De como Hugo Chavez e seu Socialismo bolivariano promoveram um encontro ideologicamente improvável
"Foi o acaso, sem dúvida, que levou Marx à redação de seu artigo sobre Bolívar. (...) Quis a sorte que lhe coubesse redigir o verbete sobre Bolívar. O resultado das leituras efetuadas para a redação desse verbete foi um sentimento tão acentuado de aversão pelo personagem, que ele não conseguiu deixar de dar um tom surpreendentemente preconceituoso a seu trabalho."
José Aricó, Marx y América Latina
"Heróis ou demônios, suas vidas estão unidas por contingências históricas. Nada permitiria prever uma relação entre os dois. Com vidas paralelas, não pareceria haver um ponto de interseção. Mas uma reta cruzou essas vidas, provocando uma interseção curiosa. Bolívar tornou-se objeto da atenção de Marx pela necessidade de atender a um pedido de Charles Dana para a 'New American Cyclopaedia', em 1857. O artigo escrito por Marx provocou controvérsia, mal-estar e ressentimento em alguns casos."
Marcos Roitman Rosenmann & Sara Martinez Cuadrado, Universidade Complutense de Madrid
"No que concerne ao estilo preconceituoso, certamente saí um pouco do tom enciclopedístico. Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas. Bolívar é o verdadeiro Souloque. [Rei do Haiti. Figura a quem Marx e Engels recorriam para ridicularizar Luis Napoleão III] A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, provou sua eficácia em todas as épocas, inventando grandes homens. O exemplo mais notável desse tipo é, sem dúvida, o de Simón Bolívar."
Karl Marx, carta a Engels
"Ao povo da Venezuela, em exercício de seus poderes criadores e invocando a proteção de Deus, o exemplo histórico de nosso libertador Simón Bolívar e o heroísmo e sacrifício de nossos antepassados aborígenas e de precursores e formadores de uma pátria livre e soberana(...) assegure o direito à vida, ao trabalho, à cultura, à educação, à justiça social e à igualdade sem discriminação ou suborno algum; promove a cooperação pacífica entre as nações e estimula e consolida a integração latino-americana"
Constituição Bolivariana
Cultuado pela esquerda latino-americana, Simón Bolívar, "O Libertador", era visto pelo pai do Socialismo Científico e autor do Manifesto Comunista, Karl Marx, como um "personagem medíocre e grotesco". Para Marx, Bolívar era um perfeito exemplo de ditador bonapartista: em um verbete para a New American Cycopaedia, sua repugnância por Bolívar se demonstra equiparável à por Napoleão. Um dos mais notáveis objetos de crítica do filósofo alemão, o Código Boliviano, foi descrito como uma imitação do Código Napoleônico e como um meio para Bolívar dar livre curso a suas inclinações para o poder arbitrário. Marx considera ainda que o Libertador se propunha, sob a etiqueta de "um novo código democrático internacional", converter a América inteira em uma república, tendo nele próprio seu ditador. Em outras palavras, reunir meio mundo sob o seu nome.
O polêmico artigo rendeu muitas controvérsias. Durante um longo período de tempo, historiadores soviéticos compartilharam o ponto de vista de Karl Marx. As guerras de independência latino-americanas foram negativizadas pela inibida e praticamente inexistente participação popular e pelo limitado caráter nacional; seriam apenas "um assunto próprio de um punhado de separatistas crioulos que não contavam com o apoio das massas populares". Em uma publicação de 1959, no entanto, na segunda edição em russo das obras de Marx e Engels, uma severa crítica à opinião sustentada por Marx foi incluída. Os editores creditaram a visão imparcial à suposta insuficiência de referências bibliográficas e à aparente ambição de Bolívar pelo poder pessoal. Essa hipótese, porém, foi descartada por estudiosos do artigo de Marx. Uma análise em seus métodos de pesquisa e em suas fontes bibliográficas revelaram que as referências não somente não criticavam Bolívar como, pelo contrário, eram amplamente favoráveis a ele. Ainda assim, algumas de suas citações, de fato, repudiavam o Libertador. As palavras de Marx causaram um mal-estar com Dana, editor da enciclopédia, que pediu esclarecimentos sobre as fontes. A questão permanece: o preconceito político presente no verbete não caracterizava a obra de Marx. Se ele, como se acredita, dispunha de fontes favoráveis a seu biografado, a nova pergunta que se coloca é por que as teria deixado, conscientemente, de lado.
Seria, assim, um erro histórico o sugestivo Socialismo bolivariano do século XXI? O movimento, encabeçado pelo agora falecido presidente venezuelano, Hugo Chavez, consolidou a tendência esquerdista na América Latina. Chavez se autoproclamava o encarregado de prosseguir com a missão de Bolívar em Terra. Via na figura de seu histórico compatriota o pilar necessário para a luta anti-imperialista. Reuniu, sob o ideário da integração política, econômica e social, países latino-americanos de cunho socialista. Foi precursor da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), que agrupa, além da Venezuela, países como Cuba, Bolívia e Equador. Baseado em uma política de distribuição de renda, reduziu drasticamente os índices de pobreza e analfabetismo de seu país. Disposto de uma rica reserva de petróleo e gás natural, empenhou-se em perturbar os Estados Unidos, tornando-se peça chave na geopolítica da americana.
A luta anti-imperialista dos países ditos bolivarianos veio acompanhada da ascensão de líderes sindicalistas, indígenas, camponeses e sandinistas, como no caso de Daniel Ortega da Nicarágua, à presidência de seus respectivos países. As políticas sociais e de distribuição de renda, acredita-se, vieram como consequência natural de um período de dura degradação das economias latino-americanas nas décadas de 80 e 90, associada à inserção no sistema neo-liberal, que aumentou as disparidades entre os mais ricos e os mais pobres no continente. De fato, o "Socialismo do século XXI" não dispõe de um embasamento teórico muito profundo, tendendo muito mais para um movimento espontâneo. As economias dos países latino-americanos são de mercado, e o caráter nacionalista é bastante semelhante aos modelos de Vargas, no Brasil, e de Perón, na Argentina. O melhor exemplo é a própria Venezuela chavista: a exploração do petróleo é nacionalizada, porém, 49% das ações é controlada por capital privado e, sobretudo, estrangeiro. Além disso, o poderoso país a quem Chavez se referia como seu maior inimigo, os Estados Unidos, são seus principais compradores de petróleo e fornecedores de manufaturados.
Por outro lado, é de se estranhar o fato de Marx não ter buscado se aprofundar na real dinâmica das lutas de classe. Talvez pelo ódio em relação ao autoritarismo bolivariano, ela não tenha percebido a agitação e atuação de diversos segmentos constituintes das nações latino-americanas em relação à independência: rebeliões camponesas e rurais contra as elites crioulas que dirigiam a revolução; negros e índios tendiam a seguir a causa dos espanhóis; diversidade entre as guerras de independência entre o sul, onde as elites urbanas mantiveram o controle do processo, e o norte, onde a independência começou , no caso do México, com uma revolta generalizada de camponeses e índios. Além disso, havia o temor de processos semelhantes ao liderado por Tupac Amaru e à revolução negra no Haiti. Alguns dos pilares de Bolívar compreendiam ideias básicas de Marx, como a formação de uma nacionalidade geograficamente extensa, capaz de fazer frente a qualquer potência econômica mundial.
Bolívar, de certo modo, procurou fazer na América espanhola o que a monarquia portuguesa faria no Brasil: centralizar o poder, que exerceria o mesmo papel da coroa espanhola. Como se sabe, o Libertador, contemporâneo de Napoleão Bonaparte, teve sua formação intelectual na Europa pós Revolução Francesa, com imenso contato com a literatura iluminista. Em sua obra, há diversas influências do liberalismo. Pertencente a uma minoritária nobreza, iniciou o movimento de independência pautado no temor às massas. Para Marx, a ideia de luta anti-imperialista era uma das vertentes do mito, já que trocaria o domínio colonial espanhol pelo domínio econômico britânico.
O fracasso de Bolívar se deu pela mesma classe social que o ascendeu. No final de sua vida, chegou a afirmar que a América era ingovernável e que o melhor a se fazer seria sair dela. A massa popular, para ele, tinha mais poder destrutivo do que construtivo. Acredita-se que sua forma de governo influenciou a literatura nazifascista, que postulava a necessidade de um único líder autoritário e arbitrário conduzir uma nação. De um lado, o herói, Deus, Libertador. De outro, um traidor ambicioso e oportunista. De um lado o símbolo da luta anti-imperialista. De outro, um ditador bonapartista. Por fim, a lição do bolivarismo é de que sempre foi difícil, para o povo latino-americano, ser sujeito de sua própria libertação.
A luta anti-imperialista dos países ditos bolivarianos veio acompanhada da ascensão de líderes sindicalistas, indígenas, camponeses e sandinistas, como no caso de Daniel Ortega da Nicarágua, à presidência de seus respectivos países. As políticas sociais e de distribuição de renda, acredita-se, vieram como consequência natural de um período de dura degradação das economias latino-americanas nas décadas de 80 e 90, associada à inserção no sistema neo-liberal, que aumentou as disparidades entre os mais ricos e os mais pobres no continente. De fato, o "Socialismo do século XXI" não dispõe de um embasamento teórico muito profundo, tendendo muito mais para um movimento espontâneo. As economias dos países latino-americanos são de mercado, e o caráter nacionalista é bastante semelhante aos modelos de Vargas, no Brasil, e de Perón, na Argentina. O melhor exemplo é a própria Venezuela chavista: a exploração do petróleo é nacionalizada, porém, 49% das ações é controlada por capital privado e, sobretudo, estrangeiro. Além disso, o poderoso país a quem Chavez se referia como seu maior inimigo, os Estados Unidos, são seus principais compradores de petróleo e fornecedores de manufaturados.
"Se de Rômulo, Roma, de Bolívar, Bolívia!"
"Sim: somente Deus tinha o poder para chamar essa terra Bolívia… Que quer dizer Bolívia? Um amor desenfreado de liberdade, que ao receber vosso arroubo, não vejo nada que fosse igual a seu valor."Karl Marx, em sua crítica, destacou a força geradora de mitos pela fantasia popular. De fato, o mito Simón Bolívar é bastante presente na América Latina. Até nome de pátria serviu como veneração a sua imagem. Não há grande cidade latino-americana que não destina algum logradouro público a sua memória. Hugo Chavez trabalhava sob a tutela de uma grande fotografia de seu maior herói em seu gabinete presidencial, no Palácio de Miraflores - em seus encontros diplomáticos, comumente presenteava algum chefe de Estado com uma réplica da espada de Bolívar. O bolivarismo, ao longo dos séculos, tornou-se uma doutrina política, que influenciou, inclusive, outras personalidades míticas do universo latino-americano. Dentre elas, o lendário guerrilheiro argentino Che Guevara. Após a Revolução Cubana, quando indagado sobre o ponto de vista de Marx, escreveu:
“Podem-se apontar em Marx, pensador e investigador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, certas incorreções. Nós, os latinos americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar... Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem, apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para demonstrar-nos que são humanos".No entanto, perante toda a influência de seu pensamento nas relações sociais e na história da humanidade, a análise de Marx não pode ser atribuída a um mero erro humano, como observou Che Guevara. O artigo introdutório do livro "Simón Bolívar por Karl Marx" menciona o aspecto da anistoricidade hegeliana como norteadora de sua análise: o filósofo alemão não conseguira identificar, sobretudo, uma luta de classes e uma sistematização lógico-histórica do contexto latino-americano da época, e a assombração do "povos sem história" era, segundo José Aricó, autor do artigo, o plano de fundo constante de seus argumentos. Ao analisar países europeus, diferentemente da América Latina, sempre conseguia indicar uma vitalidade própria e uma condição para gerar uma revolução plebeia, popular; cada país possuía o seu 1789. O Bolívar por Karl Marx, assim, era o herdeiro arbitrário e despótico da tradição político-estatal contra a qual Marx sempre lutou: a constituição civil da sociedade latino-americana, "de cima para baixo" foi bastante notável em sua reflexão. De modo algum Marx poderia aceitar um sistema político baseado na onipresença de um ditador.
Por outro lado, é de se estranhar o fato de Marx não ter buscado se aprofundar na real dinâmica das lutas de classe. Talvez pelo ódio em relação ao autoritarismo bolivariano, ela não tenha percebido a agitação e atuação de diversos segmentos constituintes das nações latino-americanas em relação à independência: rebeliões camponesas e rurais contra as elites crioulas que dirigiam a revolução; negros e índios tendiam a seguir a causa dos espanhóis; diversidade entre as guerras de independência entre o sul, onde as elites urbanas mantiveram o controle do processo, e o norte, onde a independência começou , no caso do México, com uma revolta generalizada de camponeses e índios. Além disso, havia o temor de processos semelhantes ao liderado por Tupac Amaru e à revolução negra no Haiti. Alguns dos pilares de Bolívar compreendiam ideias básicas de Marx, como a formação de uma nacionalidade geograficamente extensa, capaz de fazer frente a qualquer potência econômica mundial.
Bolívar, de certo modo, procurou fazer na América espanhola o que a monarquia portuguesa faria no Brasil: centralizar o poder, que exerceria o mesmo papel da coroa espanhola. Como se sabe, o Libertador, contemporâneo de Napoleão Bonaparte, teve sua formação intelectual na Europa pós Revolução Francesa, com imenso contato com a literatura iluminista. Em sua obra, há diversas influências do liberalismo. Pertencente a uma minoritária nobreza, iniciou o movimento de independência pautado no temor às massas. Para Marx, a ideia de luta anti-imperialista era uma das vertentes do mito, já que trocaria o domínio colonial espanhol pelo domínio econômico britânico.
O fracasso de Bolívar se deu pela mesma classe social que o ascendeu. No final de sua vida, chegou a afirmar que a América era ingovernável e que o melhor a se fazer seria sair dela. A massa popular, para ele, tinha mais poder destrutivo do que construtivo. Acredita-se que sua forma de governo influenciou a literatura nazifascista, que postulava a necessidade de um único líder autoritário e arbitrário conduzir uma nação. De um lado, o herói, Deus, Libertador. De outro, um traidor ambicioso e oportunista. De um lado o símbolo da luta anti-imperialista. De outro, um ditador bonapartista. Por fim, a lição do bolivarismo é de que sempre foi difícil, para o povo latino-americano, ser sujeito de sua própria libertação.
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