terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Em fuga

Preso entre quatro paredes, mantido ali dentro para sempre. Tenho medo de jamais ver alguém como a senhora, mamãe. Resolvemos agir. Introduzimos guitarras e sintetizadores ao cântico. Então fazemos preces mantendo o andamento da canção. Se um dia eu sair daqui, doarei meu dinheiro à uma caridade registrada e brindarei uma caneca de cerveja por dia; se um dia eu sair daqui, minha vida será diferente. Um som de orquestra nos confere contornos épicos e indica o otimismo da nova fase de nosso hino. Pulamos o muro, saímos de nosso confinamento e agora todos nos procuram. O carcereiro e o marinheiro não nos encontraram. O agente funerário se preocupa com nossa ausência. O ressentido juiz do Condado, por sua vez, não tem ninguém para julgar. Porém nunca nos encontrarão. Somos a Banda em Fuga e estamos nos divertindo.

No dia 25 de novembro encontrei Paul McCartney, o idealista de Band On The Run, da Banda em Fuga. Na metade final de sua apresentação, introduziu os serenos acordes iniciais da canção, que duraria cerca de cinco minutos. Naquele momento fui convidado a olhar dentro de mim mesmo. Tive que viajar em meu interior com os pensamentos que a música me trouxe. Ouvi o álbum homônimo exaustivamente ao longo do ano. Entre tantas idas e vindas, com tantas horas na estrada, Band On The Run foi minha trilha sonora dos últimos tempos, em que minha vida mudou drasticamente. 


Cabe aqui, a princípio, conversar sobre a composição do álbum, fonte de inspiração deste texto, e sobre as circunstâncias em que foi produzido. No ano de 1973, passada a comoção após a dissolução dos Beatles, Paul McCartney precisava se superar. Nesse caso, sua tarefa não seria das mais fáceis: competir consigo mesmo; com o Beatle Paul, seu passado recente e de extremo sucesso. Essa superação significava entrar no mundo real, sair do sonho que há pouco acabara. Ele, que permaneceu na banda dos 15 aos 28 anos, afirmava não saber ser outra coisa além de um Beatle. Teve que se reinventar e se adaptar às circunstâncias. Passou dias difíceis e sem muita perspectiva, isolado em uma fazenda na Escócia, procurando formar um porto seguro com a família que estava montando. Alcançou certo sucesso com algumas composições. A redenção, contudo, só veio com Band On The Run. Para produzir o álbum, decidiu sair da mesmice da Inglaterra e partiu para um lugar deveras exótico: Lagos, na Nigéria. Com esse distanciamento, pode se concentrar na sua arte e encarar seus novos desafios. Foi sua fuga. Concebeu um álbum de alta categoria - impecável da arte da capa ao repertório - um dos definitivos do Rock, cujas músicas dialogam entre si. Foi também sua autoafirmação. Teve a certeza de que era capaz de compor como compunha nos tempos de Beatles. Passou a ser McCartney, não mais Lennon-McCartney.

Enquanto eu viajava ouvindo Band On The Run no em minha vida antológico dia 25 de novembro, percorri por todos os caminhos que me levaram à minha própria fuga. De repente o cenário de minha vida mudou e eu não morava mais na casa de meus pais. Eu arrumava a mala para o que parecia um passeio comum, mas, quando percebi, estava me mudando de cidade. Meu mundo cresceu e minha quilometragem aumentou. A rodovia Imigrantes era a rua de minha casa, e a Presidente Dutra, a avenida do meu bairro. Eu estava, agora, em Santos. Minha noção de distância se alterou. Percorrer duas quadras na pequena cidade de Santos parecia demasiadamente maior do que no Rio de Janeiro. Por outro lado, os 500 km que separam as duas cidades se demonstraram desprezíveis diante do mundo que se estendia diante de mim.

Paul é um velho amigo, de longa data. Vimos-nos presencialmente em duas ocasiões: em 2011, no Rio, e agora em 2014, em São Paulo. Lembrei-me de quão bom é ter uma predileção quase exclusiva por um grupo seleto de músicos. As mesmas melodias nos remetem a mais de um momento de nossas vidas, e podemos fazer uma autocrítica de nosso amadurecimento. Como afirmou certa vez o Bruxo do Cosme Velho, cada estação da vida é, afinal, uma edição que corrige a anterior e que será também corrigida. A obra final, no entanto, é uma só. O menino que ouvia The Long and Winding Road  memorando um passeio de bicicleta no interior da Baviera é o mesmo que ouve a música percorrendo as longas e tortuosas curvas da estrada de Santos. A maneira de assimilar os sons, contudo, é diferente. A música possibilita navegarmos por diversas edições do livro que conta a história de nossas vidas.


O menino de outrora, com efeito, não havia percebido que a estrada a que Paul se refere em sua canção, ao mesmo tempo que deixa uma poça de lágrimas, guia-nos até novas portas. Estamos agora diante do enigma da fronteira. Atravessá-la consiste em, necessariamente, deixar algo conhecido e rumar em direção ao novo. Nosso dever é deixar legados que nos permitam ser sempre bem-vindos ao nosso local de origem, e construir bagagens que possam nos levar aonde bem entendermos. Para decifrar o enigma é necessário compreender que a fronteira, na maioria das vezes, não é física. São circunstâncias da vida que indicam a hora da mudança, de fuga da inércia, de enfrentamento de desafios. Transpor a fronteira é explodir as guitarras em Band On The Run.

A viagem introspectiva que fui convidado a fazer estava acabando, assim como os cinco minutos da canção. Já havia passado pela primeira parte, de medo do cárcere. Os acordes serenos sublimavam toda a obscuridade daquela condição. Devemos tomar cuidado com as impressões; a parte mais calma da música era, também, a mais sombria. Do mesmo modo, adentrei à segunda parte, da fuga propriamente dita. A parte mais curta e intensa. Das adversidades, ficou claro que sempre há, a um pequeno passo, uma possibilidade de ação. Agora eu desfrutava da última parte, brindando uma cerveja por dia.


Voltei, então, para Santos e troquei o som de Band On The Run pelo estrondo das buzinas de navios que se aproximavam do porto, que irrompem em notas baixas como na Quinta de Beethoven. Sons igualmente prazerosos. Admirava o mar sem fim, o mesmo que banha o Rio de Janeiro, a África, Europa e toda a América. Do horizonte, observava navios vindo de muito longe chegarem, trazendo consigo seu som, dispersado aos quatro ventos em todas as entranhas da cidade. Meu veículo era apenas uma bicicleta. Com ela eu estava em constante contato com o meio; andava com o vento tocando o rosto, trazendo cheiros e sensações dos lugares por onde eu passava. Não precisava mais de muito. Estava me divertindo, e ninguém mais poderia me encontrar. Como na canção, eu acabara de me tornar um fugitivo.

If I ever get out of here, if we ever get out of here

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Cinema, aspirinas e urubus


Contra todos os males do sertanejo


Essa história é contada sob dois pontos de vista. De um lado, um alemão se reinventa no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Do outro, um sertanejo busca meios de tentar a vida. A interseção entre esses dois planos de fundo ocorre nos sertões de Pernambuco. Para um, lugar deleitoso de paz, inocência e renovação; para outro, lugar a ser deixado, matriz de desgraça e sofrimento.

Há três meses dirigindo pelas estradas de um Brasil ainda primitivo, o alemão Johann, com sua caminhonete, vende medicamentos dispondo de uma poderosa propaganda: o cinema. De vila em vila, ele exibe curtas cenas do polo de modernização do Brasil na década de 40, o eixo Rio-São Paulo, para uma população que nunca teve a possibilidade de se desprender de sua terra atrasada. Ao fim de cada exibição, a aspirina, remédio para dor de cabeça de patente alemã, prometia acabar com todas as dores do ser-humano.

Nesse contexto, o pernambucano Ranulpho, conhecedor das veredas do sertão, oferece seu serviço ao alemão em troca de carona. Apresenta-se com a ambição de chegar ao Rio de Janeiro.
-O senhor vem da onde?
-Da Alemanha.
-Perguntei de onde o senhor começou essa viagem, de onde o moço vem com esse caminhão, não de onde o moço é.
-Comecei no Rio de Janeiro.
-Eu vou para onde o moço veio, tentar a vida. Cansei desse lugar aqui, desse buraco. O senhor parece cansado.
-São três meses de viagem, e agora esse Brasil parece que não acaba nunca.
-Lugar que não presta é assim, demora pra acabar.
Um acordo de cavalheiros é firmado e uma amizade começa de modo tímido e com certa desconfiança. Ranulpho permanece inquieto sobre os reais efeitos do remédio. Afirma que naquela terra só se vende o que mata a fome do povo. Na primeira parada de sua jornada, após a primeira exibição do filme que presencia, contudo, fala, encantado, que é como vender Bíblia para Satanás. Ao mesmo tempo em que se entretém com um mapa do gigantesco Brasil, pergunta a Johann se cinema de verdade também é feito no meio da rua com dois pedações de pau.




Enquanto Ranulpho se deslumbra com o cinema, a parafernália e o automóvel de Johann, o alemão fica curioso com uma convocação, na rádio, de voluntários para o trabalho de seringueiro na Amazônia. Faz muitas perguntas ao sertanejo, que desdenha dos "soldados da borracha". Segundo ele, o governo explora os miseráveis do Nordeste para que possa vender borracha para os Estados Unidos usarem na guerra. Ranulpho retruca com novas perguntas sobre o serviço de Johann. Indaga se é necessário ser alemão e ter estudo.
-O trabalho é bom?
-É, a viagem é a melhor parte.
-Já foi pra onde?
-Quase o Brasil todo.
-É, já vi que o negócio do moço é viajar mesmo. Gosta até de viajar para esse lugar infame.
-E o senhor, viaja muito?
-Viajo só a trabalho. É isso é ponto. O que o senhor acha de tão interessante em um lugar miserável como esse?
-Nunca estive em um lugar assim.
-Aqui é seco e pobre.
-Pelo menos não caem bombas do céu.
Após algum tempo de viagem, Ranulpho procura afastar de si o carma do sertanejo. Em conversa com Johann, reclama das constantes paradas para carona, ao que responde igualando-o aos pedintes. Não fosse o pedido de carona, afinal, Johann e Ranulpho não teriam se conhecido. Em uma das tantas pausas, conhecem uma moça que saía de casa após ser expulsa pelo pai embriagado. Iria até a próxima cidade pegar um trem para Recife, onde vivia sua irmã. A moça desperta o interesse dos dois rapazes, que entram em conflito pela primeira vez. Após uma exibição do filme e conversas sobre a felicidade ilusória do cinema, o alemão vence a disputa pela moça. Na manhã seguinte, enquanto ela sumia na Caatinga, Johann e seu fiel escudeiro, cabisbaixo, seguiam seus caminhos. Ranulpho via no alemão e em seu maquinário a imagem do que gostaria de ser.

Uma picada de cobra deixa Johann próximo a morte. Ao mesmo tempo, a rádio anuncia o bombardeio de um navio brasileiro por submarinos nazistas. Em seu leito, Johann pede para que Ranulpho conte uma história, que, quando percebe que Johann adormeceu, decide contar a história de sua própria vida, a única que conhecia. Inicia-se o belo monólogo sobre o drama do sertanejo.
"Penei mas cheguei lá, na capital. Quando a fome bateu eu voltei. Fiquei com medo de morrer de fome. Pensa que levar uma derrota nas costas é triste? Também, lá é assim, nordestino só serve de mangação. Juntava o povinho todo e ficavam falando: 'fala aí de novo, rapaz', 'mais um paraíba', 'é verdade que você bota a peixeira embaixo das calças que nem cangaceiro?', 'você come calango?'. Aí eu abaixava a cabeça. Agora não, agora vai ser diferente. Agora vou chegar e falar assim: 'como é, rapaz? Grita aí de novo... calango? Como calango como como o cu da sua mãe, filho da puta!' Eu vou pegar a carteira de trabalho assinada com a fábrica da Aspirina e mostrar na cara dele assim. Depois vou mandar uma carta para minha mãe contando do novo funcionário da fábrica. Ela vai abrir e ler para todos os moradores de Bonança ouvir."
Na cena seguinte, Ranulpho, sozinho, liga o equipamento de montagem cinematográfica do alemão e usa sua própria mão como anteparo para assistir às imagens do Rio de Janeiro, alvo de sua jornada.



Em um decreto do dia 31 de agosto de 1942, o governo brasileiro de Vargas declara guerra à Alemanha e seus aliados. A empresa Aspirina, assim, é interditada e seus dirigentes condenados à prisão, que determinaria a permanência em campos de concentração no interior de São Paulo ou a deportação. Como numa brincadeira de criança, Johann e Ranulpho se tornam adversários de guerra em um campo de batalha imaginário. É nesse momento que a jornada dos dois tomará contornos distintos.

Diante de uma carta de prisão, Johann pinta sua caminhonete e decide ir disfarçado para a Amazônia extrair borracha. Ranulpho, que era a sombra do alemão, recusa o convite de ir junto e decide traçar seu próprio caminho, na capital.
"Que situação desse povo, perdeu tudo e ainda é obrigado a ir para aquele fim de mundo, eu não quero isso para mim não. Vou enfrentar, vou fazer o que você vai fazer lá na Amazônia, vou fazer meu destino.
E por que não pode ser lá?
Porque meu destino é outro."
Momentos antes de partir para a Amazônia, todos os novos aspirantes a soldados da borracha se reúnem na estação de trem. Ranulpho, após se autopromover durante toda a jornada como superior a seus semelhantes, fica indignado quanto ao modo como os soldados tratavam os sertanejos. Johann, a propósito, agora se juntara ao grupo dos flagelados, castigados. Ranulpho articula uma manobra para despistar os soldados e embarcar o alemão no trem. Em troca, recebe as chaves da caminhonete. Estava realizado.

Perante a estrada que se alongava diante de si, seguiu, sorridente, o caminho que ele próprio escolheu. Com a palma de suas mãos empunhando o volante, e com a ponta dos pés acionando o motor de sua caminhonete, estava livre para ir aonde quisesse.