Esta é a verdade: a vida começa quando a gente compreende que ela não dura muito.
Millôr Fernandes
A Calle Florida é a principal rua de comércio de Buenos Aires. Fechada para carros desde o princípio do século passado, turistas e executivos se movimentam intensamente por toda a sua longa extensão. A rua está intimamente ligada à história argentina: em 1813, foi ali que o hino nacional foi tocado pela primeira vez. Na década de 1870, quando as férteis terras dos pampas e as ferrovias transformavam a Argentina em uma das mais ricas nações do mundo, a aristocracia escolheu a região para viver. Rapidamente, lojas de luxo se estabeleceram ali para vender o que havia de mais moderno na Europa. O maior símbolo de riqueza que paira no ar da Calle Florida é a Galeria Pacífico, um pomposo edifício no estilo Beaux-Arts cuja cúpula central é decorada com murais criados pelos mais célebres pintores argentinos.
Para se ter um termômetro do que se passa na Argentina, olhe para a Calle Florida. Como um nobre decadente vivendo de pose, a rua já não ostenta tantas vitrines de luxo, embora o estilo parisiense mantenha viva a memória dos anos glamorosos do país. Em seu lugar estão cenas típicas de um país latino-americano de terceiro mundo: de jovens moças a homens idosos, dezenas de doleiros (ou arbolitos no vocabulário portenho) tentam atrair turistas para casas de câmbio paralelo, conhecidas como cuevas. O comércio paralelo de moedas é uma atividade ilegal, mas acontece de forma desinibida no centro de Buenos Aires. A procura é alta, já que nas ruas o câmbio pode valer mais do que o dobro do oficial. Não apenas os turistas estrangeiros se beneficiam disso para viajar com preços mais em conta, mas também os argentinos para driblar as restrições que o Banco Central impõe sobre a circulação do dólar. Com um longo histórico de hiperinflação, os argentinos se habituaram a poupar em dólares, mas variados governos tentaram ou ainda tentam artificialmente controlar o preço para preservar as reservas do país. Diversas regras de restrição de acesso ao dólar culminaram na criação, oficial ou não, de múltiplas taxas de câmbio, a depender do tipo de atividade econômica que se exerce.
Em meus primeiros momentos na cidade, tive a esdrúxula experiência de ir a uma cueva trocar dinheiro. Concordei com o valor que um dos arbolitos ofereceu em pesos por minhas notas de reais do Brasil. Imaginei que ele sacaria maços de dinheiro argentino do bolso e efetuaríamos a troca ali, em um lugar público que me parecia seguro. Em vez disso, ele fez umas contas em sua calculadora de bolso e me levou a um elegante e antigo prédio comercial, onde eu descobriria por que as casas de câmbio clandestinas receberam o nome de "caverna" em espanhol. Subimos em um elevador de portas manuais até o quarto andar e andamos até o fim do corredor. Lá havia uma sala toda branca, quase vazia, exceto por um sofá preto no canto. Mais ou menos na metade do comprimento da sala, uma parede divisora de ambiente com uma janela protegida por uma grade separava o hall de entrada de uma espécie de sala forte. No interior da parede, um rapaz contava dinheiro utilizando uma máquina e armazenava as notas em uma caixa registradora antiga. Apesar de todo o ambiente deixar clara a ilicitude do que estávamos fazendo - de fato, existem riscos em se negociar quantidades altas de papel moeda sem a proteção das leis do Estado -, saí de lá tranquilamente com o valor em pesos que havia combinado com o arbolito.
A despeito da deterioração econômica e do nítido aumento do cinturão de pobreza que rodeia Buenos Aires, a Argentina ainda é um dos países mais seguros e igualitários da América Latina. Maior potência do continente, o Brasil está muito atrás em indicadores sociais, de acesso à educação, saúde, e distribuição de renda. Seguindo pela Calle Florida, cheguei à Avenida Corrientes, onde ficam nítidas as conquistas do próspero passado argentino, a muito custo mantidas pela população. Para além da bela arquitetura europeia, ali está uma alta concentração de teatros e livrarias, sem paralelo na América Latina. As opções de espetáculos são fartas, e os argentinos lotam os muitos bares e cafés da região tão logo as peças terminam. A vida noturna é vibrante e restaurantes funcionam madrugada adentro. A hiperinflação dificulta o acesso a bens materiais, mas o interesse pela cultura, ao que parece, segue intocado no coração de Buenos Aires.
Na esquina da Calle Florida com a Avenida Corrientes, à minha direita estava o obelisco da 9 de Julio, outro exemplar das longas avenidas portenhas. Sem vingar o modelo de Paris, Londres, Florença, Praga, Budapeste e tantas outras cidades europeias, coube à larga Avenida 9 de Julio fazer o papel do rio que orienta e dá ordem à mancha urbana da cidade. Esta encruzilhada simboliza o triunfo da linha reta, do modelo de colonização chamado de ladrilhador por Sérgio Buarque de Holanda. Diferentemente do modelo semeador que ocorreu no Brasil, em que se construía cidades conforme sua utilidade e interesses de curto prazo, na América espanhola havia uma ideia de que a colônia deveria ser uma extensão da metrópole. Assim, as cidades eram planejadas como núcleos de povoamento estáveis e ordenados, onde pudesse prevalecer, sobretudo, o domínio militar, econômico e político da metrópole. Isso explica, por exemplo, existirem universidades na Argentina desde 1613, enquanto no Brasil, qualquer tipo de atividade intelectual na colônia era considerada um risco para as estruturas de poder. Na América portuguesa, a impressão de livros foi proibida até a chegada da família real em 1808, época em que algumas instituições de ensino superior foram criadas. Uma universidade no sentido integral, congruente, no entanto, só surgiria a partir de 1920.
Aos pés do obelisco da Avenida 9 de Julio, o prédio do Ministério de Desenvolvimento Social, com imensos murais com a imagem de Eva Perón, se isola dos arranha-céus para rivalizar com o próprio obelisco em relevância na paisagem da metrópole. Evita Perón é um dos símbolos do movimento político chamado de peronismo, um capítulo à parte na história argentina. Eva Duarte, depois conhecida como Eva Perón ao se casar com Juan Domingo Perón, foi uma atriz, ativista e filantropa, cujos carisma e popularidade entre setores de baixa renda, a quem chamava de "descamisados", foi fundamental para o sucesso do peronismo. Sua morte prematura, de câncer, aos 33 anos, preservou sua imagem pública e a transformou em um mito, símbolo dos valores de justiça social. Na ocasião de sua morte, seu corpo foi embalsamado e exposto à visitação pública. Hoje, turistas se amontoam no cemitério da Recoleta para visitar seu túmulo.
Juan Domingo Perón foi presidente da Argentina por três vezes, totalizando 10 anos no poder. Foi um dos maiores representantes do que se convencionou chamar de populismo, conceito polissêmico, amplo, mas basicamente entendido como um conjunto de práticas políticas voltadas para o "povo". De tão aberto, o discurso facilmente transita entre o nacionalismo de extrema direita ao discurso anti-elitista de esquerda radical, tendo o próprio partido peronista abrigado fascistas declarados e marxistas. O peronismo, capaz de mobilizar as grandes massas trabalhadoras, se tornou o tronco central da política argentina, em que governos progressistas e liberais foram igualmente classificados como peronistas, atraindo, do mesmo modo, detratores à esquerda e direita. Assumindo a presidência logo após a Segunda Guerra Mundial, seu governo se caracterizou pela criação de leis trabalhistas e por políticas de justiça social, como aumento do salário mínimo, 13º salário, folgas semanais, redução da jornada de trabalho, aposentadoria, férias remuneradas, seguro médico, cobertura para os acidentes de trabalho e sufrágio feminino. A contrapartida foi o aumento do controle do Estado sobre os trabalhadores e sindicatos.
Se conversar sobre política com os taxistas de Buenos Aires, provavelmente ouvirá dizer que o mal do país são os governos populistas. Populismo hoje é um termo muito estigmatizado e muitos vêm nele as causas das mazelas econômicas as quais a Argentina não consegue superar. Sobretudo na América Latina, o populismo contribuiu muito para o avanço econômico e social dos países, mas não haveria como vingar na periferia do capitalismo o bem-estar social dos países centrais. O populismo é no fundo um acordo mediado pelo Estado entre a elite e os trabalhadores, em que se concordam em algumas reformas sociais, mas mantêm o caráter de classe do Estado-nação. A classe trabalhadora, nesse sistema político, segue sem autonomia, subjugada pela classe proprietária que facilmente põe fim a governos patrocinando golpes de Estado. Embora promovesse constantes ataques à “oligarquia”, Perón tinha grande aversão ao Comunismo e sabia que concessões aos trabalhadores reduziam o risco de uma radicalização; nunca tomou, ainda assim, ações para combater os privilégios da elite econômica argentina.
É verdade que a manutenção das práticas populistas requer um alto gasto público. O custo dos benefícios sociais ao longo de décadas gerou inflação e problemas fiscais difíceis de se resolver: o governo tradicionalmente subsidia energia, transporte e outros serviços gerais, de modo a aliviar as despesas da população, e os benefícios sociais fazem parte do dia-a-dia no país. Quando se fala em crise argentina, no entanto, é preciso lembrar que o país deixou de ser um dos mais ricos do mundo a partir do desmantelamento do modelo agro-exportador provocado pela Grande Depressão de 1929. Na América Latina, a década de 1930 foi marcada por ascensão de governos progressistas, em um contexto de enfraquecimento da elite rural e fortalecimento da classe operária com a incipiente e acelerada industrialização no período. A Argentina, dado seu alto grau de ativismo político, muito influenciado pela presença de imigrantes europeus, tinha, à época, um presidente de fora das oligarquias desde 1916, de modo que a crise da década de 30 foi respondida com uma reação conservadora. Àquela altura, contudo, não se podia ignorar a necessidade de industrialização do país, que terminou por se concentrar nos bens de consumo não durável, sobretudo alimento e têxteis, deixando de lado produtos de base, como ferro, aço, carvão e petróleo. Nessa época a economia platina passou por uma grande urbanização, e o crescimento da classe operária se deu em um ambiente de profunda exploração, com poucos direitos e nenhuma representação institucional dentro do esquema oligárquico, pavimentando o caminho de Perón.
Chama-se o cuidado com os pobres pejorativamente de populismo, mas o cuidado com os ricos é chamado de que? Geralmente os governos que se contrapõem ao populismo pregam a "responsabilidade fiscal", uma conhecida prática de se reduzir gastos públicos para combater a inflação. O problema é que os cortes rotineiramente recaem sobre programas sociais, o que, sobretudo na Argentina dos fortes e mobilizados sindicatos, não é aceito facilmente pela população. Ataca-se o valor das aposentadorias, dos salários mínimos, dos programas de distribuição de renda, dos subsídios. A pobreza é um perigo próximo, e muitas vezes cortes sociais podem colocar grande parte da população no espectro da fome e miséria. Buenos Aires ingenuamente pensou que trilhava um caminho reto, ao fim do qual alcançaria as principais cidades da Europa e dos Estados Unidos, mas despertou para a realidade dos problemas da zona sombria do planeta. A crise argentina vem da incompatibilidade de se viver uma social democracia aos moldes europeus estando do lado subdesenvolvido do mundo.
As grandes aglomerações, sejam para manifestações de cunho político ou para celebrações envolvendo futebol, ocorrem no obelisco e na Praça de Maio, centro da vida política argentina. Quando cheguei na praça, havia apenas uma tímida vigília de uma família indígena reivindicando proteção de suas terras, uma causa que parecia não comover os muitos passantes apressados da região. Na Argentina, a capital política também é o centro financeiro, cultural e de maior população do país. Buenos Aires e sua região metropolitana concentram mais de 30% da população, que se habituou a acompanhar de perto e a cobrar os políticos que frequentam a Casa Rosada. No Brasil, em 1960, a capital federal foi transferida para Brasília - longe dos grandes centros urbanos - e, quatro anos depois, um golpe militar pôs fim a um governo de caráter popular e trabalhista de João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas. Visando a impedir que a experiência de Cuba se repetisse, os Estados Unidos financiavam golpes de estado por toda a América Latina para garantir governos duros e autoritário em sua zona de influência. Inspirados no Brasil, em 1966, as forças armadas argentinas depuseram um governo trabalhista radical e os militares foram alçados ao poder. Diante de uma sociedade muito politizada, essa experiência fracassou e culminou no retorno de Perón à presidência em 1973. Três anos depois, em 1976, um novo golpe militar inauguraria a mais sangrenta ditadura militar na América do Sul, que mataria 30 mil civis em sete anos.
Em situações de terrorismo de Estado, como foi o caso de Brasil e Argentina, a história oficial costuma agir de dois jeitos: apagar a história de mortos e desaparecidos ou equiparar vítimas e algozes. Entre o início da liberalização do regime autoritário e a primeira eleição direta de um governo civil democrático, passaram-se quinze anos no Brasil e menos de dois na Argentina. O caminho escolhido para lidar com o passado foi o da anistia, palavra que possui a mesma raiz etimológica de amnésia, ou seja, esquecimento. O novo governo civil argentino escolheu ver a recente ditadura como algo assombroso porém distante, sem nenhuma semelhança com o novo período que se iniciava. Mas como esquecer não é perdoar, já em 1983 surgiram as primeiras políticas públicas de memória. O Julgamento das Juntas Militares, um momento marcante da história argentina, culminou na condenação à prisão perpétua dos ditadores Jorge Rafael Videla e Emilio Eduardo Massera, além da prisão de Orlando Ramón Agosti, Roberto Eduardo Viola, Omar Graffigna, Armando Lambruschini, Leopoldo Fortunato Galtieri, Lami Dozo e Jorge Basilio Anaya.
Por outro lado, o novo governo civil argentino também ordenou o julgamento dos líderes guerrilheiros que combateram a ditadura, como um modo de tentar se equilibrar entre diferentes lados da opinião pública. Essa visão conhecida como "dois demônios" coloca a sociedade como vítima de uma "guerra suja" entre dois extremos. Esse argumento permeou as ditaduras latino-americanas, as justificou, e, no Brasil, é o tema central quando se trata da memória do período. Não se pode, no entanto, falar de dois lados quando não há simetria de forças. O que houve foi um enfrentamento desigual entre um poderoso Estado e seu exército contra alguns milhares de revolucionários. No Brasil, os ditadores se valeram da pressão social por uma anistia para presos políticos e exilados para promoverem uma autoanistia, se autodeclarando impunes. Todos hoje descansam em paz sem nunca terem pagado por seus crimes.
Encabeçando a luta pelo direito à memória está o movimento das Mães da Praça de Maio. Mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos pelo terrorismo de Estado começaram a organizar passeatas na Praça de Maio, causando grande comoção na comunidade internacional e chamando atenção para o que acontecia na Argentina. A fundadora do grupo, Azucena Villaflor, juntamente com as freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet, foram sequestradas, torturadas e assassinadas pelo governo militar. O movimento, contudo, ganhou uma força inabalável. O uso de símbolos, como o lenço branco na cabeça para representar as fraldas de seus filhos desaparecidos, as rotineiras rondas cívicas e a vigilância constante, unindo o fator familiar à luta pelos Direitos Humanos, criaram uma nova e inspiradora forma de prática política. A organização Avós da Praça de Maio seguiu os seus passos e ainda hoje busca pela identificação de seus netos desaparecidos. Um dos atos mais cruéis da ditadura argentina, não vista nas outras ditaduras do Cone Sul, era sequestrar bebês de pais tidos como subversivos. Muitas vezes, a própria mulher grávida era levada para os centros de detenção, obrigada a parir e tinha então seu bebê raptado. Algumas dessas crianças ficaram desaparecidas, mas a maioria foi entregue à família de militares ou de apoiadores do regime, por meio de adoção ilegal e falsificação de documentos.
Na Avenida Corrientes foi onde vi pela primeira vez em Buenos Aires um tipo de stolpersteine. Do alemão "pedra do tropeço", as stolpersteine são um projeto artístico de se colocar placas fixadas no chão, em via pública, com nomes de pessoas e famílias perseguidas, torturadas, assassinadas ou presas pelo regime nazista. A ideia é que se tropece nessas pedras e se curve para ler o nome das vítimas, seguindo o preceito alemão de relembrar para não repetir. A Argentina foi o primeiro país fora da Europa a receber tais pedras, homenageando famílias que fugiram para o país. Possivelmente inspirados por esse projeto, diversas ruas de Buenos Aires relembram, com placas presas na calçada, vítimas da ditadura militar de 1976. De fato há muitas semelhanças entre Alemanha e Argentina no que se refere à memória do nazismo e da ditadura militar, respectivamente.
Na Argentina tudo é feito com muita paixão. Do tango ao churrasco, da política ao futebol, os prazeres argentinos irão te despertar algum sentimento. Era julho de 2023 e o país vivia ainda a euforia pela vitória na Copa do Mundo de 2022. Leonel Messi havia definitivamente se juntando a Maradona no panteão dos carismáticos mitos argentinos, e seu rosto estava em murais, pôsteres, jornais, propagandas e lojas de lembrancinhas. O futebol, fenômeno responsável pelas maiores migrações do mundo em tempos de paz, foi o que me trouxe dessa vez à Buenos Aires para acompanhar Fluminense contra River Plate no estádio Monumental de Nuñez, na campanha que alçou pela primeira vez o tricolor do Rio ao título de campeão da América. Vivido de forma profunda pelos argentinos, o futebol ajuda a explicar os sucessos e fracassos da Argentina como nação.
O auge do período repressivo da ditadura militar coincide com a Copa do Mundo de 1978, sediada e vencida de maneira controversa e apoteótica pelos argentinos. A Junta Militar, ao assumir a organização do evento, buscou promover uma boa imagem do país com extensiva propaganda patriótica: o governo esperava que a Copa abafasse as tensões internas vividas com a ditadura. Nos bastidores, a vitória argentina foi cercada por diversas suspeitas de fraude. Para avançar à final, a Argentina precisava vencer o Peru e dependia de uma combinação improvável de resultados envolvendo o jogo do Brasil. A partida decisiva contra os peruanos foi estranhamente adiada, de modo que os argentinos entraram em campo sabendo por qual placar deveriam vencer; a vitória deveria ser por quatro gols de diferença. Os torcedores peruanos, assim como os brasileiros, não puderam crer quando sua seleção perdeu por 6 x 0, resultado que classificou a Argentina para a emocionante final vencida contra a Holanda. Para aumentar as suspeitas, o general Videla foi visto frequentando o vestiário do Peru antes e depois da partida, alimentando teorias de que os jogadores peruanos foram subornados para perder, ou mesmo que o Peru, que também vivia uma ditadura militar, teria recebido um grande carregamento de trigo argentino para perder o jogo.
A Copa de 1978 ficou conhecida como "a Copa da ditadura", marcada pela fotografia do General Videla entregando a taça para os jogadores no estádio Monumental de Nuñez. Não deixa de ser irônico que, a dez quadras dali, ficasse a Escola de Mecânica da Armada, onde vítimas da ditadura eram torturadas. "Enquanto gritam gol, abafam os gritos dos torturados e assassinados", afirmou Estela Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, em uma fala que reverbera uma conhecida metáfora sobre essa Copa. O discurso de quem fez parte daquele time, contudo, é de que a Copa foi vencida pelo povo argentino e apesar da ditadura. Alberto Tarantini, titular daquela equipe, afirma ter, como forma de protesto, passado a mão em seus testículos antes cumprimentar Videla. Cesar Menotti, técnico da seleção e militante do Partido Comunista, muito cobrado por não ter se posicionado contra o regime à época, abrigou perseguidos políticos em sua casa.
O futebol serviu por um breve momento para unir inimigos e simpatizantes da ditadura em torno de uma causa patriótica comum, tão cara à ideologia do regime. No entanto, diante das tensões sociais, aumento da inflação, pobreza, endividamento externo e baixo salário real, não seria uma vitória esportiva que sustentaria uma imagem positiva do governo militar. No início da década de 1980, como uma última estratégia de manutenção de seu poder, os ditadores decidiram reviver uma antiga questão nacional de grande consenso na sociedade: tomar o controle das Ilhas Malvinas, território ultramarino britânico localizado a menos de 500 km da costa argentina. Sabendo que as guarnições britânicas nas ilhas eram reduzidas e apostando que o Reino Unido não empenharia muitos esforços em uma guerra tão distante de seu território, os argentinos resolveram atacar. Quando imagens de soldados britânicos rendidos chegaram em Londres, a população britânica ficou estarrecida e julgou uma possível derrota militar no Terceiro Mundo uma grande humilhação. Um conjunto de decisões militares equivocadas, somados à defasagem do arsenal argentino, facilitou a rápida retomada das ilhas pelos britânicos, que impuseram uma esmagadora derrota à Argentina.
A Guerra das Malvinas teve importantes consequências tanto na Argentina quanto no Reino Unido. Na Argentina, acelerou a queda do regime militar. No Reino Unido, por sua vez, fortaleceu o governo de Margareth Tachter. Se na Argentina o setor da população que ainda via nos militares uma opção razoável para comandar o país se derreteu, no Reino Unido, Tachter, mesmo sofrendo duras críticas por suas políticas neoliberais, venceu as eleições de 1982 com ampla maioria. Nessas eleições, o controle das Ilhas Malvinas, chamadas de Falklands pelos britânicos, foi um ponto central que contribuiu para o longevo mandato da Dama de Ferro.
Após a guerra, a presença militar britânica aumentou nas ilhas. Diferentemente da Argentina continental, hoje as Malvinas são uma das regiões com maior PIB per capita do mundo. Os cidadãos malvinenses passaram a ser considerados cidadãos britânicos e, em mais de um referendo desde então, preferiram seguir como um território britânico em vez de aceitar a soberania argentina. Do lado argentino, perdura a ideia de que as Malvinas são, em justo direito, argentinas. Prédios de repartição pública e outros lugares de grande circulação expõem cartazes e placas com os dizeres "As Malvinas são argentinas", um símbolo que também inspira manifestações individuais, como em adesivos de carro facilmente vistos pelas longas avenidas de Buenos Aires. Do lado britânico foram 255 mortes e, do argentino, 649, metade das quais em um único ataque ao navio General Belgrano, em zona de exclusão bélica, considerado um crime de guerra pelo qual Tachter nunca foi julgada. Nos anos que se seguiram, mais de 450 ex-soldados se suicidaram por quadros de depressão, segundo informações coletadas pela associação de veteranos.
Da mesma geração dos jovens soldados argentinos que lutaram na guerra eram os jogadores da seleção convocados para a Copa do Mundo de 1986. Quis o destino que os caminhos de Argentina e Inglaterra se encontrassem nas quartas de final. Maradona estava em campo e teve a maior atuação individual de um jogador na história das Copas. Em um intervalo de três minutos, primeiro marcou um gol com a mão, em um movimento que teria sido concebido com ajuda divina, e, em seguida, o Gol do Século: partindo de antes do meio de campo, driblou seis adversários antes de arrematar a bola para o gol. Era o gol do bandido e o gol do artista, ou os dois gols mais contraditórios da história do futebol, como escreveu Eduardo Galeano. No campo simbólico do futebol, as Malvinas estavam vingadas. A Argentina terminou como campeã mundial naquele ano, sendo também um triunfo diante da decepção da Copa anterior, em 1982, cujo mau desempenho foi em parte justificado pela disputa do torneio em meio à guerra. Mais de 14 mil jovens argentinos foram levados às Malvinas, incluindo jogadores profissionais de futebol. A trajetória de Osvaldo Ardiles, campeão em 1978, titular em 1982 e jogador de muito sucesso na Inglaterra à altura, foi emblemática: seu primo, piloto da Força Aérea Argentina, foi morto na guerra poucas semanas antes do mundial. Depois de sofrer xenofobia na Inglaterra e acusações de traição na Argentina, transferiu-se para França, onde demorou a recuperar seu desempenho esportivo anterior ao conflito.
O surgimento de um ídolo errático como Maradona já parecia profetizado na Argentina. Em 1928, a revista El Gráfico, ao descrever o que seria o jogador ideal, publicou: "um pibe (garoto) com a cara suja, com cabelos que protestavam ao pente o direito de ser rebelde; com olhos inteligentes, esvoaçantes, enganadores e persuasivos, com olhares brilhantes que costumam dar a sensação de um riso malicioso que não pode ser expresso por aquela boca de dentes pequenos, como que desgastados de tanto morder o pão de ontem". O Pibe de Oro, como ficou eternamente conhecido, de descendência galega e guarani por parte de pai, e italiana e croata por parte de mãe, foi uma síntese de todas as fraquezas humanas imagináveis: jogador canhoto, do lado do pecado, foi viciado em cocaína, álcool, mulheres, recusou-se a reconhecer filhos e chegou a ser suspenso do futebol por relações espúrias com a mafia italiana. Seus fiéis devotos o admiram justamente pelas fraquezas, por ter sido o rapaz sujo, periférico, pobre e descabelado que representou e defendeu uma multidão anônima. Como o mais humano dos deuses, nasceu com a vocação messiânica de não apenas vingar os argentinos pelas Malvinas, mas também redimir a maldição histórica dos italianos do sul contra os do norte, jogando pelo Napoli. Não é exagero afirmar que Maradona se tornou uma divindade: ao marcar o gol de mão contra a Inglaterra, ele afirmou não ter sido sua mão, mas a mão de Deus que empurrou aquela bola para as redes. Essa fala inspirou a fundação da Igreja Maradoniana, em que os devotos têm um calendário contado a partir do dia de nascimento do ídolo, data também usada para celebração do Natal maradoniano. Entre realidade e misticismo, a Igreja, que inclui um ritual de batismo em que se deve reproduzir o gesto do gol de mão, faz parte do irreverente senso de humor argentino; Maradona, ainda assim, na Argentina e em Nápoles, é frequentemente retratado como um santo e alvo de imensa adoração.
O jogador de futebol, herói real e popular, em sua maioria pertencente aos setores mais desfavorecidos, aos poucos roubou o lugar do gaúcho dos pampas como representante do ideal masculino nacional. A migração massiva de estrangeiros, juntamente com o rápido crescimento econômico, a urbanização acelerada e o crescimento de uma metrópole como Buenos Aires, causaram uma profunda crise de identidade na ainda jovem nação. Como um típico país do Novo Mundo, sem os mitos patrióticos já bem estabelecidos dos países europeus, os principais pensadores e escritores buscavam responder "o que é ser argentino?", uma questão que necessariamente passava pela construção de um imaginário de homem ideal. Se os pampas tinham o seu representante humano - o gaúcho - e literário - o mitológico Martin Fierro -, a transição para os subúrbios das cidades encontrou no compadrito, arquétipo muito presente na obra de Jorge Luis Borges, os mesmos ideais de coragem e bravura. No entanto, a partir da década de 1920, o compadrito, um homem brigão que empunhava seu facão já pertencia ao passado. Borges, em seu livro sobre Evaristo Carriego, lamenta nostalgicamente que, por volta do centenário da independência argentina, em 1912, os homens já não tinham habilidade com facas e haviam trocado os duelos de honra pela ginástica e pelo futebol.
Os novos espaços de construção do masculino a partir de 1930 foram notadamente o tango e o futebol. As mais importantes letras de tango exaltavam o sentimento do homem romântico que saía dos subúrbios para o centro e se perdia nos bares e teatros da Avenida Corrientes. O futebol, por sua vez, na medida em que praticamente todo bairro tinha um clube de futebol, com estádio próprio e sede social que muitas vezes incluía teatros e bibliotecas, articulava as atividades culturais e recreativas. De origem britânica, o futebol se tornou uma paixão argentina ao ser apropriado e recriado às margens da larga embocadura do Rio da Prata. O estilo criollo rio-platense de se jogar conquistou o mundo nas Olimpíadas de 1928 e na Copa do Mundo de 1930, ambas finais disputadas entre Argentina e Uruguai. A influência saxônica havia definitivamente desaparecido de ambos times nacionais, cujos jogadores tinham nomes majoritariamente espanhóis ou italianos, tido como "latinos", em oposição aos nomes britânicos dos primeiros jogadores que introduziram o esporte na Argentina, tidos como estrangeiros. O futebol britânico seria caracterizado como "industrial", isto é, disciplinado, fleumático, monótono, repetitivo e baseado no poder físico, enquanto o crioulo, justamente por sua influência latina, como inquieto, ágil, virtuoso e baseado no esforço individual. Sobretudo, o futebol argentino foi interpretado como uma arte, tal qual uma grande orquestra composta por virtuosos instrumentistas, centrado no drible e improviso, típicos de uma sociedade pré-industrial. A palavra de origem inglesa "dribbling" (drible em português) recebeu o nome de "gambeta" na Argentina, mesma palavra usada pelos gaúchos dos pampas para se referirem a animais ágeis e evasivos.
O futebol foi fundamental para os países do Cone Sul se expressarem por meio de sua seleções. Logo, jornalistas, analistas e demais envolvidos com o esporte começaram a identificar um estilo argentino, uruguaio, paraguaio, brasileiro e chileno de se jogar. Também caracterizado pelo drible, o futebol brasileiro - e a sociedade brasileira por extensão - se diferenciaria da argentina pela forte influência africana. É claro que o homem ideal que sempre habitou o imaginário argentino é um homem branco. Um olhar um pouco atento sobre as seleções argentinas mostra que, ao contrário de outras equipes sul-americanas, a presença de jogadores negros é rara, mesmo quando comparada a um país tão próximo como o Uruguai. Assombrosamente, xenofobia e racismo se abraçam nos estádios argentinos, onde é comum usarem de motivos étnico-raciais para tentar provocar e desestabilizar seus adversários em campo. O racismo se manifesta contra jogadores negros - a maioria dos brasileiros - e indígenas, de nações vizinhas, como Bolívia e Paraguai. Se não podemos deduzir que a Argentina é um país racista por causa da atitude de alguns torcedores em estádios de futebol, tais gestos são sintomas de uma nação que se enxerga como branca e ignora o passado de negros e indígenas em seu país.
Passo agora a relatar minhas impressões como torcedor brasileiro visitante em um estádio argentino. Lembro bem quando, em outra passagem por Buenos Aires, realizei a visita ao estádio La Bombonera, do Boca Juniors. Em diversos momentos, o guia mostrava como o estádio era pensado para ser o mais hostil possível para o time adversário: a torcida rival é colocada longe do campo, em um lugar bem alto, onde ou bate muito sol nos dias quentes, ou bate um vento muito gelado nos dias frios. O vestiário se situa logo abaixo da arquibancada popular, sem cadeiras, onde torcedores pulam incessantemente causando barulho e tremedeiras que prejudicam a preparação de seu adversário. Para acessá-lo, os jogadores precisam abaixar a cabeça, já que a porta de entrada é pequena e possui altura propositalmente rebaixada. A rivalidade faz parte do futebol e é um dos fatores que o torna o tão apaixonante. É triste, contudo, que, contaminado por testosterona, o jogo se transforme em uma competição de virilidade, onde uns se creem superiores a outros e o que importa é vencer a qualquer custo.
Dessa vez, no estádio do River Plate, tive a experiência real de um jogo. Cheguei ao estádio tranquilamente de metrô, descendo na estação Congreso de Tucumán e caminhando pelas agradáveis ruas de Belgrano. Próximo à rua que dava acesso à arquibancada visitante, cerca de meia dúzia de ônibus com torcedores do Fluminense chegava para a partida, escoltados por policiais. Ali as torcidas se hostilizavam de maneira acintosa e policiais montados em suas motos, agentes que muitas vezes acabam por também contribuir para o cenário de violência, brutamente afastavam torcedores do River Plate para abrir caminho para o ônibus do Fluminense. Os ônibus seguiram por uma rua destinada à torcida visitante, pela qual eu também segui já com os ânimos entre as torcidas mais calmos. Depois de mais uma caminhada até os portões e uma longa escadaria até a arquibancada alta do Monumental, cheguei, finalmente, para o jogo.
Dentro do estádio, as mesmas hostilizações entre as torcidas se repetiam. Enquanto aguardava o início da partida, tive tempo suficiente para observar com mais atenção os gestos que as torcidas direcionavam uma à outra. Quando uma torcida se sente obrigada a vencer, ela também se sente superior a quem quer que seja. Em um confronto envolvendo dois países com profundas tensões econômicas e sociais, adiciona-se às emoções coletivas do jogo um sentimento exagerado de nacionalismo e um interesse excessivo sobre o seu time ou nação. A perda de privilégios vivenciada pela cultura masculina em geral, e especificamente pela população argentina com a atual crise econômica, provoca ainda mais violência no palco do futebol. Ações individuais criminosas muitas vezes são escondidas pelas multidões ou acobertadas pelos próprios clubes, intoxicados pelo chauvinismo que os impede de punir seus torcedores. Para se sentirem superiores aos brasileiros, os argentinos faziam repetidamente gestos racistas chamando brasileiros de macacos. Os brasileiros, por sua vez, respondiam rasgando notas de dinheiro, mostrando que são mais ricos que os argentinos. Tanto a ideia de uma superioridade racial como a de maior riqueza são símbolos de auto afirmação de grupos que se sentem superiores a outro. O modo de se agir das torcidas que valorizam a violência, além de misoginia, homofobia, xenofobia e racismo, muito se aproxima do conservadorismo da extrema-direita, que apodreceu democracias em todo mundo, incluindo Brasil e Argentina.
Brasileiros brancos - a maioria dos torcedores do Fluminense que viajaram a Buenos Aires - não são menos racistas ou violentos que argentinos. O próprio ato de se rasgar dinheiro só pode servir como ofensa a quem vive em um país com passado escravocrata e de extrema desigualdade social, onde ostentar riqueza diante de tanta miséria é uma forte agressão. A diferença entre Brasil e Argentina, todavia, está na representatividade de negros em suas populações: aproximadamente metade da população brasileira se diz preta ou parda, o que trás vitalidade e força para o movimento negro, quase inexistente na Argentina, onde negros são cerca de 1% da população. No Brasil, manifestações públicas e explícitas de racismo não são socialmente aceitas, sendo racismo considerado crime inafiançável e imprescritível na Constituição. Na Argentina, a opinião pública tem muita dificuldade em entender que chamar o adversário de "macaco" não é simplesmente uma gozação ou jargão futebolístico, mas sim um ato manifesto de racismo. Torcedores que cometem tal crime, invariavelmente, seguem suas vidas normalmente sem serem punidos.
A população argentina costuma dizer que descende dos navios, se referindo à colonização europeia. Um dito ex-presidente, em encontro com o primeiro-ministro da Espanha, afirmou que "os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas os argentinos chegaram de barcos". Faltou incluir no universo das embarcações que teria gerado a civilização argentina os navios negreiros. Em meados de 1780, a população negra de Buenos Aires, conforme o censo da época, era de quase 30%, número que podia chegar a 50% em outras regiões da Argentina, como em Santiago del Estero. Um século depois, o número já era menor do que 2%. Após a abolição da escravidão, em 1853, categorias étnicas como índio, pardo, mestiço, moreno, negro e branco gradativamente deixaram de fazer parte do censo, ao passo que populações negras e mestiças preferiam, também, esconder suas origens afro-americanas. A pergunta de autodeclaração racial só retornou ao censo em 1994, quando os indígenas foram incluídos. Em 2010, negros também foram incluídos. Antes disso, não havia motivos para tal pergunta, pois já estava subentendido que a população argentina era formada por brancos.
Há um consenso entre quem estuda o passado de afro-argentinos de que a população negra foi reduzida a quase nada por guerras, doenças e políticas de Estado. No século XIX, quando os países americanos conquistavam sua independência, aos olhos de grande parte da intelectualidade, o negro representava o atraso e o passado. O quadro "A redenção de Cam", pintado pelo espanhol radicado no Brasil Modesto Brocos, ilustra bem o pensamento da época: a partir do branqueamento da população, que incluía financiamento estatal para a imigração europeia, e da miscigenação, o perfil "racial" das novas nações passaria de negro para branco em apenas três gerações, a partir do "cruzamento entre raças". De fato, a pele é um dos traços que mais rapidamente "branqueia", mas a presença da genética africana pode ser percebida de outras maneiras, como nos cabelos encrespados, fora a influência em diversas manifestações culturais tão genuinamente argentinas, como o tango e as baterias das torcidas de futebol. Dados genéticos mostram que a presença negra na Argentina é muito maior do que mostra o censo, variando de 4% a 9% conforme diferentes metodologias. A presença indígena na formação nacional argentina, base do que se entende como cultura gaúcha, a partir do mate e do modo de preparo do churrasco, é ainda mais impactante. Estima-se que um terço dos argentinos descendem de povos originários.
Nas guerras oitocentistas que a Argentina se envolveu, a população negra masculina era utilizada como "bucha de canhão", já que uma das poucas formas de se atingir um pouco de prestígio social para os negros era entrar para o exército. A própria independência (1810-1816) foi marcada por diversas guerras civis. Em seguida, a ofensiva contra o Paraguai (1865-1871), além de grandes surtos de cólera (1861) e febre-amarela (1871), causaram grande mortalidade entre afro-argentinos, mais pobres e com menos condições de sobreviverem a epidemias. Na jornada colonial, os povos originários foram dizimados, sendo muitas vezes eles próprios os alvo de tais guerras, como nas campanhas do deserto (1879), quando a elite de Buenos Aires financiou excursões militares ao sul para tomar a Patagônia do controle mapuche, nação indígena que resistiu bravamente à colonização espanhola por 300 anos, mas sucumbiu aos avanços republicanos argentino e chileno. O mesmo se passou no Brasil. Na Guerra do Paraguai, o contingente de negros no exército brasileiro chamava a atenção dos países platinos vizinhos que também participaram do conflito. Nessa época, caricaturas pejorativas comparando o exército brasileiro a um bando de macacos se massificaram, criando um imaginário de superioridade racial que, ainda hoje, se perpetua pelos estádios de Buenos Aires.
Quando o juiz apitou o início da partida, pude vivenciar por 90 minutos a magia do futebol. O Monumental de Nuñez havia sido recentemente reformado e se transformado no maior estádio da América do Sul, com capacidade para quase 85 mil torcedores. Com todos os ingressos vendidos, eu estava diante do maior público já registrado na história do estádio. A pista de atletismo que envolvia o campo foi removida para dar lugar a novas arquibancadas, onde torcedores assistem o jogo de pé praticamente do nível do gramado. Do alto da arquibancada dos visitantes, ver aquele mar de gente que ia do campo ao anel superior do estádio foi impressionante, tal como a cena em plano-sequência no estádio Huracán do filme O Segredo de Seus Olhos. Quando todos pulam e cantam ao mesmo tempo, a atmosfera é de imensa pressão sobre o adversário, e logo eu percebi que as chances de vencer o jogo eram mínimas. Perdemos por 2 x 0.
O modo visceral como o argentino vive o futebol, mais do que me impressionar, me assombrou. A impressão que eu tive foi a de que os torcedores não têm medo de morrer, ou que morreriam felizes em nome de sua paixão. É como se, durante o jogo, as outras dimensões da vida tivesse menos importância. Inclusive uma morte ocupava o noticiário pré-jogo: na partida de inauguração do novo Monumental, uma antes do jogo que eu fui, um torcedor perdeu a vida ao cair da arquibancada alta. Enquanto os jogadores aqueciam, meus olhos acompanhavam as bolas que chutavam em direção ao gol. Eventualmente algumas caíam sobre a torcida. Em uma das vezes que isso aconteceu, uma briga entre os torcedores do River Plate se iniciou para decidirem quem pegaria a bola e a arremessaria de volta ao gramado. De repente, ao menos cinco torcedores se empurravam e agrediam uns aos outros. Quando um rapaz se impôs e pegou a bola, após dar uma rasteira em outro, a confusão parou e cada um seguiu para seu lugar. Entendi que, como em um clube da luta, aqueles homens desmedidos se agrediam por puro esporte. A essa altura, imagino não ser necessário dizer que a grande maioria dos presentes no estádio eram homens.
O pior de tudo, contudo, foi o final do jogo. Após o resultado da partida, naturalmente o lado vencedor se sentia orgulhoso e confiante, e o perdedor triste e com raiva. Havia uma tensa força gravitacional de emoções. Apenas placas de acrílico e alguns stewards franzinos, os mesmos que fechavam os olhos para inúmeros gestos racistas dos argentinos, separavam as duas torcidas adversárias. Os insultos se intensificavam e não demorou até que objetos começassem a ser arremessados de um lado para o outro. Como de costume, a torcida visitante só podia deixar o estádio após a da casa o esvaziar completamente. Garrafas de plástico, ora cheias de Coca-Cola, ora cheias de urina, passaram a ser arremessadas, ao passo que os torcedores do Fluminense eram impedidos de se proteger fora das arquibancadas já que policiais bloqueavam a passagem. Objetos lançados de uma torcida eram lançados de volta por outra, parecia impossível atingir uma trégua. Alguns torcedores com pior pontaria erravam o alvo e garrafas caíam também sobre a torcida do River Plate que estava nos novos espaços abertos no nível inferior. As garrafas pesavam cerca de 1 kg, alcançando um peso muito maior quando arremessadas de grandes alturas. Caindo sobre a cabeça de alguém, o dano podia ser grave. Com raiva, enquanto eu olhava para cima para proteger meu rosto dos objetos, um senhor passou, acolhido por seu filho, com a cabeça ensanguentada. A falta de civilidade foi frustrante, ainda que esperada.
Ainda há argentinos que pensam que estão mais próximos dos europeus do que dos latino-americanos. Em um país de passado colonial, de trabalho forçado de negros e indígenas, onde a economia é essencialmente agrário-exportadora e a cor da pele e a mestiçagem coincidem com a pobreza, percebi que os problemas que assolam nossas nações são os mesmos. A ideia de superioridade racial de um país que sempre julgou o que vem da Europa como superior e belo e invisibilizou povos originários e afrodescendentes, não serviu em nada para acabar com a pobreza ou com a hiperinflação que deixa os argentinos, hoje, abandonados à própria sorte.
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