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Xapuri: o berço de Chico Mendes (ou Crônica de uma morte anunciada)
Minhas expectativas ao chegar em Xapuri eram muito altas. Berço da luta seringalista e local de nascimento e morte de Chico Mendes, Xapuri tem sua própria mitologia. A cidade é pequena, com menos de 20 mil habitantes, mas gerou uma verdadeira liderança capaz de inspirar a luta ambientalista em todo o mundo. Nas semanas que antecederam minha viagem, quando busco leituras sobre os locais que irei visitar, quase não encontrava informações sobre Xapuri. Essa visita à cidade acabou se tornando uma jornada individual de descoberta e reconstrução do legado de Chico Mendes.
Aluguei um carro em Rio Branco e fui dirigindo à Xapuri pela BR-317 (estrada do Pacífico). Havia trechos muito esburacados, mas ainda assim foi possível manter uma velocidade média de 80 km/h. Eu percorreria essa estrada até o seu fim, em Assis Brasil, o que confirmaria algumas de minhas impressões iniciais: o cenário é de pouco movimento, poucos caminhões, indicando trocas comerciais mornas com o Pacífico via Acre, e muita fazenda. Diferentemente de minha passagem pela BR-364, no entanto, o campo de visão era mais amplo e era fácil identificar a linha da fronteira agrícola; o horizonte era traçado por florestas.
Ao nos aproximarmos de Xapuri, temos uma saudação de boas vindas muito calorosas. A estrada de acesso à cidade se chama "Estrada da Borracha". Como um belo portal, logo quando acessamos essa estrada somos envoltos por um túnel de seringueiras, com muitas dessa árvore símbolo de todo um povo plantadas nas margens. A copa das árvores de ambas margens se entrelaçam fechando o teto do túnel. A seringueira é sobretudo uma bela árvore, que pode atingir alturas de 30 metros, tem caule alaranjado e folhas verdes escuras - uma bonita combinação de cores. Seguindo pela estrada, é perceptível o cuidado que já foi empenhado ali. Passamos pela placa de "bem-vindos", logo depois por uma fábrica de preservativo, estrategicamente posicionada para aproveitar o látex e a mão de obra da região, e um corpo de bombeiros cuja arquitetura da sede é uma homenagem à tradicional habitação seringueira.
A cidade é aconchegante e acolhedora. Também banhada pelo Rio Acre, como Rio Branco, grandiosidade aflora dessa cidade interiorana. As ruas contam com árvores delicadamente podadas em formato cúbico. Margeando o rio está um prédio histórico que quase passa despercebido, o edifício da intendência boliviana, conquistado pelo exército de Plácido Castro em um dos episódios mais decisivos da Revolução Acreana. Em local privilegiado perto da praça principal fica um prédio da sede do PT (Partido dos Trabalhadores), todo pintado de vermelho. Do outro lado da rua fica o prédio da antiga prefeitura, que ao menos costumava ser um museu - estava fechado pela pandemia da Covid-19. Descendo um pouco, chega-se a praça da igreja, que homenageia São Sebastião. O calçamento da região mais histórica é feito com tijolos. No dia em que cheguei, um domingo, estava acontecendo uma quermesse com um bingo beneficente em praça pública, cujo prêmio era uma bezerra. Na mesma praça fica a histórica sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri.
Rapidamente, na primeira caminhada exploratória em Xapuri deu para entender o que havia de diferente nesse lugar para tornar o movimento seringalista e ambientalista tão fortes. Foi uma conjunção de organização político-partidária, com consciência de classe e emergência de um líder carismático do povo. Chico Mendes entendia que as lutas social e ambiental só eram completas quando caminhando juntas. No Acre dos anos 1980, não era difícil entender o conflito de classes, e de qual lado você pertencia. Os povos seringueiros tradicionais dependiam da floresta intacta para extrair sua riqueza. Os fazendeiros, beneficiados pela política de desmatamento da ditadura militar, almejavam a mesma terra para a prática da pecuária extensiva. Eram muito nítidas as implicações sociais de se ter largas porções de terra concentradas nas mãos de alguns fazendeiros, em plena Floresta Amazônica. O conflito de terras levou a vida de Chico Mendes, e ainda deixa vidas pelo caminho. Em uma farmácia, fui atendido por uma jovem mulher viúva, que recordava com saudades de seu marido vítima de disputas por terra.
Cheguei finalmente à casa de Chico Mendes, local onde ele viveu com sua esposa Ilzamar e foi assassinado por Darcy Alves em 1988. A casa é um exemplar lindo da estética acreana, pintada com tons pastel de azul e detalhes em rosa. O lugar tem seu simbolismo e é extremamente fotogênico. Um letreiro identifica ali como a casa de Chico Mendes, e não há mais nada. Não há uma placa explicativa, não há trabalho de preservação da memória, não há o nome de seus assassinos, tampouco a pena a qual foram submetidos. O estado do Acre sofreu em 2015 uma das piores enchentes de sua história, que interrompeu uma obra de restauro da casa. Ela foi reaberta em 2017, mas fechada no início de 2020 por causa da pandemia do Coronavírus. Único bem tombado como patrimônio cultural nacional no estado, sua preservação é obrigação pública. Não fosse isso, talvez a casa tivesse um pior destino de abandono. Não consegui descobrir para onde foi o acervo e objetos pessoais de Chico Mendes. Quando eu passei pela praça da igreja, notei que havia um centro de informações turísticas. Passei lá para fazer algumas perguntas, mas descobri que agora o centro de informações funciona como ponto de Táxi.
No dia antes de eu ir à Xapuri, abri meu computador para tentar encontrar um hotel para ficar. Pesquisando na internet, nas tradicionais plataformas de reserva, não encontrava lugar para me hospedar. Abri o Google Maps, pesquisei por hotel na área e encontrei a Pousada dos Chapurys. Faltava uma informação de contato. Abri o Google Street View e consegui finalmente ler um número de telefone pintado no muro da pousada. Telefonei e fui atendido por um senhor chamado João Mendes. Minha primeira reação foi perguntar se ele era parente de Chico Mendes. Ele disse que não, já emendando com sua voz grave um discurso de amor ao que Chico construiu, criticando que na cidade muita gente não reconhece sua luta ou sequer conhece sua história. Reservei duas noites e na manhã seguinte cheguei à pousada, localizada entre o centro e a praça da igreja.
João Mendes é um poço de sabedoria sobre Xapuri. Sem informação, sem museu, sem memorial na cidade, desfrutei de seu conhecimento para perguntar tudo o que eu desejava saber sobre a cidade. Ele é um bancário aposentado filiado ao PT desde 1986 e sempre transitou bem entre as lideranças políticas do Acre. Em um restaurante anexo a sua pousada, que administra com sua esposa Maria Nilce, exibe com orgulho fotografias da história da cidade e com personalidades políticas que já hospedou. Há foto com Marina Silva e de ex-governadores do Acre como os irmãos Jorge e Tião Viana. Nomes como o de Lula e Eduardo Suplicy, da alta cúpula do PT já passaram por ali também. João Mendes, já um senhor, não tem mais o apetite político de outrora, mas permanece fiel ao ideal de Chico Mendes. Em uma televisão no restaurante, assiste jogos de seu Botafogo e acompanha o noticiário. Eu perguntei a ele sobre sua foto com Marina Silva, e ele comentou com ares de tristeza que ela abandonou a causa. Consegui perceber seu desapontamento com o atual governador do Acre, bolsonarista, Gladson Cameli, de Cruzeiro do Sul. O governador, de um partido rival, tenta abafar a memória de Chico Mendes em Xapuri, historicamente associada ao PT, e que ainda conta com prefeito petista.
Fato é que o atual governador tem altos índices de aprovação no estado e, caso consiga construir a ponte sobre o Rio Acre em Xapuri, conectando o centro da cidade ao bairro Sibéria (onde reside quase metade da população), pode ser o fim de um longo período de administrações de esquerda. Essa travessia hoje é administrada pelo governo estadual com balsas em estado ruim de conservação. Eu fiz uma visita ao bairro Sibéria de carro, passando pela balsa, e a experiência realmente é muito ruim. Em novembro, o nível do rio ainda é baixo, e para chegar à balsa, é necessário primeiro descer um enorme barranco, muito íngreme e não pavimentado. Quando a balsa chega ao outro lado, é necessário subir um barranco de igual declividade. Os carros costumam descer o barranco e entrar na balsa de ré, para, com a rotação da balsa em sua travessia no rio, saírem com o carro virado para frente no outro lado. Nesse processo precisei manobrar o carro na ladeira, com pouco espaço. Para subir, tive medo de faltar forças ao motor de meu carro. Para passar ali, o motorista deve ser consideravelmente habilidoso.
Seringal Cachoeira
A quarenta minutos de carro do núcleo de Xapuri, fica o Seringal Cachoeira, um dos lugares mais emblemáticos do Acre, território onde as disputas entre seringueiros e fazendeiros se acirraram. Local de nascimento de Chico e onde Darly Ribeiro tinha uma fazenda, antigos seringueiros, incluindo muitos familiares de Chico Mendes vivem ali. Se eu fosse escrever um glossário sobre o Acre, a palavra empate certamente estaria nele. Empates são manifestações de ativismo político em defesa da floresta pelos seringueiros. O termo carrega consigo a tática dessa manifestação: os ativistas se organizam pacificamente como uma corrente de pessoas com as mãos dadas em torno da área a ser devastada para impedir o seu desmatamento. O Seringal Cachoeira foi palco de empates históricos. Com uma pequena lista de nomes que João Mendes me recomendou procurar chegando lá, entrei no ramal de terra em direção ao seringal.
Em um momento diferente de nossa história recente, no ano de 2003 foi criada uma pousada ecológica no Seringal Cachoeira, administrada pelo governo do Acre. A ideia era criar uma estância turística em um lugar histórico, com interesse internacional, em que, por meio de trilhas culturais e vivências com seringueiros, o visitante pudesse conhecer sobre a luta seringalista, ao mesmo tempo que fornecia uma alternativa viável de exploração econômica de uma área de proteção ambiental. O turista tinha trilhas à disposição, podia alugar bicicleta, pedalinho, pescar e ainda fazer arvorismo nas enormes árvores amazônicas. Quando cheguei ali com o meu carro, parei no antigo estacionamento da pousada e o que vi me trouxe muita dor. A pousada estava em estado total de abandono, eram ruínas sendo invadidas e destruídas pela floresta. Algumas seringueiras ali ainda tinham os tradicionais potes de extração acoplados em seu caule, e eu, ingenuamente com meu canivete, tentava seguir as linhas traçadas pelos seringueiros para fazer a seiva jorrar. Sucateada pelo governo, sem investimentos, sem manutenção e largada durante a pandemia, a pousada passará à iniciativa privada.
Depois de caminhar um pouco pela região da pousada, fui abordado por um morador que disse estar aguardando uns turistas. Não era eu, mas ele me ajudou com algumas informações sobre o lugar. Perguntei sobre os nomes que João Mendes me passou e ele disse que estavam por ali, dizendo para eu ir até o mercado do seringal. Caminhei até lá, depois de ter tirado algumas fotos, e comecei a conversar com todos que eu encontrava. Se foi coincidência ou se ele foi avisado pelo morador que aguardava os turistas, Tito Mendes, primo de primeiro grau de Chico Mendes apareceu com sua moto no mercado e eventualmente começamos a conversar. Ele me levou para um passeio por duas pequenas trilhas que restaram do complexo turístico: a trilha da Sumaúma e a trilha do seringueiro.
Tive uma tarde muito agradável na companhia de Tito, que tinha um profundo conhecimento sobre a natureza e sobre a região. Ele trouxe equipamentos de extração de látex da seringa, como a cabrita, para fazer demonstrações. O seringueiro é antes de tudo um artista-cirurgião e a extração da seringa é uma poesia. As linhas são traçadas no ponto certo, seguindo uma direção de aproximadamente 30º. As linhas vão se conectando e formando caminhos para o escoamento da seiva. As listras criadas na casca da árvore, como afluentes de um rio, encaminham-se para uma via principal traçada longitudinalmente no tronco, para então cair em uma caneca de látex que os seringueiros afixam no caule. Quando a árvore é rasgada, ela primeiro fica vermelha, e depois esbranquiçada pelo látex, que flui pela sua superfície.
Segundo Tito, um seringueiro consegue extrair de 600 kg a 1000 kg de seringa por ano. Na alta do mercado, em um cenário muito pouco provável, paga-se R$10,00 por quilo de látex. Fazendo as contas, é um valor muito baixo para uma família viver por mês dependendo apenas da extração dessa matéria-prima. A castanheira é uma outra árvore que fornece um produto comercialmente valorizado. A questão ambiental insere-se nesse contexto: três dias após o seringueiro retirar todo o látex possível de uma árvore, ele pode repetir o procedimento. A árvore terá fabricado a seiva novamente, em um ciclo que só tem fim com a morte da árvore. No entanto, por pressão financeira e falta de incentivos, hoje os seringueiros aderiram também à pecuária e ao roçado.
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Na obra de Gabriel Garcia Marquez, Crônicas de uma morte anunciada, os irmãos Pablo e Pedro Vicário vão calmamente a um açougue afiar suas facas e manifestam sua intenção em matar Santiago Nasser. O coronel, informado, após seu café da manhã, confisca a faca dos irmãos e os manda dormir, sem sequer investigar o assunto. A notícia do iminente assassinato se espalha rapidamente pela cidade, mas ninguém, por motivos diversos, alerta Santiago: uns acham que ele já deveria ter sido avisado, outros que não era problema seu, outros que os irmãos não teriam coragem de cometer um assassinato - havia ainda os que secretamente desejassem o fim da vida de Santiago Nasser. A obra do realismo fantástico brilhantemente narrada por Gabriel Garcia Marquez se assemelha muito à tragédia de Chico Mendes.
Chico Mendes disse que seria assassinado até o dia 30 de dezembro de 1988. Foi morto oito dias antes, deixando uma lista de acusados, mandantes, cúmplices, que responsabilizava até o presidente da República. Essa lista pouco foi investigada pela justiça, que condenou Darci e Darly Alves, os responsáveis pelo tiro que matou Chico. Os dois hoje são fazendeiros, vivem no Acre e chegaram a comprar terras durante os anos em que fugiram da prisão entre 1993 e 1996. Chico Mendes vive hoje um segundo assassinato, o de apagamento da sua memória. Sua morte, que reverberou em todo o mundo, o colocou em um lugar de eternidade, preservado do desgaste e das vicissitudes do poder que seus aliados que continuaram sua luta viveram. Os governos do Acre e mesmo federal que se seguiram, muitos liderados por ex-companheiros de Chico, realizaram políticas de conciliação que atingiram bons resultados em preservação ambiental, mas nunca foram capazes de reduzir o desmatamento, que cresce desde o assassinato de Chico. Seu legado alcançou de fato a presidência da República na figura de Marina Silva, nascida em um seringal, líder de empates e ministra do meio ambiente de Lula.
Xapuri conta uma bela história, capaz de narrar caminhos para o futuro, mas precisei de muito esforço para conhecê-la. Gostaria que o caminho tivesse sido mais fácil. Deixei a cidade com um lado frustrado por encontrar uma memória muito apagada sobre a vida de Chico Mendes. No meu último dia, quando deixava a cidade pela manhã rumo à Brasiléia, lembrei que havia um cemitério na entrada da cidade e que Chico provavelmente estava enterrado lá. Desci do carro na porta do cemitério, e encontrei seu túmulo, apontado para fora do cemitério para que pudesse ser observado por quem passasse na rua. Havia apenas uma placa com fundo preto e letra brancas escrito "Chico Mendes vive!". Tirei uma foto e segui viagem.
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Estrada do Pacífico |
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Estrada da Borracha |
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Seringueiras plantadas no Seringal Cachoeira |
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Rio Acre em Xapuri |
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Rua de Xapuri |
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Calçada de tijolos em Xapuri |
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Casa de Chico Mendes |
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Rua em Xapuri |
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Acervo particular de João Mendes na Pousada dos Chapurys |
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Túmulo de Chico Mendes no cemitério da cidade |
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Tito Mendes demonstrando a extração de seringa |
Brasiléia e Assis Brasil: a vida em duas nações
Segui pela estrada do Pacífico para conhecer o Acre plurinacional, o que faz fronteira com duas nações estrangeiras: Bolívia e Peru. Além do desenvolvimento pela via ambiental e sustentável, o Acre acredita muito na proximidade com essas duas nações como um caminho de desenvolvimento econômico. O isolamento em relação ao Brasil sempre foi tido como um entrave para a economia acreana escoar sua produção. A ligação com o Pacífico foi firmada no início desse século com a construção da BR-317, chamada de Estrada do Pacífico, que após Xapuri passa por Epitaciolândia e Brasiléia, na fronteira com a cidade boliviana de Cobija, e termina em Assis Brasil, na fronteira peruana com Iñapari. Seguindo pelo Peru, a Estrada do Pacífico se divide em duas, uma em direção a Cusco, chegando ao porto de San Juan de Marcona. A outra, em direção ao Sul, atinge dois outros portos peruanos: porto de Matarani e porto de Ilo.
Celebrada, a estrada até hoje ainda não se justificou: oito anos após sua construção, a representatividade de exportações no PIB do Acre cresceu apenas 0,3 pontos percentuais. Além disso, conduzida pela Oderbrecht, a obra gerou uma crise política no Peru por suas irregularidades. Quatro ex-presidentes foram investigados por recebimento de propina da empreiteira, um deles atirou na própria cabeça antes de ser pego pela polícia. Minhas impressões das fronteiras podem estar contaminadas pela pandemia da Covid-19, que gerou uma recessão econômica no Brasil e reduziu muito o trânsito e poder aquisitivo das pessoas, além de provocar o fechamento de fronteiras por mais de um ano. Antes de embarcar para o Acre, uma de minhas preocupações era a possibilidade de atravessar as fronteiras terrestres. Encontrava informações ambíguas, sabia que na Bolívia a travessia estava acontecendo normalmente, mas no Peru estava fechada. Depois, durante a viagem, descobri que a travessia de barco pela fronteira peruana estava acontecendo. Se era oficialmente permitido ou não, não consegui descobrir; não encontrei, contudo, problemas para entrar em nenhum dos dois países fronteiriços.
Cheguei primeiro a Brasiléia, que se chamou Brasília décadas antes da construção de nossa capital. A cidade tem um centro bonito e arrumado, ornado com palmeiras imperiais. É sobretudo uma cidade interiorana que depende muito da sua vizinha boliviana Cobija, para onde voltei minhas atenções. Ao visitante que chega, recomendo reservar um hotel com antecedência de alguns dias. Dada a proximidade com Rio Branco e os baixos preços da Bolívia, a cidade costuma encher aos fins de semana, apesar de uma estrutura hoteleira ainda pouco desenvolvida. Hospedei-me perto da fronteira e no mesmo dia que cheguei, após um bom almoço na Pousada da Floresta, fiz a travessia a pé na Ponte da Amizade sobre o Rio Acre, entrando na Bolívia. Depois de conhecer o Rio Acre em Rio Branco e Xapuri, conheci o trecho que traça o contorno da fronteira entre Brasil e Bolívia.
Na ponte da Amizade, também chamada de ponte Wilson Pinheiro, seringueiro precursor da causa seringalista nascido em Brasiléia, uma placa indica que você está entrando em Cobija, la perla del Acre. No lado brasileiro, não havia presença militar. No boliviano, havia uma fortificação com soldados trabalhando, mas sem fazerem controle de fronteira. Em ambos os lados havia uma bandeira das duas nações, juntas à bandeira peruana, e na Bolívia, juntava-se a elas a bela e colorida bandeira andina. Em Cobija, rapidamente fui sentindo a sensação de se estar na Bolívia, ora pelo idioma espanhol, pelas repartições públicas, construções em estilo hispânico e, principalmente, pela presença de algumas cholas bolivianas.
A visita à Cobija diz muito sobre a sofrida história da Bolívia, país mais pobre do continente. Após andar por boa parte do estado do Acre, com inúmeras referências aos heróis da conquista, eu finalmente chegara a um lugar que conta uma versão diferente, a versão de quem perdeu a guerra. A cidade foi fundada pelo general José Manuel Pando Solares, que deu o nome ao estado (Pando) cuja capital é Cobija. Longe do altiplano, é o departamento menos povoado da Bolívia, mas que reinventou sua economia após o ciclo da borracha, criando a maior zona de livre comércio da Bolívia. Sendo uma cidade forjada no meio da Amazônia, cuja existência se justifica por uma política de Estado de povoamento do Acre, a cidade recebeu habitantes diversos e a população cresceu em ritmo muito acelerado com o comércio nos últimos trinta anos. É uma cidade bem urbanizada, com serviços, comércio, restaurantes e universidades (muitas de medicina, que atraem estudantes brasileiros).
É a Marinha boliviana que cuida da fronteira com o Brasil. É curioso pensar como um país encravado, sem saída para o mar, possui uma marinha. Essa é uma questão central na política externa boliviana. A cidade foi fundada como Puerto Bahía, mas mudou seu nome por confundir navios estrangeiros com a Bahia do Brasil. Seu nome foi alterado para Cobija como uma homenagem ao antigo porto boliviano no Oceano Pacífico, perdido para o Chile na Guerra do Pacífico. A existência de uma marinha reforça como recuperar o acesso a águas marítimas é importante para a Bolívia. Em sua história, a Bolívia perdeu território para todos os países com que faz fronteira à exceção do Peru: Argentina, Paraguai, Chile e Brasil. Sem o Acre, resta à Bolívia celebrar os heróis da Batalha da Bahía, quando o exército de Plácido Castro tentou tomar a cidade para o Brasil, mas o território foi bravamente defendido pela Bolívia. Dessa batalha emergiu a figura de Nicolás Suárez Callaú, um barão da borracha, como um herói nacional boliviano, presente em ao menos três monumentos em Cobija. Ele bancou a guerra com recursos próprios e os soldados eram funcionários de seus empreendimentos.
Entrando em Cobija, à medida que observava os contrastes que sempre se evidenciam ao atravessar uma fronteira, ia entrando nas lojas de produtos eletrônicos. O comércio na cidade é muito pulsante, embora esvaziado pelo menor trânsito de pessoas em razão do coronavírus. É possível encontrar aparelhos celulares, diversos acessórios, eletrodomésticos, utensílios de casa por um preço bem mais em conta que no Brasil. Empresários brasileiros hoje preferem empreender na Bolívia pelos incentivos fiscais e muitos brasileiros atravessam a fronteira todo dia para trabalhar. Uma das principais diferenças que notei em relação ao Brasil é na quantidade de motos nas ruas. Elas vão se juntando, seus barulhos somados, que dão uma sensação de caos na cidade. Entrei em uma feira de rua para ver todos os vegetais e cereais maravilhosos da cultura andina, com todas aquelas variedades de milho. Fui caminhando da fronteira até o Parque Piñata, onde fica um belo monumento chamado as "três cabeças", em homagem aos heróis da Batalha da Bahía. É uma caminhada que, em um ritmo de poucas paradas, é feita em trinta minutos. Ali, muitos restaurantes vendem um prato de frango empanado, chamado simplesmente de Pollo, que faz muito sucesso. Àquela altura da viagem meu estômago já sofria com a mudança em minha alimentação e não tive a oportunidade de experimentar. No Parque da Piñata, chamei um mototáxi que me levou de volta para a fronteira com o Brasil. Enquanto passava de moto por aquelas ruas, com o vento de ares novos tocando o meu rosto, estava com vontade de seguir para dentro da Bolívia. Eu estava muito feliz com aquele dia de passeio por um novo país.
Depois de Brasiléia segui para Assis Brasil. Mais distante, mais isolada, consegue ser bem mais pacata que a já pequena Brasiléia. A cidade recebeu o nome do embaixador Assis Brasil, importante nas questões diplomáticas envolvendo o Acre. A passagem seria mais curta, de apenas um dia, suficiente para conhecer o lugar. A cidade tinha uma pequena rua principal com apenas um hotel. Fui atendido por um homem bêbado e sem camisa e resolvi ir conhecer um segundo hotel, mais distante, em uma comunidade. Cheguei ao Hotel Bela Vista e conheci mais um incrível personagem do Acre. O Sr. Arquimedes ganhava 5 reais por dia na extração de seringa e resolveu erguer, a próprio punho, o melhor hotel da cidade, com uma capacidade inventiva que justifica o nome de seu xará de Siracusa. Como "melhor hotel da cidade", entenda um lugar simples, mas limpo e com um atendimento muito bom do Sr. Arquimedes, que também toca um mercadinho ao lado do hotel com seu filho.
Fui direto para a fronteira com o Peru. Na verdade, Assis Brasil é uma cidade de tríplice fronteira com a Bolívia e o Peru. No entanto, não existe muito povoamento no lado boliviano da fronteira. O Rio Acre deixa de separar o Brasil da Bolívia e passa a separar o Brasil do Peru. Um pequeno rio chamado Yarebija traça a fronteira entre Peru e Bolívia, completando a fronteira triangular. A travessia entre Brasil e Peru pode ser feita de carro pela Ponte da Integração, que, contudo, estava fechada como medida de proteção contra o coronavírus. Menos de um mês antes de minha chegada, havia tido um protesto em favor da abertura da fronteira. Somente caminhões podiam passar ali, a maioria dos que vi eram peruanos ou até bolivianos. Pedestres podiam atravessar a fronteira a barco, e fui atrás do ponto de travessia. Estacionei o carro e passei a pé por uma pequena estrada de terra que chegava até a margem do Rio Acre. O fluxo de pessoas era grande, e saia um barco atrás do outro tão logo atingisse sua capacidade máxima. Pessoas passavam com malas e cheguei a ver um homem levando uma moto nas pequenas embarcações. A travessia custava 5 reais por pessoa.
O fluxo de pessoas na fronteira parecia muito desordenado, organizado por um pequeno conglomerado de barqueiros. Nos dois lados da fronteira, taxistas - que no Peru também utilizavam tuk-tuks - aguardavam passageiros. A fronteira entre Brasil e Bolívia era totalmente desguarnecida de vigilância: crianças nadavam no Rio Acre e sem muito esforço, no nível das águas do mês de novembro, facilmente atravessariam a fronteira a nado. Fui navegando até Iñapari, dobrando a esquina entre os rios Acre e Yaberija. Chegando lá tomei um táxi até um ótimo restaurante peruano, onde pude comer um verdadeiro ceviche com lomo saltado e Inka Cola. Na saída do restaurante, quis andar até a Plaza de Armas, típica de qualquer cidade peruana que se preze. Errei o caminho e só fui notar que eu caminhava na direção errada quando atravessei a aduana peruana (sem que me pedissem nenhum documento). Voltei para corrigir o caminho e encontrei um cão pelado peruano, raça exótica do país, descansando sobre uma sombra na calçada, antes de chegar à Plaza de Armas. Até então, caminhava por uma rodovia, que fazia as vezes de avenida central de Iñapari, e o núcleo urbano da cidade era bem pequeno. O sol estava muito forte e eu não havia me preparado adequadamente para ele. A carequinha que cada vez mais se abre em minha cabeça com os efeitos implacáveis do tempo estava ardendo com o sol. A população se retirou à sombra e não tinha muito o que ver nas ruas. Fotografei a Plaza de Armas e tirei foto em um letreiro com o logo do Peru (o nome do país escrito com uma fonte estilizada, em que a letra P é composta por um espiral que evoca as linhas de Nazca).
Em uma das esquinas da praça ficava uma pequena rodoviária, onde se podia tomar uma vã para cidades peruanas como Puerto Maldonado e Cusco, porta para as maravilhas peruanas, de um modo bem acessível. Não me informei, mas a julgar pela quantidade de vãs as saídas pareciam frequentes. Fica a dica para os que puderem combinar uma viagem ao Acre com
uma visita ao sul do Peru. Para voltar ao pequeno barco e retornar ao Brasil, peguei um tuk-tuk para me divertir com esse meio de transporte alternativo que não encontramos no Brasil. No pequeno trecho de estrada de terra até a margem do rio, o veículo chacoalhava tanto que me provocou um moderado enjoo depois de ter me esbaldado com comida peruana e ter tomado muito sol na cabeça.
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Centro de Brasiléia
 | Fronteira entre Brasil e Bolívia em Brasiléia/Cobija
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Rua em Cobija próxima à ponte da Amizade |
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Comércio de rua em Cobija |
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Monumento aos heróis da Batalha da Bahía |
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Barcos para atravessar a fronteira com o Peru em Assis Brasil |
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Chegada em Iñapari, no Peru |
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Plaza de Armas de Iñapari |
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Ponte da Integração Brasil-Peru |
Reservas Extrativistas: como um sonho de Chico Mendes virou realidade
Fechei a viagem em um lugar muito especial, a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Deixar a visita à reserva para o final não era o meu planejamento ideal para a viagem, mas fiquei feliz em poder conhecê-la depois de uma imersão tão profunda na história e cultura do Acre. Reservas extrativistas são um dos grandes legados de Chico Mendes, que propôs sua criação como uma espécie de reforma agrária amazônica durante o I Encontro Nacional de Seringueiros na Universidade de Brasília, em 1985. O modelo foi inspirado nas reservas indígenas, onde as terras são da União e o usufruto das comunidades.
Meu interesse na Resex Chico Mendes surgiu cerca de um ano antes de minha viagem, quando li em algum lugar que uma tal trilha Chico Mendes havia sido eleita uma das mais interessantes do mundo. Como mais um sinal do apagamento de memória pelo qual o legado de Chico Mendes passa, a trilha, administrada pelo ICMBio, ficou sem receber visitas e sem cuidados básicos durante a pandemia, sendo tomada pela floresta em quase sua totalidade, de modo que se tornou impossível caminhar pelos seus 90 km. Na época de minha visita, fui informado de que o plano de retomada já estava sendo traçado, no entanto ficaria para depois da estação das chuvas. A trilha é uma iniciativa de ecoturismo coordenada com as comunidades: com duração prevista de cinco dias, cada noite é passada com uma diferente família dentro da reserva. Um guia local, tradicional habitante da reserva, a cada dia te acompanha até a família seguinte. Durante a pandemia, parece que muitas famílias perderam o interesse em receber caminhantes. Todavia, consegui o contato de Leila, filha do Seu Dimas, que vive na Resex e seu ponto era onde os caminhantes ficavam no primeiro dia de trilha. Muito simpática, ela organizou um pernoite para mim na Resex.
Eu estava em contato com a Leila por telefone, e ela me explicou como chegar até a pousada do Dimas. Disse em qual quilometragem da BR-317 eu deveria sair e quantos quilômetros em estrada de terra eu deveria percorrer a partir dali. A quilometragem marcada na BR, contudo, utilizava um sistema de contagem diferente do que me havia dito Leila. Também não havia sinalização precisa na estrada com algum ponto de referência. O ponto da Resex para onde eu ia ficava entre Assis Brasil e Brasiléia, e eu já estava em trajeto de retorno a Rio Branco; já havia passado por ali. Na ida eu notei como as placas indicando o caminho da trilha Chico Mendes estavam apagadas, quase ilegíveis, mas davam uma noção para onde eu precisava ir. Eu não tinha o ponto da pousada no mapa, mas não foi difícil encontrá-la. Bastou parar em uma pequena lanchonete na estrada, que sabiam me dizer exatamente para onde eu precisava ir. Seu Dimas é conhecido em um raio bem grande em relação a sua pousada.
Logo quando cheguei, conheci Seu Dimas e sua esposa Maria. Seu Dimas entende bem a importância de uma Resex e faz questão que todos a conheçam. Ali é sua casa e de onde ele tira o seu sustento, pelo extrativismo ou pelo turismo. Ele já presidiu a Resex e anda com um livreto com o plano de utilização, que ele faz questão de que todos conheçam. Na pousada do Dimas, finalmente encontrei o que buscava, textos e mais textos sobre Chico Mendes. Eu viajei com o excelente livro de Zuenir Ventura, Crime e Castigo, de jornalismo literário, que conta a história de Chico Mendes em três momentos: os dias seguintes ao seu assassinato, o julgamento de seus assassinos, e o seu legado quinze anos depois. Ele se tornou toda a minha base de conhecimento sobre Chico Mendes durante a viagem até ali, onde encontrei novos textos de museus, universidades e revistas.
Ambientalista e palestrante, Dimas sabe tudo sobre a Resex e sobre a natureza amazônica. Grande contador de histórias, a que mais gostei e aqui reproduzo é de quando ele recebeu seu diploma de técnico florestal, mesmo sem estudo formal: em um encontro com técnicos do ICMBio, acontecia uma discussão sobre a idade de uma árvore. Ele, após uma rápida observação no caule, afirmou com segurança a sua idade. Quando os técnicos buscaram nos documentos a datação da árvore, ficaram impressionados: Seu Dimas havia acertado com precisão. Assim, os técnicos o julgaram qualificado para receber a honraria de um diploma.
O conhecimento de Seu Dimas realmente impressiona. Saí para duas caminhadas com ele pela Resex. Para onde ele olhava, mostrava conhecimentos muito específicos para plantas e seus usos, que daria um livro. Eram muitos nomes de árvores e eu não fiz anotações. Não conseguirei documentar muito de seu conhecimento, mas gravei nomes relacionados a duas experiências memoráveis. A primeira foram os ovos de jatobá. Caminhando pela floresta, ouvimos de repente uma movimentação de um animal que parecia grande. Era uma mãe jatobá, ave da região. Ela estava chocando seus ovos, quase prontos para nascer, e se assustou com a nossa presença, deixando sua prole indefesa próxima à trilha. Os ovos que ela chocava eram azuis, uma cor que destoava do marrom e verde da terra, troncos e plantas. Mais a frente, Seu Dimas demonstrou a extração de um óleo vegetal com propriedades, segundo ele, de curar os rins. Ele criava uma espécie de torneira que se conectava às veias da árvore, acoplada em uma garrafinha de plástico. Em cerca de dois dias, a garrafa ficava cheia e ele vinha coletar, deixando uma garrafa vazia em seu lugar. Chegando em sua casa, sentamos na mesa, feita com madeira de árvore que caiu naturalmente, assim como todos os seus móveis. Ele mostrou alguns óleos naturais de extração e eu, que após quinze dias de viagem sofria com uma diarreia, perguntei se havia algum que curasse o estômago. Seu Dimas me ofereceu vinho de jatobá (não é minha memória pregando peça, tem o jatobá pássaro e o jatobá árvore), que eu tomei a princípio um pouco desconfiado. Tinha um gosto forte, um tanto amargo, como um remédio, que de algum modo me remetia ao sabor de terra. Tomei o vinho - o nome provavelmente vem da cor avermelhada do líquido - e minha diarreia passou. Mais tarde, na janta, repeti a dose.
Caminhar na Amazônia tem seus desafios. As árvores altas fazem pouca luz chegar ao solo, dando uma tonalidade obscura à paisagem. A vegetação densa depois de um tempo deixa a vista um pouco cansada. Pessoas como eu, diferentemente de Dimas, leigos nas faculdades das plantas e do bioma amazônico, que não fazem distinção entre espécies, sentem-se perdidos e começam a achar tudo muito igual. O calor é forte, a umidade intensifica essa sensação. Começamos a suar muito e o suor demora a evaporar. Havia troncos caídos na trilha. Seu Dimas contava com certa indignação as recomendações dos funcionários do ICMBio que faziam treinamentos de ecoturismo para a população da Resex. Não era recomendado remover obstáculos naturais do caminho, pois os turistas gostam. Enquanto subia nos troncos para ultrapassar as árvores, Seu Dimas se desculpava, tal como um anfitrião que pede desculpas às visitas pela bagunça em sua casa.
Tamanha simbiose com a natureza fez a família de Seu Dimas construir um belo lar integrado ao meio ambiente. Ele construiu um açude, e o repouso dos visitantes são estruturas de madeira nas beiradas. Dormimos em rede olhando toda aquela natureza exuberante. Patos nadam ali, e vez ou outra fazem uns barulhos que dão um leve susto, quebrando o silêncio da floresta. Ele planta muitas variedades de sementes, utilizando o fruto da castanheira como vaso. Havia criação de galinhas também e pequenas oficinas para fazer farinha, por exemplo, ou para tratar o látex extraído pelas seringueiras. Nesse último caso, Seu Dimas mostrou moldes que usa para fazer sapatos e pequenas carteiras impermeáveis. Hoje, no entanto, a extração de látex está longe de ser sua atividade principal, e a oficina funciona mais como uma peça de museu a céu aberto. Vive do roçado de subsistência, recebe auxílio e aposentadoria do governo e complementa bem a sua renda com o turismo. Seu Dimas mostrava onde ficavam os limites da reserva e de seu território. Onde não era reserva, havia criação de gado.
Como já sabia Chico Mendes, a existência de uma reserva, seja ambiental, como no caso da Serra do Divisor, extrativista, como a Chico Mendes ou indígena, como a Katukina, é o que impede o avanço do desmatamento. Quando encontrava momentos sozinho na Resex, me debruçava nas leituras sobre reservas extrativistas e sobre Chico Mendes. Alguns termos que eu ouvi muito no Acre começaram a fazer sentido quando comecei a ler o plano de utilização da reserva, sobretudo no que se refere à estrutura social e espacial de um seringal. Um seringal é composto por várias colocações. O nome correto do lugar onde Seu Dimas vive é colocação. Estradas que conectam diferentes colocações são chamadas de varadouro. Um ramal é uma estrada que vai para o exterior da reserva. Internamente no seringal, existem as estradas de seringa, com aproximadamente 150 árvores seringueiras cada uma. O plano de utilização da Resex Chico Mendes é bem preciso quanto à organização espacial. Cada família só pode ter uma colocação. Uma colocação tem no mínimo 200 hectares e duas estradas de seringa. Cada estrada deve ter no mínimo 100 árvores de seringa. É responsabilidade do extrativista zelar por suas estradas. Por ser de domínio público e ter seu uso concedido, é proibido o loteamento e venda de colocações. É também proibido derrubar seringueiras e castanheiras. Mesmo o modo como a seringueira é cortada para extração do látex é determinado no plano. O sistema de corte deve ser pela banda ou pelo terço. A madeira pode ser extraída para uso próprio e no interior da unidade para construção de barcos, móveis e instrumentos de trabalho, podendo ser comercializada apenas com um Plano de Manejo Florestal Sustentável. Além das atividades extrativistas, o morador pode realizar atividades complementares como agricultura, criação de pequenos animais e peixes, desde que não ocupem mais de 10% de seu território ou mais de 30 hectares. A criação de gado segue regras mais rigorosas, não podendo ocupar mais de 50% da área destinada às atividades complementares
A reserva extrativista mostra como Chico Mendes não ofereceu apenas ideias, mas soluções práticas para promover a sustentabilidade. A preservação da floresta depende muito do que Chico chamou de povos da floresta, aqueles que conseguem viver nela sem destruí-la. A ideia de reserva extrativista se proliferou pelo Brasil, existem hoje 96 unidades em todas as regiões, mais da metade na Amazônia, protegendo 5,8% do território. Para além da biografia de Chico que explorei em Xapuri, conheci melhor quais eram as encantadoras ideias do homem político, que se candidatou a deputado e prefeito e atuou na fundação de um partido político. Chico Mendes ganhou projeção política após o assassinato de Wilson Pinheiro em 1980, quando continua a luta seringalista como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Xapuri, cargo que assumiu até o fim de sua vida. Sem escolas nos seringais, foi alfabetizado aos 19 anos pelo militante comunista que havia deixado a Coluna Prestes e fixou residência em Xapuri, Euclides Távora. Sabendo do poder da educação, criou o Projeto Seringueiro e fundou a primeira escola em um seringal, que fica na área da Resex. O projeto guiou a política educacional no Acre nos anos 1990. No início, o público das escolas eram adultos, alfabetizados com a metodologia introduzida por Paulo Freire de palavra geradora.
Extrativistas e indígenas não sentavam à mesma mesa antes da liderança de Chico Mendes. Quando os seringueiros começaram a povoar o Acre, como em qualquer experiência colonizadora no Brasil, os índios que viviam em territórios cobiçados pelos novos habitantes eram expulsos ou dizimados, caso oferecessem resistência, em eventos chamados de "correrias". Foi quando Chico Mendes e Ailton Krenak criaram a Aliança dos Povos da Floresta que extrativistas e indígenas se viram unidos por uma causa comum: resistir à política "integrar para não entregar" da ditadura militar, que estimulava a vinda de fazendeiros para a Amazônia. As forças foram se balanceando, principalmente quando a antropóloga Mary Allegretti, que desenvolvia sua tese no Acre, conheceu Chico Mendes e abriu suas portas no exterior. Chico denunciou na ONU o que acontecia no Brasil, ganhou diversos prêmios e um lugar na história.
A luta iniciada por Wilson Pinheiro e amplificada por Chico Mendes ecoa em muitas outras figuras. Longe de estarmos vencendo, novos mártires nascem ano após ano. Segundo uma publicação que li na Resex, organizada pelo Sindicato dos Professores do DF e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, dados da Comissão Pastoral da Terra mostram que entre 1985 e 2017 houve 1904 casos de morte por conflitos no campo, apenas 8% julgados. Massacres ainda ocorrem a todo momento, mas felizmente existem muitas vozes ativas na luta. Chico mostrou, com exemplo e liderança, um caminho possível. Para além disso, trouxe para o grande público uma ideia que inspira a luta e a preservação do meio ambiente por meio da ação política.
Contatos
Xapuri
Francisco (Tito) Mendes: (68) 99904-4372 /(68) 99921-4943
Pousada dos Chapurys (Xapuri) / João Mendes: (68) 99988-1155
Resex - Chico Mendes
Leila (68) 9230-7858
São tantos detalhes descritos nesse texto que consigo me sentir vivendo esses dias também.
ResponderExcluirÉ revoltante ver o apagamento da história de luta de Chico Mendes, mas saiba que a riqueza do seu relato é mais um registro importante sobre essa memória.