Existem caminhos que já nascem lendários. É o caso da estrada de ferro entre Manchester e Liverpool, a mais antiga do mundo a fazer o trajeto entre duas cidades. Os bens de consumo das indústrias de Manchester iam para o porto de Liverpool, que, por sua vez, recebia matérias primas e as enviava para as indústrias de Manchester. Uma revolução tecnológica tornava as distâncias mais curtas e as comunicações mais rápidas. As transformações que aconteceram sobre o trajeto desses trilhos foram tão profundas que criaram um ponto de separação na linha do tempo da humanidade, marcando o início da era industrial, do capitalismo moderno, do incremento de riqueza, das concentrações urbanas. Isto é, foi aqui que o mundo, para nós, ocidentais, começou a ficar parecido com o que vemos hoje.
A viagem que começou lendária entre as estações de Manchester Victoria e Liverpool Lime Street permaneceu lendária durante toda a minha estadia em Liverpool. Como principal porto da principal potência imperialista global, Liverpool se tornou um ponto de confluência de tudo o que existia no mundo. Seu papel crucial no comércio transatlântico permitia a chegada de produtos, mercadorias e pessoas, mas também fez a cidade se tornar alvo de fortes bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, a humanidade é uma força muito poderosa: mesmo em cenários terríveis - como o de uma destruição pós guerra - ela é capaz de se recriar e ressurgir do nada, ainda mais em lugares de inovação e criatividade, como Liverpool.
Os anos de guerra não foram nada prósperos. As perdas populacionais criaram uma lacuna entre a infância e a velhice. Instintivamente, para reverter um quadro humano desfavorável, a sociedade passou a ter mais filhos. As gerações que nasceram durante e após a Segunda Guerra Mundial eram parte, de fato, de uma explosão demográfica. Eram os baby boomers, filhos da grande guerra, que ansiavam por uma nova cultura jovem e que iriam romper com diversos valores políticos, religiosos, culturais e comportamentais das gerações anteriores.
Um novo ambiente revolucionário surgia no mundo, e Liverpool seria um dos polos de disseminação de novas ideias e valores. O lugar que mostrou ao mundo as diversas inovações técnicas da era das revoluções industriais e que inaugurou uma nova forma de se organizar a sociedade, agora faria o rock n' roll chegar a todos os cantos do planeta. A facilidade com que a cultura dos Estados Unidos, que emergia como maior potência global, chegava a Liverpool em razão de uma grande proximidade cultural e de laços de troca, fez nascer nos jovens britânicos um imenso interesse por esse novo gênero musical, rebelde por definição.
O rock, com suas origens na música negra americana - do Jazz, Blues e Boogie Woogie - já nasceu quebrando uma barreira racial que era explícita nos Estados Unidos. No passado, o comércio de escravos enriqueceu muitos mercadores de Liverpool. Estima-se que 1,5 milhão de escravos africanos saíram daqui para a América. Quando os britânicos perceberam que a produção industrial era um melhor negócio e que demandava a existência de um amplo mercado consumidor, além de oferecer bem menos riscos que o comercio de escravos, passaram a fazer uma campanha pela abolição da escravidão. Assim como no cenário europeu pós-guerra, a humanidade também aflorou em um povo que sofreu os mais cruéis tipos de repressão: a cultura negra que ressurgiu na América pelos que foram forçadamente deslocados da África voltava para a Europa sob a alcunha do rock n' roll.
Despontou em Liverpool um incrível cenário musical. Dentre todos os grupos jovens que faziam seu próprio som, a princípio com instrumentos tão arcaicos quanto uma tábua de passar roupa, surgiria um que daria um novo significado ao modo de se fazer música: os Beatles. Como profetas de mente completamente inventiva, eles lançariam o embrião de quase todos os movimentos jovens que iriam surgir desde então e, em efeito cadeia, influenciariam a cultura pop até os dias atuais. Os homens passaram a deixar os cabelos crescer, as mulheres a usar minissaias. Os Beatles foram os primeiros a usar a dissonância no rock, incorporar efeitos sonoros, usar a microfonia. Foram os primeiros a mesclar música erudita e popular, a usar gravações reversas, o double tracking, variações de velocidade e compasso em uma mesma música. Trouxeram instrumentos inusitados como a sitar indiana e instrumentos de processamento eletrônico como o mellotrom. Foram um dos responsáveis pela popularização da cultural oriental no ocidente. Transformaram capas de discos em obras de arte. Lançaram os preceitos para novos subgêneros do rock como o psicodélico, progressivo, punk e heavy metal.
A obra tão extensa e de tanta qualidade, produzida no curto intervalo de tempo de apenas uma década, permite que os Beatles se coloquem no nível das lendas. Todos nós temos direito ao mito, o direito de atribuir um significado maior à nossa existência. Se não podemos viver para sempre, podemos deixar algo que irá, algo que transcenda a nossa breve passagem pela Terra. As lendas estão acima da condição humana, elas ficam para que exista um sentido completo entre as venturas do passado e do presente; para nos lembrar, eventualmente, de que somos capazes de realizar grandes feitos em vida. A mística dos homens que viram lendas reside justamente no ponto em que, uma vez lenda, jamais o deixarão de ser. Não há arma de fogo que assassine lendas. Não há câncer que tire a vida de lendas. Elas vivem na identificação de cada um de nós.
Os Beatles deixaram uma vasta, universal e de fácil compreensão mensagem de paz e amor. Por isso estar em Liverpool é uma experiência religiosa. Lá podemos ver o quão humana, ou seja, o quão parecida conosco uma lenda pode ser. Visitamos locais de nascimento, locais de encontros que mudaram o mundo, cenários que viraram música e poesia. É lá que um grupo de rapazes, por meio de seus discos, fez o mundo mais diverso, inclusivo e tolerante. O meu momento mais lendário dessa viagem aconteceu na casa do Paul, onde pude tocar Let It Be no piano da sala onde morou a família McCartney. A música é à memória de Mother Mary, mãe de Paul, vítima de câncer de mama.
Se, por fim, os mitos servem como espelhos para nós, é bom também lembrar que por trás das pessoas adoradas também existe muita dor, angústia e contradições da condição humana. Dos quatro rapazes, um foi abandonado pelos dois pais e teve uma infância solitária. Dois viram seus pais se separarem na infância. Dois perderam a mãe na adolescência. Um teve tanta doença durante a infância que em diversas ocasiões não pôde sequer frequentar a escola. Um ouviu de professores que jamais seria alguém na vida. Todos os quatro eram filhos da classe trabalhadora e viviam nos subúrbios de Liverpool.
A viagem que começou lendária entre as estações de Manchester Victoria e Liverpool Lime Street permaneceu lendária durante toda a minha estadia em Liverpool. Como principal porto da principal potência imperialista global, Liverpool se tornou um ponto de confluência de tudo o que existia no mundo. Seu papel crucial no comércio transatlântico permitia a chegada de produtos, mercadorias e pessoas, mas também fez a cidade se tornar alvo de fortes bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, a humanidade é uma força muito poderosa: mesmo em cenários terríveis - como o de uma destruição pós guerra - ela é capaz de se recriar e ressurgir do nada, ainda mais em lugares de inovação e criatividade, como Liverpool.
Os anos de guerra não foram nada prósperos. As perdas populacionais criaram uma lacuna entre a infância e a velhice. Instintivamente, para reverter um quadro humano desfavorável, a sociedade passou a ter mais filhos. As gerações que nasceram durante e após a Segunda Guerra Mundial eram parte, de fato, de uma explosão demográfica. Eram os baby boomers, filhos da grande guerra, que ansiavam por uma nova cultura jovem e que iriam romper com diversos valores políticos, religiosos, culturais e comportamentais das gerações anteriores.
O rock, com suas origens na música negra americana - do Jazz, Blues e Boogie Woogie - já nasceu quebrando uma barreira racial que era explícita nos Estados Unidos. No passado, o comércio de escravos enriqueceu muitos mercadores de Liverpool. Estima-se que 1,5 milhão de escravos africanos saíram daqui para a América. Quando os britânicos perceberam que a produção industrial era um melhor negócio e que demandava a existência de um amplo mercado consumidor, além de oferecer bem menos riscos que o comercio de escravos, passaram a fazer uma campanha pela abolição da escravidão. Assim como no cenário europeu pós-guerra, a humanidade também aflorou em um povo que sofreu os mais cruéis tipos de repressão: a cultura negra que ressurgiu na América pelos que foram forçadamente deslocados da África voltava para a Europa sob a alcunha do rock n' roll.
Despontou em Liverpool um incrível cenário musical. Dentre todos os grupos jovens que faziam seu próprio som, a princípio com instrumentos tão arcaicos quanto uma tábua de passar roupa, surgiria um que daria um novo significado ao modo de se fazer música: os Beatles. Como profetas de mente completamente inventiva, eles lançariam o embrião de quase todos os movimentos jovens que iriam surgir desde então e, em efeito cadeia, influenciariam a cultura pop até os dias atuais. Os homens passaram a deixar os cabelos crescer, as mulheres a usar minissaias. Os Beatles foram os primeiros a usar a dissonância no rock, incorporar efeitos sonoros, usar a microfonia. Foram os primeiros a mesclar música erudita e popular, a usar gravações reversas, o double tracking, variações de velocidade e compasso em uma mesma música. Trouxeram instrumentos inusitados como a sitar indiana e instrumentos de processamento eletrônico como o mellotrom. Foram um dos responsáveis pela popularização da cultural oriental no ocidente. Transformaram capas de discos em obras de arte. Lançaram os preceitos para novos subgêneros do rock como o psicodélico, progressivo, punk e heavy metal.
A obra tão extensa e de tanta qualidade, produzida no curto intervalo de tempo de apenas uma década, permite que os Beatles se coloquem no nível das lendas. Todos nós temos direito ao mito, o direito de atribuir um significado maior à nossa existência. Se não podemos viver para sempre, podemos deixar algo que irá, algo que transcenda a nossa breve passagem pela Terra. As lendas estão acima da condição humana, elas ficam para que exista um sentido completo entre as venturas do passado e do presente; para nos lembrar, eventualmente, de que somos capazes de realizar grandes feitos em vida. A mística dos homens que viram lendas reside justamente no ponto em que, uma vez lenda, jamais o deixarão de ser. Não há arma de fogo que assassine lendas. Não há câncer que tire a vida de lendas. Elas vivem na identificação de cada um de nós.
Os Beatles deixaram uma vasta, universal e de fácil compreensão mensagem de paz e amor. Por isso estar em Liverpool é uma experiência religiosa. Lá podemos ver o quão humana, ou seja, o quão parecida conosco uma lenda pode ser. Visitamos locais de nascimento, locais de encontros que mudaram o mundo, cenários que viraram música e poesia. É lá que um grupo de rapazes, por meio de seus discos, fez o mundo mais diverso, inclusivo e tolerante. O meu momento mais lendário dessa viagem aconteceu na casa do Paul, onde pude tocar Let It Be no piano da sala onde morou a família McCartney. A música é à memória de Mother Mary, mãe de Paul, vítima de câncer de mama.
Se, por fim, os mitos servem como espelhos para nós, é bom também lembrar que por trás das pessoas adoradas também existe muita dor, angústia e contradições da condição humana. Dos quatro rapazes, um foi abandonado pelos dois pais e teve uma infância solitária. Dois viram seus pais se separarem na infância. Dois perderam a mãe na adolescência. Um teve tanta doença durante a infância que em diversas ocasiões não pôde sequer frequentar a escola. Um ouviu de professores que jamais seria alguém na vida. Todos os quatro eram filhos da classe trabalhadora e viviam nos subúrbios de Liverpool.