sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A questão da linguagem em "Vidas Secas"

Em "Vidas Secas", história de Graciliano Ramos, a questão da linguagem é fundamental para a ambientação da narrativa. Ela simboliza uma hierarquia, carrega uma visão de mundo e desqualifica o homem à condição de animal. A história é centrada na figura de Fabiano, patriarca de uma família que sofre com a seca e com a fome no sertão nordestino. 

O livro é narrado em terceira pessoa, uma vez que nenhum dos personagens principais se demonstra apto a conduzir a narrativa. Há também a constante presença do discurso indireto livre - aquele que mescla a fala do narrador com a fala do personagem -, o que evidencia o conflito do homem com a língua. A paisagem desumanizadora do serão faz com que Fabiano prefira se relacionar com animais a procurar enfrentar a fala da cidade.

No capítulo "Cadeia", a propósito, Fabiano julgou que caso conseguisse devidamente se expressar poderia não ser preso. Após ser seguidamente insultado por um soldado, o Soldado Amarelo, Fabiano foi instigado a cometer um desacato e terminou preso e maltratado. Nesse sentido, a linguagem funcionou como um meio opressor, em que o Estado, simbolizado pelo Soldado Amarelo, acusava um sujeito que não poderia se defender ou se justificar verbalmente.
"Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?"
Em diversas outras passagens, é evidente a incompetência linguística das personagens:
"Ordinariamente a família falava pouco (...) Raramente soltavam palavras curtas."
"[Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais (...) Montado em um cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia." 
Também a presença da cachorra Baleia é um importante contraponto à família no que se refere à linguagem. Nesse caso, a paisagem modela o homem de tal modo, que os limites entre a suposta racionalidade humana e a irracionalidade animal não são bem claros. O papagaio da família, a exemplo, aprendera apenas a latir como Baleia.

Em síntese, a questão da linguagem presente em "Vidas Secas" se relaciona à visão desumanizada que o ambiente inóspito da seca exerce sobre os indivíduos. Fabiano, em diversos momentos ao longo da narrativa, se autodeclara um bicho. Assim, o modo de aproximar a realidade humana da animal foi pelo uso de onomatopeias, frases monossilábicas e sons guturais por parte das personagens.



"Como você veio parar aqui? -A pé, seguindo a linha do trem"

Histórias que só existem quando lembradas


Em um vilarejo imóvel, esquecido no tempo e cruzado por uma linha de trem abandonada, Madalena vive uma rotina cíclica e monótona: a senhora, padeira, acorda, prepara seus pães, toma uma xícara de café sentada em um pequeno banco, observa o tempo, cruza a linha de trem, vai à Igreja, rememora lembranças de seu finado marido em um cemitério trancado e almoça  com seus velhos colegas, também habitantes da cidade fantasma. A chegada de uma jovem mochileira, Rita, simboliza uma profunda mudança e um conflito de gerações, que nos faz refletir sobre vida e morte; progresso e imobilidade; cidade e campo; tempo presente e tempo passado.

No filme "Histórias que só existem quando lembradas", há uma delicada relação entre o tempo e o indivíduo. Como o próprio título sugere, o esquecimento é uma constante em cada habitante da cidade. O cemitério, que se encontra trancado há anos, parou de registrar óbitos, pois as pessoas simplesmente "se esquecem de morrer", ou não se sentem ainda infelizes o suficiente para tal. Trens não passam mais pelo vilarejo, que se fundamentou às margens de uma ferrovia. Madalena, por sua vez, corresponde-se frequentemente com seu marido, que não mais receberá as cartas.

“Meu amor, quero manter sempre viva a nossa memória para que o nosso amor no futuro não sinta o passar dos anos. Havemos de transpor a morte, essa inimiga cruel que não escolheu dia nem hora. Beijo-te carinhosamente”.


..............."Velha safada"...............

Nesse cenário, surge Rita, forasteira e jovial, seguindo a ferrovia; a linha do atraso, por onde deveria passar a modernidade do trem. Ela parte em uma busca por pertencimento e abala toda a estrutura da pequena cidade. O filme até então era silencioso, com poucas falas e com cenas repetidas, demostrando o equilíbrio e a imobilidade da vida na cidade. Após a chegada de Rita, o cotidiano de todos por ali é renovado com novos diálogos. O silêncio, até então, trazia perfeitamente a sensação de estagnação no tempo, com as ações diárias ocorrendo ciclicamente e de modo praticamente automático.

Rita se hospeda, assim, na casa de Madalena, e partir daí o filme ganha novos rumos. A moça encorpora alguns elementos da nostálgica cultura hipster, sobretudo em sua câmera fotográfica artesanal, feita com antigas latas. Além disso, porta ainda um ipod e uma outra câmera fotográfica, digital. O filme ganha inclusive trilhas sonoras, dentre elas "Take me out", de Franz Ferdinand, em uma bela cena que quebra o andamento do filme e promove o choque de culturas. A princípio, a relação entre a moça e os demais velhos moradores da cidade é de estranhamento mútuo: já durante o almoço, marcado pela reza e pelo silêncio, Rita propõe um brinde. Um dos senhores à mesa indaga Rita sobre o fato de mulher beber pinga. Para ele, mulheres deveriam se ocupar com tarefas domésticas, supostamente típicas femininas.

A relação de Rita com os moradores da cidade se dá, sobretudo, pela fotografia. Rita passa a fotografar, com seus diferentes modelos de câmera, os antigos aparatos usados por Madalena para confecção de pães, e o cenário do filme passa a ser visto sob novas perspectivas. A cena em que Madalena se deixa ser fotografada pela primeira vez é linda: imediatamente após a pose, Madalena limpa um velho e esquecido espelho para ver sua imagem. A câmera fotográfica funciona como uma metáfora para a passagem do tempo e para a evocação de lembranças. A câmera pinhole, artesanal, depende, em sua essência, da exposição do objeto ao tempo. Além disso, as fotos revelam uma certa fantasmagoria: a imagem da pessoa parece sumir e se fundir com o plano de fundo.

Desse modo, o filme cumpre muito bem a meta de promover a reflexão sobre o conflito vida/morte, tempo e memória. No fim, as fotografias desenvolvem um reconhecimento da velhice e da passagem do tempo, de modo que a morte deixa de ser temida e volta a ocorrer no vilarejo, renovando as relações interpessoais. Quanto a Rita, será que, afinal, ela alcançou a sua almejada sensação de pertencimento; descobriu seu lugar no mundo?