domingo, 20 de setembro de 2015

O Monte

Essa viagem começou há muito tempo, em sonhos, do desejo de chegar a lugares onde poucos chegam. Também do desejo de chegar aos extremos do meu país e do meu planeta, de conviver com a natureza selvagem, com espécies exóticas e bem selecionadas para habitar ambientes inóspitos. Sonhos em que eu era apenas um andarilho atrás de um mundo perdido, uma terra prometida, localizada um pouco a norte do fim do mundo.

Chegar ao paraíso, contudo, é uma tarefa árdua. A força que nos move é tão pouco os músculos de nossas pernas e o desejo de ir adiante. Devemos ser capazes de suportar nossa própria presença, de compreender o dia pela luz do sol, e a noite pelo ciclo das estrelas. Dormimos por noites seguidas no chão duro, e carregamos tudo o que é preciso sobre nossas costas. Não  há muitos espaços para luxos, ao passo que não precisamos de muito para nos sentirmos livres.


O destino foi o Monte Roraima, lugar em que senti ser necessário estar. Segundo a mitologia pemón, o monte era o tronco de uma árvore que fornecia todos os bons frutos. A árvore, porém, era sagrada e ninguém podia tocá-la. Quando o dia amanheceu com a árvore cortada, a natureza revoltou-se e, em seu lugar, surgiu o Monte Roraima, sagrado para todos os índios da região, que o julgam a mãe de todas as águas, protegido pelo espírito de Makunaima. Acreditam que até hoje o monte chora pela violação do passado; quando há trovoadas e tempestades, significa que Makunaima foi contrariado e está a castigar alguma tribo.

Uma das formações geológicas mais antigas do planeta, o monte conta nossa história desde o princípio. Erguido há cerca de 2 bilhões de anos, ele presenciou a formação dos continentes, dos oceanos e da atmosfera. Viu eras glaciais, superaquecimentos, vulcões nascendo e morrendo. Também viu o surgimento do DNA, viu seres vivos migrarem da água para a terra e o primata virar homo sapiens. Conheceu a pedra polida, a pedra lascada, a imprensa de Gutenberg e a máquina a vapor de Watt. Viu a amazônia surgir aos seus pés, e o maior rio do mundo escorrer em seu quintal. Descobriu que vivia na América e que existiam pecados. Viu as sagas de Cristo, Buda, Moisés e Maomé. Viu conquistas, reconquistas e genocídios; viu a América virar católica.

Lá é onde a vida começa. A água que vem do céu e escorre pelas nossas costas é a mesma que enche rios e mares, e a mesma que está disponível, limpa e em abundancia, para todos. Assim como a semente que espera a água da chuva para brotar do solo, aprendemos a viver do que a natureza nos dá. Banhamos-nos em rios, cedemos nosso sangue aos mosquitos, caminhamos com as nossas próprias pernas, olhamos o monte adiante e nos atentamos à presença de serpentes no caminho. Ouvimos o canto dos pássaros e o som do vento. Do mesmo modo como querermos sempre nos manter vivos, tomamos cuidado com todas as formas de vida que surgem em nosso caminho.





O prazeroso desconforto de dormir em um acampamento aguça nossos sentidos. Imaginamos tanta coisa que se torna difícil distinguir os momentos de sono dos momentos de divagação consciente. Difícil mesmo é parar para pensar que estamos em nosso próprio planeta Terra. O topo do Roraima tem uma beleza sem igual; talvez possa ser comparado apenas à superfície de planetas que ainda nem foram descobertos pelos humanos. O terreno é irregular, com diversas subidas e descidas, e a natureza é extraordinária, formando um verdadeiro mundo à parte. O alto índice pluviométrico formou cavernas e crateras. Os nutrientes que faltam ao solo rochoso é compensado pelos insetos na dieta das diversas plantas carnívoras que ali abitam. O monte se dá ao luxo de dispor de um vale de cristais, com diversas formações bipiramidais de quartzo, que esbranquiça e embeleza o cume. A fauna é endêmica, e espécies que vivem ali não vivem mais em lugar nenhum. Anfíbios e aves foram os que melhor se adaptaram a viver sob tão extremas condições. Há quem jure, ainda, já ter visto seres fantásticos, com cabeça de pássaro e corpo de lagarto.    

No páreo dos 2800 m de altitude, em um terreno mais antigo que os Andes e o Himalaia, estamos acima das nuvens e nos sentimos no topo do mundo. Acima de nós, somente o céu. Abaixo, apenas a imensidão das matas intocadas da Gran Sabana. O monte que marca a fronteira tripla entre Brasil, Venezuela e Guiana, na verdade, não tem nação; maior que qualquer sentimento nacional, o monte vive de lendas, folclore e misticismo. Os exotéricos afirmam ser ali um lugar bastante propenso às boas energias. É, como indicam as placas na BR-174, a terra de Makunaíma. Índios Macuxi contam que, no topo do Roraima, nasceu, do encontro do Sol com a Lua, Makunaima. Ele era o único ser que podia tocar na árvore de todos os frutos, dividindo sua colheita igualmente entre todos os seus iguais. Essa farta árvore despertou a ambição e a inveja em alguns corações da tribo, que foram até a árvore colher seus frutos para tentar replantá-la em outras localidades. A árvore morreu e Makunaima ficou furioso, transformado a floresta em pedra. O mesmo Makunaima, herói do povo Macuxi, teria inspirado Mario de Andrade a criar  "Macunaíma", nosso herói sem caráter, cujo grande corpo contrasta com a pequena cabeça.




Após seis dias e cinco noites vivendo sob a tutela do Monte Roraima, estava exausto e com o espírito renovado. Podia contar uma bolha na ponta de cada dedo dos meus pés. Já estava habituado a carregar uma mochila de 10 kg, de modo que tinha dificuldades em me equilibrar sem ela. Minha perna doía de cima a baixo, e minhas costas estavam castigadas pelas noites de campanha. No fim da descida, enquanto minha dor física dialogava com minha revigorada saúde espiritual, Roger, o indígena guia de nossa expedição, falava que gostava tanto da civilização - pois podia beber cerveja - quanto do mato - onde podia permanecer em paz . Eu, com pouco fôlego, só pude dizer: 

estoy cansado pero feliz



sábado, 19 de setembro de 2015

Esse país é o meu país

No Brasil existe um lugar que fica no hemisfério norte, onde se canta o Hino Nacional, onde grande parte da população tem feições indígenas, onde o garimpeiro é herói e o taxista é garimpeiro. Nesse lugar existe a savana, a floresta amazônica e grandes plantações de soja. Os habitantes mais velhos ainda vivem em Território Nacional, não em uma Unidade Federativa. Ajudaram a construir o Brasil, a povoar os extremos de nosso território. O país termina ali, onde fica nosso ponto mais setentrional. 

Em 15 de novembro de 1889 a estrela de Roraima ainda nem sonhava em brilhar no céu do Rio de Janeiro, a capital nacional. Hoje, Boa Vista celebra, em um mesmo monumento, o índio, o fazendeiro e o garimpeiro, as vertentes que povoaram o miscigenado estado, isolado pela sua própria localização. O estado com a menor população, menor densidade demográfica e menor número de municípios, é um dos que mais tem territórios indígenas demarcados. A maioria de seus poucos quinze municípios têm nome com raízes indígenas. As rodovias federais e estaduais não podem ser trafegadas a qualquer momento do dia. Por cruzarem reservas indígenas, seu trânsito é controlado de modo a não incomodar aqueles que primeiro abitaram ali, desde muito antes da colonização.

O grande encanto de Roraima é, certamente, poder ver o Brasil sob uma ótica ímpar. De um território que no passado foi motivo de disputa entre colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses - em busca de índios para serem vendidos como escravos - ao território esquecido e pouco assistido ao logo da formação histórica do nosso Estado Nacional, Roraima parece ainda procurar sua afirmação cultural. A região foi apenas notada quando o ouro começou a aparecer por lá, atraindo uma grande leva de migrantes, sobretudo, nordestinos. Os impactos sociais e ambientais foram grandes, e o conflito de interesses pela terra persiste até hoje. Pelas ruas, não é difícil encontrar pessoas, inclusive jovens, que vêm de outras partes do Brasil. Entre homens mais velhos, não raramente, foram garimpeiros migrantes. A identidade roraimense ainda está em formação.

Marcando a fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana, essa região de veias abertas é um produto da ambição humana, que insiste em criar definições para tudo. Mesmos grupos étnicos indígenas, como o Pemon e o Yanomami, pertencentes a este ou aquele país, estão separados por um posto de fronteira, algumas dezenas de homens fardados, duas bandeiras nacionais e uma linha imaginária, desenhada sobre o pedaço de terra que chamamos de América do Sul. A capital Boa Vista está a 190 km da fronteira com a Venezuela, e a 130 km da com a Guiana. De fato, como afirmou Eduardo Galeano, o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes; enquanto que no interior da Venezuela os índios têm sua cultura mais bem preservada, inclusive conversando entre si em línguas nativas, no Brasil, local economicamente mais desenvolvido, eles vão, timidamente, às ruas reivindicar por seus direitos, preteridos em nome da pátria.

Qual é, afinal, a diferença entre estar deste ou daquele lado da fronteira?


Desci de um ônibus vindo de Boa Vista com direção à cidade de Bonfim, lado brasileiro da fronteira com a Guiana. Diante de mim, um pátio deserto e uma placa indicando que a Guiana estava logo em frente, depois do Rio Tacutu. Uma extensa ponte, que, em uma manobra de engenharia, trocava o sentido de direção para se adequar à mão inglesa, utilizada na antiga colônia britânica, podia ser transitada livremente. Após atravessá-la a pé, ouvi pessoas conversando em inglês e em línguas incompreensíveis para mim. Em Lethem, a cidade guianesa, circulavam reais e dólares guianeses. Havia grupos rastafáris ouvindo reggae, negros, comerciantes hindus, mulheres inteiramente cobertas de burca em pleno sol equatorial e chineses trabalhando nas muitas lojas.

O simples atravessar de fronteira foi determinante para que a população local se comunicasse na língua de seu respectivo colonizador europeu. Contudo, as semelhanças entre Lethem e Bonfim são muitas: ambas compartilham do isolamento em relação aos seus países. Brasileiros, sujeitos a altas taxações comerciais, vêm de longe para fazer compras em Lethem, onde encontram produtos a preços baixíssimos. Do outro lado do Rio, os impostos são menores porque alguém definiu assim. O que se compra, no entanto, é o mesmo - se a Receita Federal permitir que os produtos entrem no Brasil. Também me surpreendeu que fronteiras, ainda hoje, são motivo de disputa entre países irmãos. A Venezuela reivindica para si mais da metade do território da Guiana, formando o que seria a Guiana Essequiba. Na Venezuela, os mapas incluem tal região como "Zona em Disputa" ou, em melhores palavras, "Zona em Litígio".

Pouco tempo depois de me estabelecer em Boa Vista, fui caminhar pela cidade, planejada em forma de leque, em que todas as largas avenidas convergem para o centro cívico - praça em que fica a sede dos três poderes. Ao me aproximar do monumento do garimpeiro, localizado bem ao centro da praça, fui surpreendido pelo desabafo de um indígena macuxi: com o olho esquerdo consumido por uma catarata, ele, apontando para mim, me acusou como culpado pela sua difícil condição de vida. Com sua sanidade afetada, ele mal conseguia se expressar, mas sua mensagem, até que sua fala fosse interrompida pelo pranto, foi transmitida a mim de um modo bem claro. Eu era o branco opressor, que vinha para Roraima me apropriar de algo que pertence aos índios. De certo modo era verdade. Foi um tapa na cara, que, ao menos, me fez lembrar das dores dos índios que vivem em nosso país. No sudeste, é difícil lembrar que eles existem e fazem parte de nós brasileiros.

Caminhos de Roraima