sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Toda vida vem da vida

Omne vivum ex ovum
Caminhar pelas íngremes ruas de Bogotá, Colômbia, sob baixa pressão atmosférica, fez-me lembrar da última vez que estive nas elevadas altitudes andinas. Na ocasião, me encontrava a mais de 5000 metros acima do nível do mar, em Chacaltaya, montanha localizada na cercania de La Paz, Bolívia. Confiei na resiliência de minha juventude e ignorei os possíveis efeitos que o ar rarefeito poderia conferir a minha saúde. Durante a caminhada, senti um formigamento por meu corpo e mal me sustentava em pé. Não consegui concluir o passeio até o cume da montanha; reuni as forças que me restavam para erguer uma xícara de chá de coca e voltar aos 3600 metros de La Paz, onde passei o resto do dia na cama. 

A altitude de 2600 metros de Bogotá, a terceira capital mais alta do mundo, foi bem mais transponível. Não me trouxe nenhum grande problema além de uma respiração um pouco mais ofegante do que estou acostumado. Entre um ou outro trecho de subida, contudo, continuava recordando minha desventura em Chacaltaya. O ensinamento que tive na época foi bastante pertinente às minhas andanças em Bogotá: o boliviano - por suposto com pulmões maiores que o comum - que me acompanhou em Chacaltaya encostava o calcanhar de um pé na ponta dos dedos do outro a cada passada. Seguia um ritmo devagar, mas constante. Disse que aquele era o jeito correto de se caminhar na altitude. Eu não consegui descobrir meu ritmo, dei passos maiores do que meu corpo podia suportar.

Nesse paralelo, descobri, assim como o escritor colombiano Fernando Gonzalez em suas viagens a pé, que a ideia de ritmo é a coluna vertebral moral de qualquer viagem. Segundo o escritor, o ritmo é tão importante para se viver quanto o inferno é para a Igreja Católica. Cada pessoa tem um ritmo para caminhar, andar e amar; o amor, por sua vez, ocorre quando dois corações batem no mesmo ritmo. Para encontrarmos nossa forma de menor energia - estágio para o qual tende toda a matéria do universo -  precisamos descobrir nosso próprio ritmo e ajustar nossos passos. 

Devemos buscar, pois, nossa alegria fisiológica. Não fosse isso, como poderíamos compreender que navegar é preciso? Como compreender o europeu que atravessou o Atlântico em uma nau a vela para descobrir na América as riquezas do Novo Mundo? Haveria título mais adequado para o "Livro das Maravilhas" de Marco Polo? Por que deixar a zona de conforto para conhecer terras distantes? Grandes são aqueles habituados ao esforço. Navegar é tão simplesmente sentir a satisfação de triunfar sobre um obstáculo, a sensação de superar o cansaço, é sentir a plenitude da vida. O homem medíocre age apenas de modo a cumprir suas necessidades fisiológicas, não vê no esforço o prazer necessário para a manutenção da vida. 

Ver o mundo é estar no mundo e pensar com o mesmo ritmo de nossos passos. Cada forma de conhecimento é, assim, uma nova janela para contemplá-lo. Ainda segundo Fernando Gonzalez, do mesmo modo como o viajante botânico goza da vegetação e o geólogo das formações rochosas, o homem de ideias gerais goza de todos os aspectos, com a desvantagem da diminuição de cada um deles. O ignorante se aborrece ao longo do caminho, só percebe sensações de cansaço e de distância. Seus olhos só veem obstáculos, seus ouvidos só ouvem ruídos, e os demais sentidos só servem pra os fins primordiais.

Descobrir seu próprio ritmo é alcançar a saúde espiritual. Quando saímos para ver o mundo, percebemos que a força vital que nos move é o desejo de conhecer e aprender com diferenças. É saber que toda vida é gerada por outra vida, e saber que fazemos parte de um grande ovo cheio de vitalidade. É elevar o coração e a mente a uma altura em que só exista amor. É deixar que nossas pernas doam muito, mas que nos levem a lugares novos. Isto é manter-se vivo.     

Se eu nunca tivesse saído do nível do mar, jamais saberia o estrago que uma caminhada fora de ritmo pudesse causar.


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