No Brasil existe um lugar que fica no hemisfério norte, onde se canta o Hino Nacional, onde grande parte da população tem feições indígenas, onde o garimpeiro é herói e o taxista é garimpeiro. Nesse lugar existe a savana, a floresta amazônica e grandes plantações de soja. Os habitantes mais velhos ainda vivem em Território Nacional, não em uma Unidade Federativa. Ajudaram a construir o Brasil, a povoar os extremos de nosso território. O país termina ali, onde fica nosso ponto mais setentrional.
Em 15 de novembro de 1889 a estrela de Roraima ainda nem sonhava em brilhar no céu do Rio de Janeiro, a capital nacional. Hoje, Boa Vista celebra, em um mesmo monumento, o índio, o fazendeiro e o garimpeiro, as vertentes que povoaram o miscigenado estado, isolado pela sua própria localização. O estado com a menor população, menor densidade demográfica e menor número de municípios, é um dos que mais tem territórios indígenas demarcados. A maioria de seus poucos quinze municípios têm nome com raízes indígenas. As rodovias federais e estaduais não podem ser trafegadas a qualquer momento do dia. Por cruzarem reservas indígenas, seu trânsito é controlado de modo a não incomodar aqueles que primeiro abitaram ali, desde muito antes da colonização.
O grande encanto de Roraima é, certamente, poder ver o Brasil sob uma ótica ímpar. De um território que no passado foi motivo de disputa entre colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses - em busca de índios para serem vendidos como escravos - ao território esquecido e pouco assistido ao logo da formação histórica do nosso Estado Nacional, Roraima parece ainda procurar sua afirmação cultural. A região foi apenas notada quando o ouro começou a aparecer por lá, atraindo uma grande leva de migrantes, sobretudo, nordestinos. Os impactos sociais e ambientais foram grandes, e o conflito de interesses pela terra persiste até hoje. Pelas ruas, não é difícil encontrar pessoas, inclusive jovens, que vêm de outras partes do Brasil. Entre homens mais velhos, não raramente, foram garimpeiros migrantes. A identidade roraimense ainda está em formação.
Marcando a fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana, essa região de veias abertas é um produto da ambição humana, que insiste em criar definições para tudo. Mesmos grupos étnicos indígenas, como o Pemon e o Yanomami, pertencentes a este ou aquele país, estão separados por um posto de fronteira, algumas dezenas de homens fardados, duas bandeiras nacionais e uma linha imaginária, desenhada sobre o pedaço de terra que chamamos de América do Sul. A capital Boa Vista está a 190 km da fronteira com a Venezuela, e a 130 km da com a Guiana. De fato, como afirmou Eduardo Galeano, o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes; enquanto que no interior da Venezuela os índios têm sua cultura mais bem preservada, inclusive conversando entre si em línguas nativas, no Brasil, local economicamente mais desenvolvido, eles vão, timidamente, às ruas reivindicar por seus direitos, preteridos em nome da pátria.
Desci de um ônibus vindo de Boa Vista com direção à cidade de Bonfim, lado brasileiro da fronteira com a Guiana. Diante de mim, um pátio deserto e uma placa indicando que a Guiana estava logo em frente, depois do Rio Tacutu. Uma extensa ponte, que, em uma manobra de engenharia, trocava o sentido de direção para se adequar à mão inglesa, utilizada na antiga colônia britânica, podia ser transitada livremente. Após atravessá-la a pé, ouvi pessoas conversando em inglês e em línguas incompreensíveis para mim. Em Lethem, a cidade guianesa, circulavam reais e dólares guianeses. Havia grupos rastafáris ouvindo reggae, negros, comerciantes hindus, mulheres inteiramente cobertas de burca em pleno sol equatorial e chineses trabalhando nas muitas lojas.
O simples atravessar de fronteira foi determinante para que a população local se comunicasse na língua de seu respectivo colonizador europeu. Contudo, as semelhanças entre Lethem e Bonfim são muitas: ambas compartilham do isolamento em relação aos seus países. Brasileiros, sujeitos a altas taxações comerciais, vêm de longe para fazer compras em Lethem, onde encontram produtos a preços baixíssimos. Do outro lado do Rio, os impostos são menores porque alguém definiu assim. O que se compra, no entanto, é o mesmo - se a Receita Federal permitir que os produtos entrem no Brasil. Também me surpreendeu que fronteiras, ainda hoje, são motivo de disputa entre países irmãos. A Venezuela reivindica para si mais da metade do território da Guiana, formando o que seria a Guiana Essequiba. Na Venezuela, os mapas incluem tal região como "Zona em Disputa" ou, em melhores palavras, "Zona em Litígio".
Pouco tempo depois de me estabelecer em Boa Vista, fui caminhar pela cidade, planejada em forma de leque, em que todas as largas avenidas convergem para o centro cívico - praça em que fica a sede dos três poderes. Ao me aproximar do monumento do garimpeiro, localizado bem ao centro da praça, fui surpreendido pelo desabafo de um indígena macuxi: com o olho esquerdo consumido por uma catarata, ele, apontando para mim, me acusou como culpado pela sua difícil condição de vida. Com sua sanidade afetada, ele mal conseguia se expressar, mas sua mensagem, até que sua fala fosse interrompida pelo pranto, foi transmitida a mim de um modo bem claro. Eu era o branco opressor, que vinha para Roraima me apropriar de algo que pertence aos índios. De certo modo era verdade. Foi um tapa na cara, que, ao menos, me fez lembrar das dores dos índios que vivem em nosso país. No sudeste, é difícil lembrar que eles existem e fazem parte de nós brasileiros.
O grande encanto de Roraima é, certamente, poder ver o Brasil sob uma ótica ímpar. De um território que no passado foi motivo de disputa entre colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses - em busca de índios para serem vendidos como escravos - ao território esquecido e pouco assistido ao logo da formação histórica do nosso Estado Nacional, Roraima parece ainda procurar sua afirmação cultural. A região foi apenas notada quando o ouro começou a aparecer por lá, atraindo uma grande leva de migrantes, sobretudo, nordestinos. Os impactos sociais e ambientais foram grandes, e o conflito de interesses pela terra persiste até hoje. Pelas ruas, não é difícil encontrar pessoas, inclusive jovens, que vêm de outras partes do Brasil. Entre homens mais velhos, não raramente, foram garimpeiros migrantes. A identidade roraimense ainda está em formação.
Marcando a fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana, essa região de veias abertas é um produto da ambição humana, que insiste em criar definições para tudo. Mesmos grupos étnicos indígenas, como o Pemon e o Yanomami, pertencentes a este ou aquele país, estão separados por um posto de fronteira, algumas dezenas de homens fardados, duas bandeiras nacionais e uma linha imaginária, desenhada sobre o pedaço de terra que chamamos de América do Sul. A capital Boa Vista está a 190 km da fronteira com a Venezuela, e a 130 km da com a Guiana. De fato, como afirmou Eduardo Galeano, o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes; enquanto que no interior da Venezuela os índios têm sua cultura mais bem preservada, inclusive conversando entre si em línguas nativas, no Brasil, local economicamente mais desenvolvido, eles vão, timidamente, às ruas reivindicar por seus direitos, preteridos em nome da pátria.
Qual é, afinal, a diferença entre estar deste ou daquele lado da fronteira?
Desci de um ônibus vindo de Boa Vista com direção à cidade de Bonfim, lado brasileiro da fronteira com a Guiana. Diante de mim, um pátio deserto e uma placa indicando que a Guiana estava logo em frente, depois do Rio Tacutu. Uma extensa ponte, que, em uma manobra de engenharia, trocava o sentido de direção para se adequar à mão inglesa, utilizada na antiga colônia britânica, podia ser transitada livremente. Após atravessá-la a pé, ouvi pessoas conversando em inglês e em línguas incompreensíveis para mim. Em Lethem, a cidade guianesa, circulavam reais e dólares guianeses. Havia grupos rastafáris ouvindo reggae, negros, comerciantes hindus, mulheres inteiramente cobertas de burca em pleno sol equatorial e chineses trabalhando nas muitas lojas.
O simples atravessar de fronteira foi determinante para que a população local se comunicasse na língua de seu respectivo colonizador europeu. Contudo, as semelhanças entre Lethem e Bonfim são muitas: ambas compartilham do isolamento em relação aos seus países. Brasileiros, sujeitos a altas taxações comerciais, vêm de longe para fazer compras em Lethem, onde encontram produtos a preços baixíssimos. Do outro lado do Rio, os impostos são menores porque alguém definiu assim. O que se compra, no entanto, é o mesmo - se a Receita Federal permitir que os produtos entrem no Brasil. Também me surpreendeu que fronteiras, ainda hoje, são motivo de disputa entre países irmãos. A Venezuela reivindica para si mais da metade do território da Guiana, formando o que seria a Guiana Essequiba. Na Venezuela, os mapas incluem tal região como "Zona em Disputa" ou, em melhores palavras, "Zona em Litígio".
Pouco tempo depois de me estabelecer em Boa Vista, fui caminhar pela cidade, planejada em forma de leque, em que todas as largas avenidas convergem para o centro cívico - praça em que fica a sede dos três poderes. Ao me aproximar do monumento do garimpeiro, localizado bem ao centro da praça, fui surpreendido pelo desabafo de um indígena macuxi: com o olho esquerdo consumido por uma catarata, ele, apontando para mim, me acusou como culpado pela sua difícil condição de vida. Com sua sanidade afetada, ele mal conseguia se expressar, mas sua mensagem, até que sua fala fosse interrompida pelo pranto, foi transmitida a mim de um modo bem claro. Eu era o branco opressor, que vinha para Roraima me apropriar de algo que pertence aos índios. De certo modo era verdade. Foi um tapa na cara, que, ao menos, me fez lembrar das dores dos índios que vivem em nosso país. No sudeste, é difícil lembrar que eles existem e fazem parte de nós brasileiros.
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