sábado, 26 de maio de 2018

Liverpool e o direito ao mito

Existem caminhos que já nascem lendários. É o caso da estrada de ferro entre Manchester e Liverpool, a mais antiga do mundo a fazer o trajeto entre duas cidades. Os bens de consumo das indústrias de Manchester iam para o porto de Liverpool, que, por sua vez, recebia matérias primas e as enviava para as indústrias de Manchester. Uma revolução tecnológica tornava as distâncias mais curtas e as comunicações mais rápidas. As transformações que aconteceram sobre o trajeto desses trilhos foram tão profundas que criaram um ponto de separação na linha do tempo da humanidade, marcando o início da era industrial, do capitalismo moderno, do incremento de riqueza, das concentrações urbanas. Isto é, foi aqui que o mundo, para nós, ocidentais, começou a ficar parecido com o que vemos hoje.

A viagem que começou lendária entre as estações de Manchester Victoria e Liverpool Lime Street permaneceu lendária durante toda a minha estadia em Liverpool. Como principal porto da principal potência imperialista global, Liverpool se tornou um ponto de confluência de tudo o que existia no mundo. Seu papel crucial no comércio transatlântico permitia a chegada de produtos, mercadorias e pessoas, mas também fez a cidade se tornar alvo de fortes bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, a humanidade é uma força muito poderosa: mesmo em cenários terríveis - como o de uma destruição pós guerra - ela é capaz de se recriar e ressurgir do nada, ainda mais em lugares de inovação e criatividade, como Liverpool.

Os anos de guerra não foram nada prósperos. As perdas populacionais criaram uma lacuna entre a infância e a velhice. Instintivamente, para reverter um quadro humano desfavorável, a sociedade passou a ter mais filhos. As gerações que nasceram durante e após a Segunda Guerra Mundial eram parte, de fato, de uma explosão demográfica. Eram os baby boomers, filhos da grande guerra, que ansiavam por uma nova cultura jovem e que iriam romper com diversos valores políticos, religiosos, culturais e comportamentais das gerações anteriores.



Um novo ambiente revolucionário surgia no mundo, e Liverpool seria um dos polos de disseminação de novas ideias e valores. O lugar que mostrou ao mundo as diversas inovações técnicas da era das revoluções industriais e que inaugurou uma nova forma de se organizar a sociedade, agora faria o rock n' roll chegar a todos os cantos do planeta. A facilidade com que a cultura dos Estados Unidos, que emergia como maior potência global, chegava a Liverpool em razão de uma grande proximidade cultural e de laços de troca, fez nascer nos jovens britânicos um imenso interesse por esse novo gênero musical, rebelde por definição.

O rock, com suas origens na música negra americana - do Jazz, Blues e Boogie Woogie - já nasceu quebrando uma barreira racial que era explícita nos Estados Unidos. No passado, o comércio de escravos enriqueceu muitos mercadores de Liverpool. Estima-se que 1,5 milhão de escravos africanos saíram daqui para a América. Quando os britânicos perceberam que a produção industrial era um melhor negócio e que demandava a existência de um amplo mercado consumidor, além de oferecer bem menos riscos que o comercio de escravos, passaram a fazer uma campanha pela abolição da escravidão. Assim como no cenário europeu pós-guerra, a humanidade também aflorou em um povo que sofreu os mais cruéis tipos de repressão: a cultura negra que ressurgiu na América pelos que foram forçadamente deslocados da África voltava para a Europa sob a alcunha do rock n' roll.

Despontou em Liverpool um incrível cenário musical. Dentre todos os grupos jovens que faziam seu próprio som, a princípio com instrumentos tão arcaicos quanto uma tábua de passar roupa, surgiria um que daria um novo significado ao modo de se fazer música: os Beatles. Como profetas de mente completamente inventiva, eles lançariam o embrião de quase todos os movimentos jovens que iriam surgir desde então e, em efeito cadeia, influenciariam a cultura pop até os dias atuais. Os homens passaram a deixar os cabelos crescer, as mulheres a usar minissaias. Os Beatles foram os primeiros a usar a dissonância no rock, incorporar efeitos sonoros, usar a microfonia. Foram os primeiros a mesclar música erudita e popular, a usar gravações reversas, o double tracking, variações de velocidade e compasso em uma mesma música. Trouxeram instrumentos inusitados como a sitar indiana e instrumentos de processamento eletrônico como o mellotrom. Foram um dos responsáveis pela popularização da cultural oriental no ocidente. Transformaram capas de discos em obras de arte. Lançaram os preceitos para novos subgêneros do rock como o psicodélico, progressivo, punk e heavy metal.

A obra tão extensa e de tanta qualidade, produzida no curto intervalo de tempo de apenas uma década, permite que os Beatles se coloquem no nível das lendas. Todos nós temos direito ao mito, o direito de atribuir um significado maior à nossa existência. Se não podemos viver para sempre, podemos deixar algo que irá, algo que transcenda a nossa breve passagem pela Terra. As lendas estão acima da condição humana, elas ficam para que exista um sentido completo entre as venturas do passado e do presente; para nos lembrar, eventualmente, de que somos capazes de realizar grandes feitos em vida. A mística dos homens que viram lendas reside justamente no ponto em que, uma vez lenda, jamais o deixarão de ser. Não há arma de fogo que assassine lendas. Não há câncer que tire a vida de lendas. Elas vivem na identificação de cada um de nós.

Os Beatles deixaram uma vasta, universal e de fácil compreensão mensagem de paz e amor. Por isso estar em Liverpool é uma experiência religiosa. Lá podemos ver o quão humana, ou seja, o quão parecida conosco uma lenda pode ser. Visitamos locais de nascimento, locais de encontros que mudaram o mundo, cenários que viraram música e poesia. É lá que um grupo de rapazes, por meio de seus discos, fez o mundo mais diverso, inclusivo e tolerante. O meu momento mais lendário dessa viagem aconteceu na casa do Paul, onde pude tocar Let It Be no piano da sala onde morou a família McCartney. A música é à memória de Mother Mary, mãe de Paul, vítima de câncer de mama.

Se, por fim, os mitos servem como espelhos para nós, é bom também lembrar que por trás das pessoas adoradas também existe muita dor, angústia e contradições da condição humana. Dos quatro rapazes, um foi abandonado pelos dois pais e teve uma infância solitária. Dois viram seus pais se separarem na infância. Dois perderam a mãe na adolescência. Um teve tanta doença durante a infância que em diversas ocasiões não pôde sequer frequentar a escola. Um ouviu de professores que jamais seria alguém na vida. Todos os quatro eram filhos da classe trabalhadora e viviam nos subúrbios de Liverpool.



sexta-feira, 4 de maio de 2018

As Regras do Jogo

Nas veias da América Latina correm inúmeras contradições. As riquezas geraram anões e gigantes. O homem, tido como cordial, é produto de migrações forçadas, genocídios, crimes étnicos. A violência é naturalizada e se manifesta nas entrelinhas das relações humanas. Che disse que, se este continente fosse um homem, seria um anão de cabeça grande, pança inchada e braços curtos. 

Certa vez decidi refazer de carro o percurso da antiga rede de estradas indígenas chamada de Peabiru. O Peabiru não era um simples sendeiro no meio da mata, mas uma rede de estradas bem demarcadas que percorria 1200 quilômetros. A trilha seguia pelas nascentes do Rio Iguaçu até seu desague no Rio Paraná. Atravessado o Paraná, o Peabiru conduzia até o Rio Paraguai, onde hoje se localiza Assunção. Eram caminhos largos, que passavam por campos planos repletos de araucárias. De Assunção, por meio da navegação do Rio Pilcomayo, era possível chegar a Potosi, onde existia a lendária serra de prata, motivo de cobiça dos colonizadores europeus. Era lá onde eu queria chegar.

O Peabiru é um grande exemplar do que havia na América antes da conquista. Uma extensa rede de comunicação entre diferentes povos permitia que um tupi do litoral brasileiro tivesse conhecimento sobre os picos de gelo eterno da cordilheira dos Andes, assim como sobre a magnífica civilização que ali habitava.

Depois de alcançar Foz do Iguaçu, descobri no Paraguai um país de poucos e pobres. Lá fiquei encurralado, impedido de seguir meu caminho até Potosi. O Paraguai hoje é um dos mais sofridos e maltratados países do continente, mas no passado desenvolveu uma política autárquica e protecionista de desenvolvimento, completamente diferente de seus vizinhos. Espremido entre os dois gigantes locais, Brasil e Argentina, sem saída para o mar, o país não fez completamente parte do modelo agrário-exportador que permeou a típica relação entre as colônias americanas e as metrópoles europeias. Diversificou os gêneros agrícolas, buscou a autossuficiência investindo em educação e industrialização; cronistas da época diziam que não existia no país uma criança que não soubesse ler e escrever. O projeto desenvolvimentista do Paraguai, contudo, dependia da ampliação do comércio externo, ao passo que o trânsito de mercadorias do país estava sujeito às arbitrariedades de Brasil e Argentina.

Fez-se a Guerra do Paraguai e, com ela, toda uma nação se foi. Patrocinados pela Inglaterra, a Tríplice Aliança composta por Argentina, Brasil e Uruguai deu cabo das pretensões paraguaias. Grande parte da população adulta masculina sucumbiu no conflito. A guerra chegou ao absurdo ponto em que crianças paraguaias, alistadas para a guerra, usavam barbas postiças em uma tentativa de intimidar as tropas inimigas. 

O passado sangrento tem consequências, ainda, no presente. Assim, uma série de desventuras marcou minha passagem pelo Paraguai, desde a entrada via Ponte da Amizade até a chegada em Assunção. Como resultado de uma profunda estagnação econômica desde a guerra, o país embarcou no submundo do contrabando, pirataria e corrupção. A corrupção no Paraguai não é exclusiva dos detentores de grande poder. Logo eu descobriria isso da pior forma. Uma placa escrita em espanhol e guarani me dava as boas vindas após uma lenta travessia pela Ponte da Amizade, onde mercadorias contrabandeadas circulavam sem nenhuma fiscalização. Segui caminho até Assunção. Logo nos primeiros 30 quilômetros de estrada, um policial nos para. Olha bem para o interior do carro, pergunta se temos alguma câmera ligada. Então cobra uma multa por estarmos trafegando com lanterna acessa, em vez de farol baixo.

Não demorou muito até que fôssemos parados novamente. Dessa vez o policial alegou ter recebido uma informação de que trafegávamos acima do limite de velocidade e nos cobrou nova multa. Não aceitamos facilmente essa cobrança. Argumentávamos que não excedemos o limitey e que, inclusive, diversos carros nos ultrapassavam. O policial um pouco mais tenso, em tom de ameaça, aconselhava-nos resolver a questão ali logo antes que ele precisasse chamar seu superior.

Como discutir com alguém que deixa a mão encostada em um revolver preso na cintura enquanto nos fita com olhar ameaçador? E se, ainda, este homem tem a prerrogativa legal do uso da força? E se, para piorar, você é um estrangeiro, no interior de um país miserável, sem ter a quem recorrer? Assim foi minha recepção no Paraguai.

Ainda assim, quanto mais percorremos a América Latina, mais somos invadidos pela sensação de se estar em casa. Passamos a ver no rosto dos outros, o nosso. Depois de duas abordagens policiais e alguns guaranis - moeda local - a menos no bolso, ainda fomos parados uma terceira vez. Agora, sabendo melhor as regras do jogo, pudemos seguir viagem sem prejuízos até Assunção.

A língua também cumpre um papel importante para nos fazer sentir em casa. Se existe um lugar no mundo onde o Portunhol é, de fato, uma língua corrente, esse lugar é o Paraguai, onde as fronteiras entre as Américas portuguesa e espanhola durante muitos anos não eram claras. Um aspecto peculiar da proximidade linguística está na palavra propina. Quando os policiais nos pediam propina, usavam a palavra com o significado espanhol, que significa algo como gorjeta. Nós, brasileiros, a entendemos como suborno. Mesmo intercambiando o significado de um falso cognato, a comunicação segue com duas possíveis e corretas interpretações de uma única palavra.

Se me perguntarem se o dinheiro que dei aos policiais era gorjeta ou suborno, eu fico com o primeiro significado. Nosso bolso, claro, é um órgão sensível, não gostamos de perder dinheiro injustamente. No entanto, nunca saberemos se o policial que leva um dinheiro a mais para casa no final de um dia de trabalho está com estômago cheio, ou se seus pequenos filhos terão fraldas para usar até o fim do mês.

Nessa imensa e infama contradição que é a América Latina, a injustiça social está escancarada na face de todos, dos que têm e dos que não têm. Todos têm seu papel e sua parcela de culpa nas diversas manifestações de corrupção em pequena escala que se dá nos mais variados tipos de relação humana. É muito fácil de ver o momento em que uma suposta malandragem, ou mesmo maldade, mau caratismo ou má fé dos policiais se transforma em desespero. No regresso para o Brasil, fomos abordados, pela quarta vez, por um policial na estrada. Ele pediu para revistar o carro e, sem motivos explícitos para nos multar, passou a pedir artigos do nosso porta-malas como regalos para sua filha.


O que me fez regressar ao Brasil, porém, foi uma última desventura no Paraguai, que me impediu de seguir viagem até Potosi. Iria cruzar bem cedo a fronteira entre Paraguai e Argentina via Rio Paraguai. Enquanto esperava a primeira balsa do dia, abri um mapa da América do Sul para estudar as rotas até Salta. Um grupo de estivadores me viu com o mapa e, cheios de curiosidade, se aglomeraram em volta de mim de um modo que até me assustou; parecia uma emboscada. Eles me olharam com um estranhamento que eu jamais havia experimentado em minha vida. Perguntei se eles sabiam me dizer o melhor caminho até Salta. Um deles tentou olhar o mapa, mas, sem saber nenhuma resposta, disse que ali eram todos burros, com essa exata terminologia.

Todos tomavam o tererê, mate de ervas amplamente consumido no Paraguai. É semelhante ao chimarrão gaúcho, porém é bebido frio. Os paraguaios levam seus garrafões para todos os lugares, e muitos são decorados com escudos de times de futebol. Foi o ponto que encontramos para estabelecer uma conversa. Enquanto eu experimentava sua bebida típica nacional, falamos bastante sobre futebol, o lubrificante social, amado em toda a América Latina por todas as classes sociais.

Ao cruzar o Rio Paraguai em uma balsa em direção à Clorinda, já na Argentina, fomos barrados na fronteira. O carro não poderia entrar na Argentina sem o seguro Carta Verde, necessário para o trânsito nos países do Mercosul. Como eu cheguei até ali, pelo Paraguai, sem esse seguro, à mercê de um monte de policiais corruptos, jamais saberei. Fato era que esse seguro só podia ser obtido no Brasil. Atravessamos a fronteira algumas vezes: tentamos obtê-lo em uma seguradora em território argentino, na aduana paraguaia e pela internet, mas nada. Os estivadores ofereceram ajuda como podiam: um deles nos transladou tantas vezes quanto necessário entre as margens do Rio Paraguai em sua balsa, de nome Che Jasmin I, a troco de poucos guaranis. Outro nos acompanhou até encontrarmos algum ponto de acesso à internet, o que não foi tarefa fácil entre todos aqueles aparelhos celulares atrasados em mais de uma década. Fomos forçados a fazer o caminho de volta de Assunção até Foz do Iguaçu, precisando passar novamente pela série de postos policiais. Deixei uma lágrima de decepção no Rio Paraguai e seguimos viagem.

De volta ao Brasil, não havia mais fôlego para chegar a Potosi. Entre araucárias que abraçam o mundo e ruínas das missões jesuítas, talvez a menos trágica experiência colonizadora na América, encontrei conforto antes de voltar para casa. Antes de deixar o Paraguai, porém, ainda tive tempo de visitar restos da frota de navios usados pelo país na guerra contra a Tríplice Aliança. Diante disso tudo me ocorreu que, possivelmente, nem os policiais, tampouco os burros do porto, tivessem conhecimento sobre a guerra que destruiu tudo aquilo, sobre a tragédia que arruinou seu país.