Este texto faz parte de uma coletânea de histórias sobre o Amapá.
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Tem uma pedra furada
Naquele lindo lugar
Foi trazida pelos índios
Para seu lugar chegar
A depois de tudo pronto
Ficou um observando
Para saber do passado
Que era fácil de viver
As pedras eram pesadas
Difícil de carregar
Passado em uma jangada
Para em seu Lugar chegar
Para fazer um relógio
Para todos se admirar
Para trazer alegria
E a história do Estado do Amapá.
Lailson Camelo, Garrafinha
Adeus Rio Oiapoque / sepulcro dos infelizes / a ouvir minhas preces / até as pedras se maldizem / Já não
vejo minha mãe / pois me falta a liberdade / quanto é triste / ter saudade!
Citação encontra em Padre Rogério Alicino. Clevelândia do Norte
III. Uma cidade transportada de Marrocos para o Amapá
Talvez a mais fantástica história do Amapá seja a de Mazagão. Originalmente, a cidade de Mazagão era uma das muitas possessões portuguesas no Marrocos, mantida entre 1486 e meados do século XVIII, quando Portugal decidiu abandonar seu último território no país. A presença portuguesa no Marrocos esteve envolta em misticismo, especialmente em torno do jovem Rei D. Sebastião I. Decidido a reviver as glórias portuguesas do período da Reconquista, o rei iniciou uma cruzada no norte da África, que acabaria por causar sua controversa morte em 1578. Sem herdeiros, sua morte causou uma traumática crise de sucessão no trono de Portugal, culminando na perda de sua independência para a Espanha durante a União Ibérica. Surgiu então uma lenda de que D. Sebastião I voltaria, em uma manhã de nevoeiro, para salvar Portugal dos problemas desencadeados por seu desaparecimento. Essa crença messiânica, conhecida como sebastianismo, ganhou muitos adeptos em Portugal e no Brasil, tendo, por exemplo, influenciado
Antônio Conselheiro. Em 1770, Marquês de Pombal decidiu abandonar a Mazagão marroquina e refundar a cidade com o mesmo nome na Amazônia, levando toda sua população para o Amapá, outra colônia portuguesa cuja soberania estava ameaçada.
São Tiago é o elo que conecta a Mazagão do passado com a Mazagão brasileira. Este santo católico era o protetor dos exércitos espanhóis e portugueses nas chamadas guerras santas, em que católicos confrontavam muçulmanos na Península Ibérica e norte da África. Uma ordem religiosa militar foi fundada em nome de São Tiago, o matamouros, para as guerras. O santo é fortemente cultuado em Mazagão (do Amapá), e eu dei a sorte de poder visitar a cidade durante os festejos de São Tiago, que ocorrem por duas semanas em torno do dia 25 de julho, todo ano. Sua iconografia, de um santo cavalheiro, está presente em diversos pontos da cidade, que fica cheia, enfeitada e colorida para a festa. O ponto mais alto da celebração é a encenação da batalha entre cristãos e mouros em via pública.
Para povoar Mazagão, 340 famílias vieram de Marrocos, algumas com seus escravos, para Belém, enquanto um renomado engenheiro militar projetava a nova cidade. A Mazagão original ficou conhecida por ser um baluarte, uma rocha cristã impenetrável na África, ao passo que outras possessões portuguesas eram ocupadas pelos mouros. A versão brasileira, no entanto, não resistiu aos trópicos: obrigados a viver lá por Marquês de Pombal, a população, composta por muitos fidalgos, chegou a manifestar seu descontentamento ao então rei. Em 1783, uma epidemia de cólera matou dezenas de pessoas. No mesmo ano, no contexto da Viradeira, uma série de reações antipombalinas, os moradores se libertaram da obrigatoriedade de moradia. Traumatizados com as mortes e culpando os "maus ares", muitos sobreviventes migraram para outros lugares. A antiga vila praticamente desapareceu. Anos depois, uma nova cidade foi construída a 20 km dali, de modo que hoje existem dois núcleos urbanos: a Mazagão Velho (próximo à localização original e onde acontece a festa de São Tiago) e Mazagão (propriamente dito).
Em 2003, escavações realizadas por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Pernambuco encontraram ruínas dos alicerces de uma igreja da antiga vila de Mazagão, aberta para visitação. Em uma placa informativa, o Professor estima que a igreja tinha 40 metros de comprimento e 13 de largura. Próximo à igreja, foram encontradas 52 insígnias com a Cruz de Malta, supostamente pertencentes a oficiais portugueses. Não foi possível determinar quando nem por que a igreja deixou de ser restaurada, mas os pesquisadores suspeitam do surto de cólera como causa do abandono. Incrivelmente, a população que permaneceu conseguiu transmitir por séculos as memórias de Marrocos e das cruzadas por meio dos festejos de São Tiago, que completaram 245 anos em 2022.
Quando cheguei à Mazagão, no dia 26 de julho, a cidade estava de ressaca. Como em um Carnaval, as ruas estavam cheias de garrafas de cerveja da farra do dia anterior. Pela manhã, a programação previa apenas um baile da melhor idade, que pude acompanhar por um tempo, em um galpão coberto e com pessoas vestidas com a camiseta do evento. Havia ao menos três palcos montados na pequena cidade e muitas barracas de venda de bebidas e alimentos. No calendário litúrgico, São Tiago é celebrado no dia 25, ápice das festas, quando a batalha entre mouros e cristãos é encenada. A encenação começa na tarde do dia 24 com a entrega dos presentes, simbolizando um pedido de trégua dos mouros aos cristãos. Conforme a tradição, entretanto, os presentes oferecidos pelos mouros eram, na verdade, alimentos envenenados. Desconfiados, os cristãos oferecem o alimento aos seus animais, que morrem. Pensando terem vencido a guerra e conquistado a paz, os mouros organizam um grande baile de máscaras, que os cristãos convertidos poderiam participar sem serem reconhecidos. Os cristãos, tendo desvendado os planos de envenenamento, levam os alimentos para o baile, causando a morte de muitos mouros. No calendário oficial do evento, o baile de máscaras começa às 21:30.
No dia seguinte, logo cedo, São Tiago aparece como um soldado anônimo para lutar ao lado dos cristãos. Os soldados fazem um juramento em frente à capela de São Tiago e partem para a derradeira batalha contra os mouros, abalados pelas baixas da noite anterior. Às 9h da manhã inicia-se o Círio, até a passagem do Bobo Velho em torno do meio-dia. Este é um dos momentos mais divertidos da encenação: o Bobo Velho é um infiltrado enviado pelos mouros para espionar os cristãos. Sabendo disso, os cristãos iniciam um apedrejamento ao impostor. Em Mazagão, a população participa do apedrejamento, atirando bagaço de laranja a um homem vestido como o Bobo Velho, que passa de cavalo por uma rua em frente à Igreja de São Tiago, onde é montada uma pequena arquibancada durante as festas. Os cristãos, por sua vez, também enviaram um espião ao acampamento mouro, chamado de Atalaia. O arauto anuncia, então, o início da batalha com os seguintes episódios: descoberta do Atalaia, morte do Atalaia, armadilha feita pelos cristãos, captura e venda de crianças cristãs, troca do corpo do Atalaia pela bandeira moura, batalha final e vominê (dança da vitória dos cristãos). A celebração pela vitória entra pela noite e se estende madrugada adentro. A tradição diz que Atalaia consegue roubar a bandeira moura, mas é ferido na fuga. Acaba morto decapitado. O rei mouro ordena que crianças cristãs sejam sequestradas e vendidas para compra de armas e munição. Como retaliação, os cristãos anunciam uma batalha violenta. O rei mouro propõe a troca da bandeira moura, conquistada pelos cristãos, pelo corpo do bravo guerreiro Atalaia. Os cristãos aceitam a troca, recebem o corpo de Atalaia, mas não devolvem a bandeira. Em seguida, iniciam a batalha e, com ajuda de Deus, que prolongou a duração da luz do sol naquele dia, vencem a guerra.
A encenação é levada muito a sério. Por meio de fotos, pude ver como os trajes são cuidadosamente bem feitos, e como a população se organiza e se engaja em um evento de tão longa duração. A devoção à São Tiago é uma identidade cultural muito forte para essa pequena cidade, cuja história é um ponto de singularidade no Brasil. Ao lado da Igreja de São Tiago, encontrei uma sorridente senhora em uma casa completamente ornada com o santo, incluindo bordados que ela mesma fazia. Lamentando, ela me contou que um dos cavalos acabou morrendo durante a festa, tamanha veracidade empreendida na encenação das batalhas. Localizada estrategicamente próximo à foz do Rio Amazonas, Mazagão, além de tudo, foi uma importante força na afirmação de soberania sobre o Amapá, tendo servido como ponto de apoio para a construção da Fortaleza de São José de Macapá, na capital.
IV. O estado da arte dos sítios megalíticos do norte do Amapá
Só o céu foi testemunha do que vi ao chegar no Parque Arqueológico do Solstício, em Calçoene. Entrei na pequena cidade e segui por cerca de 20 km em uma estrada rural até a entrada do parque que reúne os mais belos e enigmáticos artefatos arqueológicos do país: uma construção composta por 127 monólitos erguidos em um raio de trinta metros, com idade estimada de 2000 anos. Visitar um sítio arqueológico tem uma conotação especial: a arqueologia é uma mediação sensível entre mortos e vivos, por meio de uma realidade material. Por isso, nesses lugares é permitida aquela meia crença que damos aos contos de fada, espíritos e eventos sobrenaturais.
Ao chegar ao portão do parque, contudo, temi não cumprir meu desejo de visitar os monólitos. O portão estava fechado, as placas diziam que só era possível entrar com autorização do IEPA, Instituo de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá. Havia informações de contato na placa, mas eu não tinha sinal de telefone e muito menos a esperança de conseguir prontamente aquela autorização. Embora o parque também receba turistas, ele é, antes de tudo, uma área ativa de pesquisa, com mais perguntas em aberto do que mistérios respondidos. Pela sua localização no norte do Amapá, a demanda turística não é grande, não havendo, por exemplo, uma recepção para visitantes ou uma estrutura de visitação.
Vi que, passando o portão, depois de uma pequena vereda havia uma casa. Pensei que poderia ter alguém lá para me receber. Buzinei o carro e aguardei, mas ninguém apareceu. Aguardei alguns minutos com o carro na estrada, na expectativa de alguém passar por ali e de repente me ajudar, mas não tive sucesso. Aproximei-me do portão e vi que não estava trancado. Depois de chegar de tão longe, a um pequeno passo do meu objetivo, a coragem era inexorável. Abri o portão e entrei com meu carro no sítio. Estacionei-o perto da casa, buzinei novamente e de fato não havia ninguém ali. Era uma casinha em reforma que provavelmente serve como ponto de apoio aos pesquisadores durante as incursões a campo. A partir da casinha, tinha uma pequena trilha sinalizada; direcionei meu olhar para o final dessa trilha e pude avistar o enorme círculo de pedras.
A paisagem era convidativa. As ruínas ficam em uma antiga fazenda adquirida pelo governo do estado do Amapá para virar sítio arqueológico, delimitada por um pequeno rio chamado Rio Rego. A pequena trilha até o monumento é envolta por um vasto pasto colorido por um tom muito vivo de verde, a grama alta. Os monólitos ficam em uma pequena colina, em terreno mais elevado, como uma coroa sobre um pedestal. Fazia muito sol e eu estava com calça e perneira, sentindo muito calor e imaginando que logo alguém iria me ver e me expulsar dali. No círculo de pedra, a grama estava muito bem aparada, e parecia que alguém tinha acabado de trabalhar ali, pois ainda havia um cortador de grama deitado no chão. Fiquei com uma ótima impressão dos cuidados empenhados em manter o local preservado.
O conjunto é formado por rochas graníticas de tamanhos diversos. Alguns blocos possuem evidências claras de formatação, como lascamento nas bordas. Sobretudo duas deles chamam a atenção: uma pedra furada e uma pedra em formato de haste apontando para o céu. É quase um consenso na comunidade científica que o sítio era um espaço de observação astronômica. Muito do que se sabe hoje se deve ao trabalho dos pesquisadores Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha, que iniciaram a coleta de dados na região com apoio do IEPA em 2005. Até então, havia poucos registros sobre a localidade, essencial para a compreensão de nosso passado pré-colonial. A visão científica predominante sobre comunidades das terras baixas da América do Sul seguia uma linha histórico-culturalista, isto é, baseada no difusionismo, no qual nossos povos originários resultavam de degenerações culturais de sociedades mais complexas através de processos de migração. A ideia é que a Amazônia, descrita como uma área de solos inférteis para a agricultura intensiva, tornaria inviável o desenvolvimento de grandes populações, levando a manutenção de pequenos grupos.
Por esse motivo, por muito tempo a ocorrência de paisagens megalíticas no norte do Amapá era atribuída à migração de populações caribenhas, que teriam chegado à Amazônia sem conseguir se estabelecer plenamente. As evidências mais recentes, porém, apontam para o interior da Amazônia como origem dos monólitos. Foram encontradas, em uma profundidade rasa no entorno das placas, deposição de estruturas cerâmicas que indicam a formação de uma cultura distinta, cujas fronteiras culturais eram estabelecidas. Os pesquisadores sugerem que a região recebeu povoamento gradual desde 8000 anos atrás, mas se tornou altamente contestada a partir de 1000 anos atrás, quando algum evento possivelmente "revolucionário" aconteceu. Esses mesmos grupos tiveram contato com os europeus a partir do século XVI, que frequentemente visitaram a região, embora a tenham perturbado pouco no início da conquista.
Hoje, novas linhas de pesquisas etnográficas tentam delimitar a relação entre os antigos povos e a atual população de Calçoene. Os inúmeros contatos com os povos do passado resultou no conhecimento das mais variadas formas de usos contemporâneos da cerâmica arqueológica associada a sítios megalíticos, que marcam a paisagem de tal modo que os moradores locais têm facilidade em identificá-las. Os encontros se dão em atividades de caça, quando no interior da floresta, pesca, banhos no rio ou em atividades de roça e abertura de poços artesianos, quando materiais arqueológicos afloram da terra. Além disso, suspeita-se que os índios Palikur, da região do Baixo Rio Oiapoque, descendam desses povos antigos.
O sítio transforma algo tão efêmero como a observação da natureza em uma estrutura sólida. Os pesquisadores identificaram duas correlações entre as estruturas megalíticas e o solstício de inverno no Hemisfério Norte, onde o sítio está localizado. No dia do solstício, em dezembro, o bloco de pedra em forma de haste fica sem sombra, e sua parte sobressalente indica a trajetória do sol em direção ao poente. Uma segunda observação revelou que a estrutura de blocos de rocha envolve um alinhamento entre as extremidades de dois blocos de rocha e o posicionamento do sol ao nascer, de tal forma que no nascer do sol solsticial os três pontos se tornam colineares.
Além dos fragmentos cerâmicos, as escavações mostraram, ainda, que placas depositadas horizontalmente no sítio estão relacionadas com poços funerários. A escolha para a deposição dos mortos, certamente não é casual: em uma paisagem de baixas altitudes, os cemitérios são bem visíveis, posicionados em pequenas colinas, ressaltando a importância que os antigos povos davam a sua ancestralidade. Os terrenos mais altos também oferecem proteção contra os períodos de chuva, quando o nível das águas sobe e os cemitérios se transformam em ilhas.
No fim, consegui entrar no parque e completar minha visita sem ser perturbado por ninguém.
V. Do Jari ao Oiapoque pela BR-156
Popularmente, dizemos "do Oiapoque ao Chuí" para nos referirmos à nossa continental nação, como um sinônimo de "de Norte a Sul". Em minha viagem, interpretei essa expressão no contexto do Amapá: troquei Chuí por Jari e inverti a ordem para refletir o sentido em que percorri o caminho entre essas duas regiões. De Laranjal do Jari ao Oiapoque, anda-se pela BR-156, via que passa por quase todas as regiões do estado, embora, por seu precário estado de manutenção, não se possa exatamente dizer que "conecta" todas essas regiões. Eu visitei o quilômetro zero dessa estrada em uma comunidade ribeirinha em Laranjal do Jari; o fim dela fica em Oiapoque, cidade mais setentrional do litoral brasileiro. São 815 km, 350 dos quais em estrada de terra, constantemente enlameada com as chuvas o ano inteiro. Eu fiz esse percurso em dois dias, totalizando cerca de 16h na estrada.
Os trechos que se alternam entre estradas de terra e asfalto oferecem uma divisão "natural" da BR-156 em três terços. O primeiro terço são de 250 km em terra, entre Laranjal do Jari e um trevo que emenda a BR-156 a uma outra estrada federal, a BR-210. A BR-210 é uma daquelas projetadas pelos governos militares para integrar a Amazônia. No projeto, iria do Amapá à Colômbia, passando por Pará e Amazonas. No entanto, só foram construídos trechos no Amapá e em Roraima. O segundo terço é completamente asfaltado e se estende até Calçoene, totalizando 340 km. Por fim, de Calçoene ao Oiapoque a estrada tem, sem dúvidas, seu pedaço mais crítico, em terra muito mal conservada, atravessando diversas áreas de uma reserva indígena. Essa última parte totaliza 220 km, sendo os últimos 120 em asfalto.
A estrada deixa os extremos do estado isolados. É nítido como sua má condição condena essas regiões ao atraso. As cidades com pavimentação, na zona de influência da capital Macapá, apresentam os melhores indicadores socioeconômicos do estado. O tempo de trânsito ao Oiapoque, por exemplo, é muito maior do que deveria ser se a via fosse asfaltada, dificultando toda a sorte de trocas comerciais, escoamento de produção e atendimento da população pelo poder público. Quando as chuvas são muito intensas, formam-se uma série de atoleiros, de modo que um carro de passeio comum não consegue trafegar pela estrada.
Saí de manhã bem cedo de Laranjal do Jari, por um caminho que eu já conhecia depois de ter feito o percurso de ida desde Macapá. O caminho é praticamente todo em estrada de terra, porém anda-se bem, apesar dos buracos. Por sua maioria a estrada é larga e o solo bem rígido. Em diversos momentos nos deparamos com igarapés e seus buritizais, uma das mais belas árvores do país que, como me ensinaram uma vez, sempre indica a presença de fluxos de água. Na região existem muitos rios, e muitas vezes os cruzamos em simpáticas pontes de alvenaria e madeira. Geralmente algumas comunidades se estabelecem no entorno dessas pontes, onde a estrada encontra os rios, erguendo suas casas em palafitas. Sempre que eu atravessava essas pontes, me distraía da direção e olhava para os lados, para ver como são as pessoas vivendo nesses lugares. Contudo, as pontes são estreitas e projetadas para passar um carro por vez; há o espaço suficiente para encaixar os dois eixos de pneus do carro, e a travessia exige atenção. As pontes também revelam a fragilidade das estradas: basta que uma delas desabe, ora pelas chuvas, ora por enchentes, para interceptar a única via de acesso dos extremos do Amapá à capital, a única do Brasil sem interligação viária com nenhuma outra capital do país.
Fortunados são aqueles que dispõem de um carro tracionado nas quatro rodas. Eu, nessa viagem, aluguei um SUV que, com seu mais elevado vão livre em relação ao solo, não sofreu maiores percalços, embora eu tenha me sentido inseguro para passar em alguns trechos da rodovia. Também me sentia inseguro quando olhava em volta e não via ninguém por muitos e muitos quilômetros. Em caso de acidentes na pista, com certeza um resgate demoraria muito para ser acionado e chegar ao local. Naturalmente a imensa maioria da população não tem sequer um veículo, muito menos tracionado. A principal alternativa é embarcar em exaustivas jornadas de ônibus. Aproximadamente na metade do caminho entre Laranjal do Jari e Macapá tem um pequeno povoado chamado Maracá, nas margens de um rio de mesmo nome, um dos poucos lugares da estrada onde é possível parar para um almoço ou uma pequena compra em um mercadinho. Parei para almoçar e, pouco tempo depois, um ônibus com destino a Macapá desembarcou seus passageiros para um almoço. Dividi a mesa com uma moça, que me contou que a expectativa eram 10h de viagem, ou seja, média de 27 km/h. Em Laranjal do Jari, ouvi relatos de mais de 20h de viagem.
Depois de algumas horas na estrada, deve-se atentar ao risco de a concentração falhar. Em um trecho reto, sem muitos buracos, em que eu desenvolvia uma velocidade mais elevada, deixei o pneu traseiro sair da pista, e o carro derrapou por uns bons metros. Por longos segundos me vi perdendo o controle e meu coração pulsou aceleradamente. Pouco tempo depois, passei por um pequeno monumento que marca o ponto pelo qual passa a Linha do Equador. Ali eu já sabia que estava chegando ao asfalto e finalmente pude relaxar um pouco. Ao passar pelo Meio do Mundo, começaria em breve a trafegar por caminhos desconhecidos, explorando um Brasil raro, localizado ao norte do Equador.




O viajante que se aventura de carro pela BR-156 deve saber que a quantidade de postos de gasolina é muito pequena. Sempre quando possível, o tanque deve ser enchido, já que os postos se localizam apenas no perímetro urbano das principais cidades do estado. Saí com o tanque cheio de Laranjal do Jari e só consegui abastecer novamente depois de mais de 300 km, próximo à cidade de Porto Grande. A partir daí, até Oiapoque, as placas na estrada passam a avisar a distância até o próximo posto, que costumam ficar a cerca de 200 km um do outro. Entre Porto Feliz e Calçoene, só havia posto na cidade homônima ao estado, chamada Amapá.
Lentamente fui deixando a região central do estado e adentrando em um dos extremos do Brasil. Na parte pavimentada da rodovia, uma tempestade me atingiu e me senti aliviado por já ter passado pelo trecho de terra do dia. Em qualquer época do ano, é raro não pegar chuva no Amapá, estado onde a Amazônia encontra o oceano. Depois de horas de estrada, em que só se avista chão, céu e floresta, o olhar começa a ficar aguçado para identificar os momentos de chuva, que costumam ser de pouca duração, mas frequentes e com intensidade alta. Quando eu estava em trechos sem chuva, conseguia ver as nuvens mais escurecidas no horizonte. Quando estava na chuva, conseguia vislumbrar seu fim mais adiante em um clarão. Segui com calma e segurança até Tartarugalzinho, onde pernoitei naquele dia.
Tartarugalzinho fica na metade do caminho da BR-156, por isso foi o local onde eu parei para passar a noite, embora eu tenha chegado cedo e pudesse ainda ter seguido para Amapá ou mesmo Calçoene, mais próximas de meu destino. A cidade é diminuta, forjada nas margens da rodovia, e não se estende por muito mais do que três quarteirões para o interior. Dei duas voltas na cidade para escolher um hotel, até que repousei em uma pousada chamada Ponto Certo. Após um descanso, saí a noite até a pracinha, ocupada por muitas crianças brincando e por uma grande caixa de som armada em um palco público. O clima era muito agradável, e jantei um espetinho com arroz e farinha em uma barraquinha de rua.
Dormi muito mal naquela noite. Senti uma forte dor na garganta que estava dificultando a minha respiração e eu acordei diversas vezes com sensação de falta de ar. Quando a manhã chegou, eu estava sem voz e expectorando um catarro esverdeado, que me deixou em alerta sobre uma infecção bacteriana. Temia que meu quadro se desenvolvesse para uma febre e eu tivesse que interromper meu trajeto até Oiapoque. Por precaução, aguardei as farmácias da cidade abrirem, comprei pastilhas de garganta e me dirigi até a Unidade Básica de Saúde (UBS) de lá, esperando receber uma receita médica de um antibiótico. Infelizmente, fui recebido por duas enfermeiras que disseram não haver médico naquele dia. Recomendaram-me ir a outra pequena clínica na cidade, e caso eu não encontrasse médico lá e estivesse me sentindo muito mal, deveria retornar ali. Na outra clínica, assim como na UBS, havia um movimento grande de pessoas, sobretudo idosos e mães com crianças. Já sentindo que eu estava bem, preferi seguir viagem - quanto antes - para não arriscar anoitecer antes de eu chegar ao Oiapoque.
Pousei em Calçoene para conhecer o incrível Parque Arqueológico do Solstício. O relógio já se aproximava das 12h quando fui procurar um restaurante para almoçar antes de seguir pelo último trecho de viagem. Na beira da estrada havia um posto de gasolina e um restaurante que também era a casa de Dona Eunice, uma simpática senhora que servia pratos de comida caseira. Aquele era o último posto antes dos 220 km restantes para o fim de minha viagem, portanto uma parada necessária. Quando contei que viajava apenas a passeio, Dona Eunice me respondeu que costumava receber muitos aventureiros indo a Caiena, Guiana Francesa, às vezes de bicicleta, e oferecia seu quintal como camping. Também recebia franceses que vinham conhecer a Amazônia brasileira, apesar de lamentar a redução do fluxo de pessoas, em sua visão, pelo aumento da violência. Falas como a de Dona Eunice, sobre sua percepção de falta de segurança, são muito comuns em todo o Brasil, mesmo longe dos grandes centros urbanos.
Conforme eu me aproximava de Oiapoque, também fui envolvido pela sensação de falta de segurança por muitos motivos. Percebi-me em um lugar realmente selvagem, em que não sentia a mínima presença do poder público e das forças do estado. A condição da estrada, com o temor de uma tempestade a todo momento, me afligia. A solidão começou a me abater: passava por lugares de extrema pacatez, cidades esparsas, encontrava poucas pessoas no caminho, nenhum viajante como eu. Dirigia por horas a fio envolvido por floresta por todos os lados. Sentia-me estranho naquele lugar, parecia não ser bem-vindo ali. Essa sensação aumentou depois de minha visita aos monólitos de Calçoene, quando entrei no sítio sem ser autorizado e sem ter encontrado ninguém que pudesse me receber.
Desfrutei muito meu encontro com Dona Eunice, por poder conversar um pouco sobre a rota que eu estava prestes a fazer, enquanto comia um muito bem feito frango guisado. Ela me contou sobre um personagem típico dessa região, que eu veria alguns exemplares em minha jornada, e segundo ela o pior tipo de pessoa que existe: o "Pirateiro" ou simplesmente "Pirata". Os pirateiros são homens que dirigem suas picapes repletas de carga no compartimento traseiro, e eventualmente passageiros na cabine, realizando o trajeto entre Oiapoque e Macapá quando há demanda. O motivo para Dona Eunice classificá-los como "pior tipo de pessoa" são seus hábitos de direção pouco prudentes - o que eu atestaria como verdadeiro. São resultado da falta de infraestrutura de transporte básica, que impede que a viagem seja, em boa parte do ano, realizada com carros de passeio, e torna viagens de ônibus obscenamente longas. Dona Eunice, sabendo que eu iria para Oiapoque, colocou-me em contato com uma moça que buscava carona até lá. Eu rapidamente aceitei a ideia de dar carona, por ter finalmente alguma companhia e por pensar que a moça poderia conhecer o caminho e me auxiliar na viagem. Além disso, ainda conseguiria dividir os custos do trajeto.
Minha preocupação com a viagem, contudo, aumentou após trocar as primeiras palavras com a moça. Ela havia chegado cedo ao posto e estava aguardando carona há cerca de três horas - pensei que poucos carros estavam realizando o caminho, o que podia ser um indício de que a estrada não estava em condições seguras de tráfego. Em seguida, baseado em dados do meu GPS, afirmei que o horário previsto de chegada ao Oiapoque seria por volta das quatro horas (da tarde) - eram cerca de 12h quando nos encontramos. Quando ela ouviu "quatro horas", perguntou se seria 4h manhã do dia seguinte, como se fosse algo natural levar 16h em um percurso de 220 km, deixando-me um tanto assustado com o caminho que estava por vir. Iniciamos a viagem e logo vi que era uma pessoa que só havia ido ao Oiapoque uma vez na vida, há muitos anos, e não sabia nada sobre o percurso; não conseguia responder algumas perguntas minhas sobre lá. Era moradora de Tartarugalzinho e dizia ir encontrar a mãe em Oiapoque. Ela havia se sentado no banco traseiro do carro, e eu imaginei que, por ser mulher, podia estar com receio por ter pego carona com um homem desconhecido. Não consegui desenvolver uma mínima conversa e seguimos viagem calados praticamente por todo o tempo.
Eu levava água, frutas e castanhas diante dos riscos de atoleiros e horas incontáveis de viagem. Tinha uma companhia estranha, e não demorou muito para eu ser atormentado por novas preocupações. Logo no pior trecho da BR-156 chovia forte e incessantemente. No início da viagem vi um carro de passeio, o que me tranquilizou, mas ainda havia algumas casinhas por ali e imaginei que provavelmente o carro era de um morador da região, não de um viajante. Passamos por dois viadutos em construção, da interminável obra de asfaltamento da rodovia, e depois iniciou-se o caminho de terra, quando passamos a nos afastar de Calçoene. Uma outra preocupação tinha a ver com a minha carona. Eu pretendia retornar a Calçoene caso não me sentisse seguro com a estrada, e agora precisaria lidar com as expectativas de uma outra pessoa estranha. Pior, fui tomado por pensamentos de que poderia estar dando carona para uma criminosa. Explico: Oiapoque é uma cidade isolada na divisa com a Guiana Francesa, território da União Europeia. É de se imaginar que seja uma importante rota do narcotráfico para exportação de mercadoria para a Europa. Ficava imaginando se poderia haver algum tipo de revista policial durante o caminho.
Não demorou muito para que o cenário ficasse cada vez mais desolador, com muita chuva e apenas floresta à vista. Eu estava bastante tenso com a direção, e pouco pude observar e desfrutar do caminho. Pelo que me lembro, pelo menos os primeiros 50 km não eram dos mais desventurosos, e conseguia trafegar bem. Mantinha meu GPS ligado fazendo contagem regressiva para o fim do trecho de terra. Em alguns momentos a chuva cessava e, quando no alto de pequenas colinas na estrada, minha visão era preenchida por uma encantadora paisagem da floresta até o horizonte. Assim como no trecho próximo à Laranjal do Jari, a estrada era cortada por muitos rios, mas a região norte, ao menos no entorno da estrada, é menos povoada que no sul. Um dos poucos povoados entre Calçoene e Oiapoque é Carnot, às margens do importante Rio Cunani.
A péssima condição da estrada logo se fez mais compreensível. A rodovia atravessa 40 km da Terra Indígena Uaçá, lar de oito comunidades indígenas dos povos Karipuna, Galibi-Marworno e Palikur. Os enormes atoleiros, assim como o pedaço mais crítico de toda a BR-156 estão dentro desses quilômetros. Ali existe um claro antagonismo entre o desenvolvimentismo nacional e a preservação de tradições indígenas. Uma das razões de a estrada ainda não ser asfaltada se dá pela incapacidade de o governo em apresentar medidas compensatórias e mitigatórias exigidas pelos povos indígenas para amenizar os impactos da estrada em suas terras. Em um país que sempre tratou os indígenas que lutam por seus direitos como "selvagens", os dessa região têm um longo histórico de mobilização política: quando a estrada ainda não era transitável, no início da construção, as comunidades reivindicaram e conquistaram a demarcação de suas terras pela Funai. Após consumada a passagem da rodovia na região, no entanto, passaram a ocupar as suas margens como forma de afirmação sobre seu território.
Em 1905, o cientista Hermann von Ihering, então diretor do Museu Paulista, foi aos jornais defender o extermínio dos indígenas caingangues que se opunham à construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Os trilhos da civilização precisavam passar, esbravejava ele. Na época em que se intensificou a abertura de estradas em toda a Amazônia, durante a ditadura militar na década de 1970, discursos que desumanizavam povos indígenas seguiam legitimando ações como abertura de estradas em seus territórios tradicionais. O objetivo era de "assimilação", o que nas entrelinhas envolvia a apoderação de seus territórios e perda de sua identidade. Nunca houve meios para o qual tal assimilação ocorresse de forma harmoniosa e segura. É muito triste ver hoje como essa infausta visão, que coloca o índio como inimigo do progresso humano, segue como predominante entre a população branca da Amazônia, e ressoa até a presidência da República. Eu, para me informar durante minha viagem, sempre que conseguia, conversava com a população local sobre a estrada para Oiapoque, o que incluía perguntas sobre as aldeias indígenas. Frequentemente ouvia diversos tons de expressões preconceituosas para se referir aos índios, mesmo quando a intensão era tecer elogios, como, com o perdão da tautologia: "eles são índios, mas são bonzinhos", "eles parecem gente" ou ainda, "aquele rapaz ali é índio, mas é trabalhador".
Alguns aspectos da rodovia passaram a ser bem avaliados pelos indígenas, sobretudo no que tange o trânsito da população para a cidade, em ocasiões de visita a um hospital por exemplo. Antes, a rota era por meio do Oceano Atlântico, através de rios que nascem no interior da reserva e desaguam no mar, por onde é possível navegar pela Baía de Oiapoque e chegar à cidade - a viagem dura cerca de oito dias. Em contrapartida, os riscos de invasão pela rodovia, por garimpeiros, fazendeiros ou madereiros, ocorrência de novas doenças como diabetes, hipertensão e DSTs, além de alcoolismo entre indígenas são perigos permanentes, que mudaram drasticamente o modo de vida das comunidades. Além disso, muitos moradores das aldeias da beira de estrada vendem seus produtos, principalmente alimentos derivados de mandioca, aos motoristas.
Passada a área da reserva indígena e a tormenta das chuvas, trafeguei por um calmo asfalto até afinal chegar ao Oiapoque. Ainda chovia um pouco e o relógio apontava cerca de 17h. Eu tinha pouco tempo até o pôr do Sol e queria conhecer a cidade de Saint-Georges-de-l'Oyapock, na Guiana Francesa. Havia dois jeitos de se chegar lá: pela controversa Ponte Transfronteiriça Brasil - França, ou de barco a partir de dois locais de Oiapoque. A ponte não era uma opção. A despeito de eu estar exaurido da direção, eu não poderia atravessá-la de carro. Construída em 2011, ficou fechada até 2017 pela BR-156 não estar asfaltada, depois por o Brasil não ter construído postos de fronteira e, por fim, por desentendimentos a respeito da necessidade de visto para ir de um país para o outro. Um francês pode entrar no Brasil e permanecer por três meses sem visto. Um brasileiro, por outro lado, pode fazer o mesmo na França Metropolitana, na Europa, mas não na Guiana Francesa. O governo francês alega alto fluxo de imigrantes ilegais para atuar no garimpo em seu território como motivo para negar a entrada de brasileiros sem visto.
Existe um clima de tensão na fronteira. No porto, apesar de eu dizer diversas vezes que era brasileiro, fui abordado pelos pirateiros e por homens querendo me vender moedas de Real, alguns com muita insistência. Apesar de já estar no fim do dia, ainda havia um certo fluxo de pessoas nos dois lados da fronteira. Uma das providências dos governos locais para contornar a questão da necessidade de visto foi oferecer cartões de passagem para a população local, permitindo aos brasileiros cruzarem a fronteira e permanecerem por até 72h na Guiana Francesa. Como eu não tinha visto, temia por minha visita à Guiana Francesa, que ganhava contornos de ilegalidade. Entrei em um barco que me conduziu, sozinho, pelo Rio Oiapoque, até Saint-Georges, em um trajeto de cerca de 15 minutos, passando por áreas militares francesas e debaixo da bela ponte sobre o rio. Os barqueiros me garantiam que eu não teria problemas relacionados à falta de visto.
Perceber-se em uma área da Amazônia que pertence a um país europeu, onde se fala francês e circula o Euro, é no mínimo excêntrico. Resquício de um passado colonial ainda presente, é o único território europeu fora da Europa que não fica em uma ilha e que possui as dimensões de um país. Também remanescente do escravismo, a cultura local tem forte influência africana e a população é negra. Logo quando cheguei, vi uma família vestida com roupas coloridas indo à Igreja e conversando em crioulo franco-guianense, uma língua franca desenvolvida pelos escravizados africanos que não tinham uma língua comum entre si, nem tampouco dominavam completamente a língua dos colonizadores. O europeu branco, alguns loiros e com estatura alta, também pode ser visto ali, sobretudo trabalhando nas zonas militares e, provavelmente, em outros cargos de administração pública.
Eu caminhei por cerca de trinta minutos por Saint-Georges, tempo suficiente para me certificar de ter passado por todas as ruas da pequena cidade. A primeira coisa a chamar a atenção são os carros, com placas da União Europeia e de fabricação majoritariamente francesa. Em seguida, o nome das ruas e outras placas de trânsito, sempre em francês. Passei por uma patisserie, mas estava já fechada. Havia dois estabelecimentos comerciais abertos, e fui ver o que se vendia. Um deles era um mercado administrado por um chinês, e o outro uma loja onde se vendia toda sorte de quinquilharias em Euros. O mais distinto dessa região da América é a arquitetura, nada semelhante à colonial portuguesa ou espanhola, muito menos à vernácula amazônica. De especial beleza eram os postes de iluminação pública com três luminárias, à moda parisiense, sendo acesos e anunciando o fim do dia. Naquele momento, já não vi muitas pessoas nas ruas; a maioria eram barqueiros brasileiros que fazem a vida transportando passageiros e cargas de um lado para o outro da fronteira. Quando finalizei a minha visita, meus barqueiros estavam ajudando um colega a embarcar uma geladeira em seu barco.
Voltei ao Oiapoque e saí para conhecer a cidade de noite, aproveitando o agito da rua em plena sexta-feira. Havia uma praça com um grande campo de futebol onde times locais amadores se enfrentavam, aos olhos da população e de dois senhores que narravam e comentavam o jogo em uma cabine de transmissão. A praça estava muito cheia, e o clima era muito festivo nos bares, restaurantes e barracas de comida e bebida nas ruas. No porto, bem a frente do hotel no qual me hospedei, os tantos barqueiros e cambistas que estavam lá durante o dia, agora dividiam espaço com prostitutas, cuja presença é notória na cidade. Embora seja uma região estratégica para o desenvolvimento do Brasil, a cidade, desconexa e historicamente abandonada, tem suas principais atividades econômicas tangenciando a ilegalidade, como garimpo ilegal, câmbio desregulamentado e prostituição. O fator primordial para o desenvolvimento contemporâneo da cidade foi o garimpo de ouro, que trouxe grandes contingentes populacionais para a região. O governo francês estima que apenas 20% do ouro extraído na Guiana é legal. Muito masculinizada, a cultura garimpeira envolve destruição da floresta, porte de armas e uma série de atividades recreativas. Na esteira do garimpo, cabe, muitas vezes, às mulheres, conquistar o seu ouro e seus Euros oferecendo serviços sexuais.
Em comum entre as margens brasileira e francesa do Rio Oiapoque, foi o uso do território como colônias penais, isto é, para onde presos (políticos no caso do Brasil) eram transportados. Colônia penal é um nome educado. Muitos consideram que foi criado, no norte do Amapá, um campo de concentração, postumamente conhecido como Inferno Verde. Houve um momento em nossa história, sob a égide do racismo científico que legitimou o colonialismo e a escravidão, em que a inteligência nacional acreditou que o progresso do país deveria estar relacionado à melhoria da "qualidade étnica" da população. Em outras palavras, teorias eugenistas consideravam o branco europeu detentor do melhor padrão civilizatório e, em algumas gerações, a partir da miscigenação, seus traços se sobreporiam aos traços negros e indígenas. Isso virou política nacional: com incentivos do governo, muitos europeus chegaram na posição de trabalhadores livres logo após a abolição formal da escravidão, e logo seriam o embrião de uma nova classe trabalhadora livre emergente no país. Com as péssimas condições de trabalho de uma cultura escravocrata que nunca desapareceu, as ideias anarquistas trazidas pelos imigrantes floresceram no movimento operário. A resposta do governo foi deportar os estrangeiros, tidos como radicais, por meio de leis que permitiam a expulsão daqueles envolvidos em greves. Aos brasileiros indesejáveis, restou uma opção pior: o envio para a colônia penal de Clevelândia do Norte.
No contexto do início do século XX, que viu a Revolução Russa, o movimento anarquista praticamente conduziu toda a luta do operariado brasileiro durante as duas primeiras décadas do século XX, mas começou a se dividir a partir de 1922 com a fundação do PCB (Partido Comunista Brasileiro), de vertente bolchevista. No mesmo ano, surgia uma nova força política e militar, organizada a partir do movimento dos baixos oficiais do Exército, denominada Tenentismo. Opondo-se à política conservadora da velha oligarquia agrária alçada mais uma vez à presidência (em uma democracia em que apenas 2% da população votava), esse movimento conquistou a simpatia das camadas médias urbanas. O governo prendia arbitrariamente figuras de destaque do ativismo anarquista e sindicalista em calabouços em ilhas da Baía de Guanabara, mas estava ficando difícil lidar com sucessivos pedidos de Habeas Corpus. A solução encontrada foi desterrá-los para locais inóspitos e isolados, onde a defesa jurídica não tivesse acesso.
Pouco documentado, o Núcleo Colonial Cleveland foi fundado em 1922 como um centro agrícola avançado sob a custódia do Ministério da Agricultura, mas foi logo convertido em colônia penal. A primeira leva de presos foi enviada em 1924, em uma longa viagem de navio com escala em Belém até a foz do Rio Oiapoque. Um registro oficial de 1970 conta que, no início da colônia, a chegada de mais de mil pessoas gerou um problema habitacional, de tal modo que os próprios presos foram empregados na construção de novas casas. Com o novo excedente de mão de obra, também foram usados na construção de uma usina para extração da essência de paurosa. A força de trabalho da colônia era composta por duas categorias de presos: os político-ideológicos e os criminosos, reunindo sob um mesmo espaço tenentistas, anarquistas, ladrões, cafetões, vadios e loucos. Dados disponíveis mostram que, entre 1924 e 1927, foram internados no Inferno Verde 946 presos, dos quais 491, ou seja, mais da metade, morreram, sobretudo de malária. Um relato de meados de 1925 diz que na época ocorreu uma espantosa epidemia de disenteria bacilar, que vitimou a muitos. Boa parte dos que sobreviveram e voltaram para Rio e São Paulo, de onde foram em maioria retirados, passaram a conviver com traumas e sequelas.
Hoje não há memória material sobre este trágico episódio de nossa história. Um visitante pode passar por Oiapoque sem saber que existiu um campo de concentração de trabalho forçado por ali. Em Clevelândia do Norte existe apenas uma base avançada do Exército, a qual eu tive a curiosidade de ir visitar. Saindo da cidade de Oiapoque, uma curta estrada de terra de cerca de 5 km me conduziu até lá. Havia uma pequena guarita, por onde eu passei sem nenhum problema e sem precisar me identificar. Entrei pela vila militar, em formato ladrilhado em quarteirões, com algumas casas e outras construções - com forte simbologia da onça-pintada e escritos de "Selva!" em algumas paredes - até que de longe avistei um monumento, nas margens do rio, que, como a população costuma dizer, informa ser o lugar onde o Brasil se inicia. Parei meu carro ali perto e me apresentei a um grupo de soldados sentados por lá. Perguntei se eu poderia fotografar o local, e um jovem rapaz, que parecia mais novo que eu, disse ser necessário esperar o Sargento chegar para pedir permissão. Fiquei um tempo sentado, esperando o tal Sargento, que autorizou minha ida apenas ao monumento e acompanhado pelo Soldado. No caminho, o Soldado começou a me perguntar sobre minha profissão e meu salário. Fiquei com receio de ele pedir alguma gratificação pelas fotos, mas, na verdade, ele só estava curioso e quis saber sobre minha viagem, afirmando nunca ter saído de Oiapoque.
Em grande parte, o que se sabe sobre os acontecimentos de Clevelândia do Norte se deve ao esforço dos simpatizantes da causa anarquista, que reuniram cartas e as enviaram à imprensa. São reconhecidos ao menos 20 anarquistas que estiveram lá, mas acredita-se que o número seja muito maior, não mantido em registro oficial para omitir o motivo obviamente político da repressão. Alguns dos presos eram simplesmente classificados como operários e outros como vadios. Além disso, muitos trabalhadores não diretamente relacionados ao anarquismo podem ter sido presos com o objetivo de desarticular e causar temor no operariado. Alguns, ainda, conseguiram se libertar da prisão e seguiram atuantes no movimento operário ao retornarem.
Teria o modo truculento como as elites lidam com movimentos populares de trabalhadores mudado ao longo dos anos até hoje? Com a forte repressão desde o início do século XX, o movimento operário nunca conseguiu manter muita importância entre os setores médios e baixos da sociedade; fundado em 1922, o PCB, primeira experiência partidária anticapitalista depois dos anarquistas, foi considerado ilegal por cerca de metade de sua existência. Os tenentistas, com apoio da classe baixa e média, seriam uma força social fundamental para a Revolução de 1930, que inaugurou as leis trabalhistas, embora Vargas tenha se certificado de deixar a massa trabalhadora sob sua tutela, não liderando o processo político. O próprio Vargas alegaria, em 1935, uma ameaça comunista para derrubar a Constituição de 1934 e iniciar a ditadura do Estado Novo. Fora algumas exceções, sempre existiu no Brasil a continuação da República Velha, com a elite mantendo a escravidão sob novas máscaras e sempre reagindo a governos populares com discursos moralistas, defendendo, sem pudor, golpes de Estado, como em 1954, 1964 e 2016. A elite que outrora enviou anarquistas para morrerem de malária no Amapá é a mesma que hoje criminaliza o povo e o culpa pelo próprio abandono.
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Base avançada do Exército em Oiapoque |
Era ainda cedo e eu precisava retornar a Macapá para encerrar minha viagem, que teve uma rápida passagem por Oiapoque. Se durante a ida havia muita chuva, menos horas de Sol ainda disponíveis no dia e uma carona no banco traseiro, na volta eu tinha um dia inteiro pela frente, um céu bem limpo e estava apenas com a minha boa companhia. A BR-156 já não parecia tão amedrontadora. No trajeto de volta, o pior trecho da estrada fica no início, e, ao passar por ele, senti um conforto mental em pensar que o restante da estrada estaria em melhores condições. Vi muitos dos pirateiros no caminho, e tive a sorte de acompanhá-los nas partes mais enlameadas e esburacadas da rodovia. Quando o terreno estava um pouco melhor, eles andavam com suas caminhonetes a velocidades impressionantes e inalcançáveis, mas para passar em partes irregulares, eles andavam muito devagar, o que me permitia alcançá-los sempre. Eles, com seu conhecimento da estrada, encontravam as melhores passagens, e eu os seguia fielmente. Resolvi parar nas aldeias para conhecer um pouco dos indígenas que vendem alimentos na beira da estrada. Havia duas senhoras vendendo tapioca, que comprei sem hesitação e trouxe para casa para alongar minha viagem por meio do paladar.
Reencontrei Dona Eunice em Calçoene, onde parei para um almoço. Lá ela me indicou outro senhor para ser meu carona até Tartarugalzinho. Dessa vez o senhor foi uma boa companhia e viajamos batendo um bom papo, ao menos por um bom período. Simpático, ele disse haver gostado de mim, pois eu parecia um dos filhos dele. O senhor era Paraense, trabalhava com transporte de combustíveis na região e, segundo ele, possuía propriedades no Pará e no Amapá, estados por onde transitava com frequência. Ele tinha quatro filhos, todos formados ou estudando em universidades federais, incluindo uma filha vivendo nos Estados Unidos. Rapidamente já estávamos em assuntos mais íntimos e fiquei comovido quando ele me contou que quase perdeu um filho com depressão. A conversa estava boa até de repente ele mencionar algo sobre ETs, que, de tão inusitado, demorei a entender sobre o que se tratava. Em um primeiro momento, achei que ele se referia aos sítios megalíticos de Calçoene, fazendo alguma piada. Contudo, ele começou a realmente me explicar sobre a sua louca crença: segundo ele, havia uma divisão da Galáxia em quatro unidades, das quais Jesus Cristo controlava uma, mas havia ETs infiltrados no planeta Terra, provocando a guerra da Ucrânia, que fazia parte de um plano conspiratório chamado Nova Ordem Mundial.
O senhor me fez lembrar porque muitas vezes, no Brasil de 2022, não estou aberto a conversar com estranhos. Embora inicialmente muito simpático e de conversa agradável, rapidamente ele se tornou a mais perfeita alegoria de um personagem que surgiu nos últimos tempos, com quem escolho não ter nenhum contato. Preferia não escrever aqui as falas que ouvi, mas deixo como um registro de pensamentos que, a despeito de parecerem loucura, vêm pautando os debates políticos nacionais de forma abjeta. Começou com a teoria conspiratória com requintes de fundamentalismo religioso, passou pela xenofobia, ao falar que detesta guianeses, venezuelanos e outros estrangeiros no Brasil, disse que todos deveriam se armar para defender o país de uma esquerda liderada por Emmanuel Macron na Guiana Francesa, apontou para um pasto dizendo ser aquele era o futuro do país, defendeu o garimpo, contando entregar gasolina em muitos deles, negou os riscos do aquecimento global, afirmando que quem acredita nisso não conhece a Amazônia, pegou Covid-19, mas se tratou com cloroquina e, finalmente, quando quase chegávamos a Tartarugalzinho, disse que teve vontade de invadir uma agência da Caixa Federal, pois seu filho foi preterido em um concurso por causa da política de cotas, considerada por ele injusta. Afirmando não saber utilizar tecnologia, tinha um celular na mão e reparei que em vários momentos ele abria o seu WhatsApp. A mim, até por questão de segurança, restou evitar o conflito e apenas tecer alguns comentários lubrificantes para ele continuar falando sozinho.
Encerrei a viagem um pouco estonteado com tudo o que vi no Amapá, do Jari ao Oiapoque. Um estado longínquo, pobre, com graves problemas de infraestrutura, onde uma considerável parcela da população vê o aumento da presença do Estado como uma ameaça, sobretudo em relação ao combate ao garimpo e ao desmatamento ilegal. O norte do Amapá foi habitado por grandes contingentes garimpeiros que se habituaram à fraca fiscalização, ao mandonismo e à livre circulação de armas. Acredito que muitos dos que pensam como o senhor a quem dei carona são ressentidos com aumento da fiscalização e maior presença de órgãos de segurança pública, que deveria ser o básico do bom convívio em sociedade.
Naquele dia até teria forças para chegar a Macapá, de onde sairia meu voo no fim do dia seguinte, mas preferi pernoitar em uma nova cidade, Ferreira Gomes. É uma cidade de balneário atravessada pelo Rio Araguari, para onde muitos macapaenses viajam no fim de semana; por ser um sábado, quase não encontrei um hotel para ficar na cidade. Ali costumava ser um local de interesse internacional devido a um fenômeno natural raro, chamado pororoca, em que ondas de longa duração se formam em rios próximo ao encontro com o oceano. Surfistas do mundo inteiro chegavam ao Amapá, mas o fenômeno não acontece mais desde 2013. Entre as causas apontadas para o desaparecimento da pororoca estão a construção de uma hidrelétrica e a intensificação da atividade agropecuária, que causou a drenagem do curso d'água.