sábado, 23 de agosto de 2014

48h na Primavera Árabe

Pisar no Egito foi uma sensação fascinante. A História do país é sua própria grandeza: dentre todos os estados modernos, o Egito é um dos que possuí mais longa e contínua habitação, datada do 10º milênio a.C.. A dádiva do Nilo, rio que conferia ao território áreas férteis em meio ao clima seco e árido do Saara, desenvolveu, ao longo de três milênios, muitas das bases para a formação da humanidade. Como resultado, todo legado, sobretudo artístico e arquitetônico, instigou o imaginário de artistas, pesquisadores, exploradores e viajantes de todos os cantos do mundo.

Sem dúvida, as pirâmides de Gizé, harmoniosamente complementadas pela Esfinge,  são a mais perfeita síntese de todo misticismo acerca do Egito. Com efeito, minha visita resumiu-se às pirâmides, e delas consegui ter a impressão de todo o país.

Na semana que antecedeu minha viagem, a imprensa começou a relatar uma série de manifestações na capital Cairo. Eu jamais poderia imaginar que tais manifestações iriam se tornar, adiante, parte da onda revolucionária chamada de Primavera Árabe. O visto em meu passaporte crava a data de 24 de janeiro de 2011 como minha entrada no Egito. O aniversário da revolução é comemorado a cada dia 25. Quando cheguei ao aeroporto de Cairo, recordo-me de ter sido atendido por uma mulher na aduana, o que logo me causou uma boa impressão, já que se supõe que o trabalho feminino não é comum em regimes árabes. Seguindo em frente, encaminhei-me para a condução rumo ao hotel, onde tratavam de me tranquilizar quanto aos protestos e me desejavam uma boa viagem. Já era bem tarde. No dia seguinte eu realmente iria saber que a revolução não só era inevitável, como iminente.

Instalei-me nas proximidades das grandes pirâmides de Gizé, região afastada do centro de Cairo. Em meu primeiro dia completo no Egito, iria à Cidadela e ao Museu Egípcio, um dos mais notórios do mundo e famoso, especialmente, pela sala das múmias, com alguns dos mais poderosos faraós do Egito Antigo, como Ramses II e a Rainha Hatshepsut. Além disso, o museu inclui em seu acervo todos os exuberantes artefatos do faraó Tutankhamon. O empecilho à visita era o fato de ele se localizar na Praça Tahrir, icônica por ter sido o polo dos movimentos revolucionários. Era conveniente, assim, visitar as três grandes pirâmides do Egito.



Tal foi o momento sonhador, inspirador da viagem. As pirâmides são de tamanha grandiosidade, que descrevê-las torna-se uma tarefa trabalhosa e arriscada. Suas dimensões são absolutamente impressionantes; nada no mundo inteiro pode ser comparado a elas. Cada passo nas areias do Saara, com as pirâmides em vista, rendia uma oportunidade única de admirá-las por um novo ângulo, sob novas perspectivas. Tão estáticas quanto comoventes, trata-se da maior obra da humanidade, sobretudo quando são considerados os recursos tecnológicos disponíveis a época para sua construção. Suas formas e geometria perfeitas, que alcançam alturas inacreditáveis, aproximam o Homem da perfeição, do mundo celestial. A esfinge, por sua vez, impressiona por seu mistério, por sua origem desconhecida, pela simbologia de seu enigma; aquela que, se não decifrada, devora-te.



O lado bestial humano, em uma antítese à imagem divina das pirâmides, também estava presente naquele cenário. Violência, trapaças, subornos, em seus mais diversos âmbitos, eram práticas naturais ali. Quando entrei no sítio, sob a recomendação de não iniciar conversas com vendedores de lembrancinhas, logo me colocaram um turbante na cabeça. Tirá-lo sem perder alguns dólares não foi tarefa fácil. Tinha que desviar, a todo momento, desses numerosos vendedores, que, inclusive, me puxavam pelo braço. O policiamento ali era forte, porém sem propósitos. Em uma ocasião, me aproximei de uma pequena ruína. Perguntei ao guarda ali mais próximo se era permitido tocar e subir nas pedras. Com a resposta afirmativa, segui em frente. Lá de longe um outro guarda me mandava descer. Fiquei em uma encruzilhada de permissões, sob julgamento do poder arbitrário. Quando desci, o guarda que havia me liberado a passagem começou a me extorquir. Pedindo, inicialmente um dólar americano, exigia cada vez mais, repetindo que tinha uma família para sustentar. Em um outro momento, flagrei uma briga entre um desses guardas e um rapaz que aparentemente oferecia passeios em uma carroça puxada por um cavalo. A autoridade policial, representante do poder ditatorial, era ali confrontada de cabeça erguida pelo rapaz, que revidou as agressões sofridas. Era um indício da revolução.

Após a visita às pirâmides, fui ainda a um ateliê de arte em papiro, em que um artista, com um português fluente, ensinava-nos as técnicas de confecção. A tarde iria a um outro complexo de pirâmides. Contudo, recebi a notícia de que a Revolução egípcia houvera eclodido. Logo tive que retornar ao hotel, onde todos os portões foram fechados. Na rua, mesmo afastado do centro, já conseguia ver movimentação de forças militares. Pelo restante do dia eu não poderia mais sair do hotel. Em um dado momento, um acontecimento indicou a impossibilidade de permanecer no país por questões de segurança. Durante o almoço, no restaurante do hotel, uma forte agitação começou e todos receberam avisos de que deveriam ir para os seus respectivos quartos. Logo começou uma grande gritaria. Ninguém podia explicar o que estava acontecendo. Os seguranças do hotel corriam com espadas em mãos, e os cozinheiros do restaurante, com panelas.

Tenso e desnorteado, tranquei as portas do meu quarto, dirigi-me à janela e comecei a bolar rotas de fuga. Mais calmo, liguei a televisão e comecei a acompanhar, ao vivo, por canais de televisão locais e internacionais, todo o movimento na Praça Tahrir. Decidimos que deveríamos sair do país. Para agravar a situação, todos os meios de comunicação foram cortados, em uma tentativa do Estado de inibir a mobilização do povo. Passado um tempo, um rápido olhar pela porta entreaberta revelou a calmaria já restabelecida. Fora do quarto, todos os hóspedes procuravam entender o que estava acontecendo. Em conversas no saguão de entrada, uma inglesa afirmou que para brasileiros tal situação não deveria ser muito assustadora, já que supostamente nos deparávamos com conflitos similares quase todos os dias. Confinados no hotel, hóspedes mulheres reclamavam de assédios de um funcionário. Dono de uma loja, o senhor as bajulava e depois as chamava para conhecer seus produtos. Era quando, mesmo em um hotel com grande circulação de ocidentais, o senhor aplicava uma prática aceitável no mundo árabe e tentava agarrá-las a força. Conseguimos marcar com um taxista uma ida ao aeroporto de Cairo na manhã seguinte, antes do horário da reza, já que somente após o rito as manifestações começavam. Sem meios de comunicação disponíveis, a única possibilidade de tentar sair do país se baseava nos contatos pessoais.

Passei o restante daquele dia na varanda da piscina do hotel, admirando a beleza das pirâmides. Era um momento de paz perante o clima de guerra civil.



Assim, saí bem cedo do hotel em direção ao aeroporto. O percurso, bem longo, foi a única oportunidade de conhecer as entranhas de Cairo. No caminho, havia muita movimentação de forças armadas e avenidas fechadas. Impossibilitados de seguir o trajeto conveniente, pelas vias principais, meu taxista, com muita destreza, traçava rotas alternativas. Passamos por um lixão, com habitações precárias e pessoas fazendo daquilo um meio de vida. Com a riqueza de todo o país concentrada nas mãos de um ditador, pude ver a miséria de perto. Do carro, avistei também a Citadela, imensa construção que funcionou como sede do governo egípcio por 700 anos. Já perto do aeroporto, passei ainda em frente à mansão de Hosni Mubarak - ditador que seria deposto-, extremamente luxuosa e policiada.

A multidão e as bagagens dignas de uma viagem de vinte dias pelo Egito dificultavam a locomoção no aeroporto. Muita gente e pouca informação. Havia filas imensas por todas as partes. Procurava chegar ao guichê da Ibéria, companhia aérea que nos levaria a Madri após o tempo previsto de estadia no Egito. Entre uma parada e outra, surgiam possibilidades alternativas de sair do país: uma delas seria ir de ônibus à Tel Aviv, em Israel, a cerca de 700 km dali. Uma rota que passaria próximo à Faixa de Gaza. De certo modo, experienciei o drama de refugiados de guerra e me sentia como um.

Mais tarde chegou a notícia de que aviões ianques estavam a caminho para retirar os estadunidenses do Egito. Enquanto isso, eu ainda não sabia o que iria acontecer. No final da tarde, fui a um hotel próximo ao aeroporto, também lotado e bastante confuso. Eu e minha família conseguimos um quarto pelo dobro do preço e em que não cabia todos nós quatro. Ainda sem respostas da Ibéria, foi necessário gastar uma madrugada no aeroporto. Dali para frente, entre muita briga, tensões, comunicados importantes em árabe, e tréguas para reza, entramos em uma lista de espera para um voo rumo a Madri. Despertamos bem cedo e ficamos à espreita. Sem mais sustos, conseguimos vagas para o voo, que saiu na tarde daquele dia. Do avião me despedi de Cairo e vi as pirâmides pela última vez. Chegamos a noite na Espanha. Na saída do voo, a imprensa espanhola compareceu em peso para documentar relatos dos primeiros espanhóis foragidos do Egito.

Os conturbados dias no Egito me provocaram uma ambiguidade de sentimentos. Todo meu entusiasmo em chegar ao país foi convertido em necessidade de deixá-lo. Foi com muito pesar que entrei naquele avião em direção à Espanha. Optei por olhar o lado positivo do acontecimento e atingi certo conforto. Vivi um momento singular, que marcou minha vida, a História do Egito e a da política internacional. Vi um povo pobre e explorado se mobilizar espontaneamente por uma causa comum, pela cabeça do ditador. Vi a Revolução de dentro, de onde poucos no mundo poderiam ter visto. Já no Brasil, no dia 11 de fevereiro, Hosni Mubarak foi deposto. Uma renovação de esperança para o povo egípcio, que sofreu com a violação de direitos humanos durante longos anos. Nunca mais fui o mesmo depois daquele episódio. Do Egito, trouxe em minha bagagem uma estatueta das pirâmides e histórias para a vida inteira.





Três anos depois, a Revolução ainda não triunfou completamente. Logo após a renúncia de Mubarak, uma junta militar assumiu o poder e custou a realizar as primeiras eleições livres no país após mais de trinta anos. Concomitantemente, mulheres reivindicavam mais direitos. Ascendeu ao governo a Irmandade Muçulmana , que, após um ano sem cumprir suas promessas e em meio a novos protestos populares, foi deposta por militares, no que se configurou em golpe de Estado. Desde então, militares e a Irmandade Muçulmana estão em lados opostos e a violência perdura no país.

Segue uma compilação de vídeos gravados durante minha rápida estadia no Egito. Depois de muito tempo resolvi revê-los e surgiu a inspiração para esse relato. Com as imagens de minhas lentes embaçadas, consegui refazer todos os meus passos no país. Pude registrar parte do percurso do hotel ao aeroporto, a confusão lá instalada, a imprensa em Madri e, claro, minha passagem pelas pirâmides. Em diversos momentos, me limitei a gravar por medo. Na minha primeira tentativa de filmar um foco de briga, apontaram em minha direção com silhuetas pouco amistosas. Vi que era preciso ter cuidado em um mundo completamente diferente do meu. Qualquer pequeno acontecimento parecia pretexto para iniciar brigas entre árabes, que, de modo bastante espalhafatoso, discutiam em um idioma totalmente incompreensível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário