sexta-feira, 4 de maio de 2018

As Regras do Jogo

Nas veias da América Latina correm inúmeras contradições. As riquezas geraram anões e gigantes. O homem, tido como cordial, é produto de migrações forçadas, genocídios, crimes étnicos. A violência é naturalizada e se manifesta nas entrelinhas das relações humanas. Che disse que, se este continente fosse um homem, seria um anão de cabeça grande, pança inchada e braços curtos. 

Certa vez decidi refazer de carro o percurso da antiga rede de estradas indígenas chamada de Peabiru. O Peabiru não era um simples sendeiro no meio da mata, mas uma rede de estradas bem demarcadas que percorria 1200 quilômetros. A trilha seguia pelas nascentes do Rio Iguaçu até seu desague no Rio Paraná. Atravessado o Paraná, o Peabiru conduzia até o Rio Paraguai, onde hoje se localiza Assunção. Eram caminhos largos, que passavam por campos planos repletos de araucárias. De Assunção, por meio da navegação do Rio Pilcomayo, era possível chegar a Potosi, onde existia a lendária serra de prata, motivo de cobiça dos colonizadores europeus. Era lá onde eu queria chegar.

O Peabiru é um grande exemplar do que havia na América antes da conquista. Uma extensa rede de comunicação entre diferentes povos permitia que um tupi do litoral brasileiro tivesse conhecimento sobre os picos de gelo eterno da cordilheira dos Andes, assim como sobre a magnífica civilização que ali habitava.

Depois de alcançar Foz do Iguaçu, descobri no Paraguai um país de poucos e pobres. Lá fiquei encurralado, impedido de seguir meu caminho até Potosi. O Paraguai hoje é um dos mais sofridos e maltratados países do continente, mas no passado desenvolveu uma política autárquica e protecionista de desenvolvimento, completamente diferente de seus vizinhos. Espremido entre os dois gigantes locais, Brasil e Argentina, sem saída para o mar, o país não fez completamente parte do modelo agrário-exportador que permeou a típica relação entre as colônias americanas e as metrópoles europeias. Diversificou os gêneros agrícolas, buscou a autossuficiência investindo em educação e industrialização; cronistas da época diziam que não existia no país uma criança que não soubesse ler e escrever. O projeto desenvolvimentista do Paraguai, contudo, dependia da ampliação do comércio externo, ao passo que o trânsito de mercadorias do país estava sujeito às arbitrariedades de Brasil e Argentina.

Fez-se a Guerra do Paraguai e, com ela, toda uma nação se foi. Patrocinados pela Inglaterra, a Tríplice Aliança composta por Argentina, Brasil e Uruguai deu cabo das pretensões paraguaias. Grande parte da população adulta masculina sucumbiu no conflito. A guerra chegou ao absurdo ponto em que crianças paraguaias, alistadas para a guerra, usavam barbas postiças em uma tentativa de intimidar as tropas inimigas. 

O passado sangrento tem consequências, ainda, no presente. Assim, uma série de desventuras marcou minha passagem pelo Paraguai, desde a entrada via Ponte da Amizade até a chegada em Assunção. Como resultado de uma profunda estagnação econômica desde a guerra, o país embarcou no submundo do contrabando, pirataria e corrupção. A corrupção no Paraguai não é exclusiva dos detentores de grande poder. Logo eu descobriria isso da pior forma. Uma placa escrita em espanhol e guarani me dava as boas vindas após uma lenta travessia pela Ponte da Amizade, onde mercadorias contrabandeadas circulavam sem nenhuma fiscalização. Segui caminho até Assunção. Logo nos primeiros 30 quilômetros de estrada, um policial nos para. Olha bem para o interior do carro, pergunta se temos alguma câmera ligada. Então cobra uma multa por estarmos trafegando com lanterna acessa, em vez de farol baixo.

Não demorou muito até que fôssemos parados novamente. Dessa vez o policial alegou ter recebido uma informação de que trafegávamos acima do limite de velocidade e nos cobrou nova multa. Não aceitamos facilmente essa cobrança. Argumentávamos que não excedemos o limitey e que, inclusive, diversos carros nos ultrapassavam. O policial um pouco mais tenso, em tom de ameaça, aconselhava-nos resolver a questão ali logo antes que ele precisasse chamar seu superior.

Como discutir com alguém que deixa a mão encostada em um revolver preso na cintura enquanto nos fita com olhar ameaçador? E se, ainda, este homem tem a prerrogativa legal do uso da força? E se, para piorar, você é um estrangeiro, no interior de um país miserável, sem ter a quem recorrer? Assim foi minha recepção no Paraguai.

Ainda assim, quanto mais percorremos a América Latina, mais somos invadidos pela sensação de se estar em casa. Passamos a ver no rosto dos outros, o nosso. Depois de duas abordagens policiais e alguns guaranis - moeda local - a menos no bolso, ainda fomos parados uma terceira vez. Agora, sabendo melhor as regras do jogo, pudemos seguir viagem sem prejuízos até Assunção.

A língua também cumpre um papel importante para nos fazer sentir em casa. Se existe um lugar no mundo onde o Portunhol é, de fato, uma língua corrente, esse lugar é o Paraguai, onde as fronteiras entre as Américas portuguesa e espanhola durante muitos anos não eram claras. Um aspecto peculiar da proximidade linguística está na palavra propina. Quando os policiais nos pediam propina, usavam a palavra com o significado espanhol, que significa algo como gorjeta. Nós, brasileiros, a entendemos como suborno. Mesmo intercambiando o significado de um falso cognato, a comunicação segue com duas possíveis e corretas interpretações de uma única palavra.

Se me perguntarem se o dinheiro que dei aos policiais era gorjeta ou suborno, eu fico com o primeiro significado. Nosso bolso, claro, é um órgão sensível, não gostamos de perder dinheiro injustamente. No entanto, nunca saberemos se o policial que leva um dinheiro a mais para casa no final de um dia de trabalho está com estômago cheio, ou se seus pequenos filhos terão fraldas para usar até o fim do mês.

Nessa imensa e infama contradição que é a América Latina, a injustiça social está escancarada na face de todos, dos que têm e dos que não têm. Todos têm seu papel e sua parcela de culpa nas diversas manifestações de corrupção em pequena escala que se dá nos mais variados tipos de relação humana. É muito fácil de ver o momento em que uma suposta malandragem, ou mesmo maldade, mau caratismo ou má fé dos policiais se transforma em desespero. No regresso para o Brasil, fomos abordados, pela quarta vez, por um policial na estrada. Ele pediu para revistar o carro e, sem motivos explícitos para nos multar, passou a pedir artigos do nosso porta-malas como regalos para sua filha.


O que me fez regressar ao Brasil, porém, foi uma última desventura no Paraguai, que me impediu de seguir viagem até Potosi. Iria cruzar bem cedo a fronteira entre Paraguai e Argentina via Rio Paraguai. Enquanto esperava a primeira balsa do dia, abri um mapa da América do Sul para estudar as rotas até Salta. Um grupo de estivadores me viu com o mapa e, cheios de curiosidade, se aglomeraram em volta de mim de um modo que até me assustou; parecia uma emboscada. Eles me olharam com um estranhamento que eu jamais havia experimentado em minha vida. Perguntei se eles sabiam me dizer o melhor caminho até Salta. Um deles tentou olhar o mapa, mas, sem saber nenhuma resposta, disse que ali eram todos burros, com essa exata terminologia.

Todos tomavam o tererê, mate de ervas amplamente consumido no Paraguai. É semelhante ao chimarrão gaúcho, porém é bebido frio. Os paraguaios levam seus garrafões para todos os lugares, e muitos são decorados com escudos de times de futebol. Foi o ponto que encontramos para estabelecer uma conversa. Enquanto eu experimentava sua bebida típica nacional, falamos bastante sobre futebol, o lubrificante social, amado em toda a América Latina por todas as classes sociais.

Ao cruzar o Rio Paraguai em uma balsa em direção à Clorinda, já na Argentina, fomos barrados na fronteira. O carro não poderia entrar na Argentina sem o seguro Carta Verde, necessário para o trânsito nos países do Mercosul. Como eu cheguei até ali, pelo Paraguai, sem esse seguro, à mercê de um monte de policiais corruptos, jamais saberei. Fato era que esse seguro só podia ser obtido no Brasil. Atravessamos a fronteira algumas vezes: tentamos obtê-lo em uma seguradora em território argentino, na aduana paraguaia e pela internet, mas nada. Os estivadores ofereceram ajuda como podiam: um deles nos transladou tantas vezes quanto necessário entre as margens do Rio Paraguai em sua balsa, de nome Che Jasmin I, a troco de poucos guaranis. Outro nos acompanhou até encontrarmos algum ponto de acesso à internet, o que não foi tarefa fácil entre todos aqueles aparelhos celulares atrasados em mais de uma década. Fomos forçados a fazer o caminho de volta de Assunção até Foz do Iguaçu, precisando passar novamente pela série de postos policiais. Deixei uma lágrima de decepção no Rio Paraguai e seguimos viagem.

De volta ao Brasil, não havia mais fôlego para chegar a Potosi. Entre araucárias que abraçam o mundo e ruínas das missões jesuítas, talvez a menos trágica experiência colonizadora na América, encontrei conforto antes de voltar para casa. Antes de deixar o Paraguai, porém, ainda tive tempo de visitar restos da frota de navios usados pelo país na guerra contra a Tríplice Aliança. Diante disso tudo me ocorreu que, possivelmente, nem os policiais, tampouco os burros do porto, tivessem conhecimento sobre a guerra que destruiu tudo aquilo, sobre a tragédia que arruinou seu país.


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