se preocupou em acabar com as desigualdades de classe que atravessam os séculos. 

Depois da visita à cachoeira, voltei à estrada para ir até o centro de Laranjal do Jari, onde passaria aquela noite. Nas longas horas de estrada, conversamos sobre muitas coisas, e descobri que Netinha, minha guia, havia sido candidata à vereadora nas últimas eleições, convidada pelo partido para preencher a cota feminina de candidaturas. Muito querida na região, ela terminou por se engajar em sua campanha, mas contava frustrada que recebeu muito menos votos do que esperava. Seus potenciais eleitores se justificavam dizendo que, apesar de gostarem muito dela, não podiam votar porque ela não dava dinheiro. A triste realidade da compra de votos estava escancarada. Em ano de eleições, ainda bem antes do início das campanhas, eu já notava um burburinho diferente na cidade. Em um momento encostamos o carro perto de umas casinhas na beira da estrada e uma moradora idosa se aproximou perguntando em quem Netinha iria votar esse ano. A senhora dizia que queria muito trabalhar. 

A noite aos poucos caía quando chegamos em Laranjal do Jari depois de um longo dia de passeio. Perto da cidade passamos pelas propriedades do mesmo dono do mercado Zanotto. Lá no horizonte, quase se perdendo de vista, dava para ver seu rebanho de gado pastando. Provavelmente essa família, ou outras como essa, são donas de muitos outros empreendimentos na cidade há muitas gerações. É possível que a origem de sua riqueza esteja relacionada ao trabalho escravo, à posse irregular de terra, grilagem ou à concentração fundiária legalmente protegida pelo Estado. Talvez sejam donos dos principais meios de comunicação, talvez sejam os provedores dos recursos que compram os votos. Enquanto isso, outras famílias, mesmo trabalhando duramente, morarão nas palafitas por muito tempo. Haverá outras enchentes, casas desabrigadas, e, de um dia para outro, elas poderão ver o seu pouco virar nada. 

Cachoeira de Santo Antônio do Jari
Cachoeira de Santo Antônio do Jari

Casa em comunidade ribeirinha, Laranjal do Jari
Casa em comunidade ribeirinha, Laranjal do Jari

Placa de evacuação em caso de acidentes na Usina de Santo Antônio
Placa de evacuação em caso de acidentes na Usina de Santo Antônio

Construção para escoar a produção de castanhas
Construção para escoar a produção de castanhas

Comunidade ribeirinha

Interior de uma casa

Sede do quilombo São José Laranjal do Jari
Sede do quilombo São José

Cestas que os castanheiros usam para extrair castanhas
Cestas que os castanheiros usam para extrair castanhas

Quilombo de São José Laranjal do Jari
Chegada ao quilombo de São José


II. Um cemitério nazista no Rio Jari 


A um pequeno desvio do caminho para a cachoeira de Santo Antônio fica talvez o mais inusitado e misterioso cemitério do Brasil. Nas margens do Rio Jari, uma enorme cruz de madeira, de três metros de altura, com a suástica nazista e palavras escritas em alemão, ativa a imaginação dos que chegam ali. No meu caso, quando eu cheguei, fui informado de que a cruz estava apodrecendo com os danos da recente cheia e havia sido removida do cemitério para reparos. Ainda assim, o lugar é um deleite para os amantes das histórias fantásticas. As comunidades locais aproveitaram a existência da imponente cruz e passaram a enterrar os seus no mesmo lugar.

Uma cruz nazista no Amapá pode nos fazer pensar em interesses espúrios de Hitler sobre a Amazônia. Alguns acreditam que houve uma expedição de reconhecimento para planejar uma invasão à Guiana Francesa, território inimigo da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. No entanto, trata-se de uma expedição científica muito bem documentada e espetacularizada, e nada nos leva a crer em qualquer interesse militar nazista na região. A "Expedição Alemã Amazônia Jari" durou 17 meses entre 1935 e 1937 e foi capitaneada por Otto Schulz-Kampfhenkel, um jovem zoólogo alemão que buscava monetizar e midiatizar suas experiências ao máximo.    

Aos patrocinadores de sua expedição, dentre eles o próprio governo alemão, Otto afirmou ter como objetivos: reunir uma coleção zoológica e etnológica, produzir material cartográfico sobre a região, realizar filmes durante a aventura e testar a empregabilidade de um hidroavião - usado na expedição - em um ambiente de natureza fluvial e equatorial. Se havia algum interesse oculto, pesquisadores acreditam que a propaganda nazista queria causar uma boa impressão na sociedade brasileira. Sobre os ímpetos imperialistas de Hitler, embora tivesse apoiado financeiramente a expedição, mostrou-se indiferente na ocasião de um acidente com o hidroavião, deixando os aventureiros abandonados à própria sorte, recebendo ajuda de populações indígenas locais. 

A cruz é em memória de Joseph Greiner, um teuto-brasileiro que morava no Rio de Janeiro e teria se juntado ao grupo como um contramestre por motivos de entusiasmo e ideologia. Nela se diz, em alemão: "Joseph Greiner morreu aqui de febre [provavelmente amarela] em 2 de janeiro de 1936 a serviço da pesquisa alemã". O projeto científico de Otto Schulz-Kampfhenkel logo se transformaria em uma experiência multimídia chamada Rätsel der Urwaldhölle – “Os enigmas da selva infernal”. Na obra, que inclui um livro, um filme e uma exposição itinerante, é narrado o enterro de Joseph Greiner, e é exposta a visão do nazi-fascismo e do colonialismo europeu sobre a questão indígena. Essa visão reverberava com o discurso oficial do contemporâneo Brasil de Vargas, que via o indígena como potencialmente bom, mas inculto e que precisava ser resgatado de seu suposto atraso evolutivo. No filme de Otto, são mostrados alemães e indígenas erguendo juntos a cruz de Greiner, em uma cena que lembra o conhecido quadro "Primeira Missa no Brasil". 

Nos registros da expedição consta que foram levados do Amapá cerca de 1.500 itens de "interesse zoológico", incluindo crânios de animais, ossadas, espécies conservadas e dois carregamentos de animais ainda vivos, 1.200 objetos com valor etnográfico produzidos pelos povos indígenas Aparaí, Wayana e Oayana, 2.700 metros de película de filme e 2.500 fotografias. Apesar da famosa expedição, Otto Schulz-Kampfhenkel não veio a se tornar uma figura importante para estudos zoológicos: não é mencionado por qualquer texto significativo e nunca descobriu uma nova espécie.

Sem a cruz nazista para visitar, caminhei pelo pequeno cemitério observando nomes e datas escritas nas sepulturas. Meus guias acabaram me contando a fofoca do momento na região, comentada por muitas pessoas que encontrei na comunidade ribeirinha: um jovem rapaz acabara de ser enterrado no cemitério. Com apenas 20 anos de idade, sua cruz ainda não havia sofrido com as intempéries da natureza e se destacava sobre as demais, exibindo uma cor vermelha reluzente. Era vítima do narcotráfico; vítima de uma guerra oculta, mas fortemente presente na Amazônia, que apesar de todos os riscos e violência, acaba sendo o caminho preferido para alguns jovens pobres da região.

Cemitério nazista Laranjal do Jari

Cemitério nazista Laranjal do Jari

Cemitério nazista Laranjal do Jari

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