domingo, 20 de setembro de 2015

O Monte

Essa viagem começou há muito tempo, em sonhos, do desejo de chegar a lugares onde poucos chegam. Também do desejo de chegar aos extremos do meu país e do meu planeta, de conviver com a natureza selvagem, com espécies exóticas e bem selecionadas para habitar ambientes inóspitos. Sonhos em que eu era apenas um andarilho atrás de um mundo perdido, uma terra prometida, localizada um pouco a norte do fim do mundo.

Chegar ao paraíso, contudo, é uma tarefa árdua. A força que nos move é tão pouco os músculos de nossas pernas e o desejo de ir adiante. Devemos ser capazes de suportar nossa própria presença, de compreender o dia pela luz do sol, e a noite pelo ciclo das estrelas. Dormimos por noites seguidas no chão duro, e carregamos tudo o que é preciso sobre nossas costas. Não  há muitos espaços para luxos, ao passo que não precisamos de muito para nos sentirmos livres.


O destino foi o Monte Roraima, lugar em que senti ser necessário estar. Segundo a mitologia pemón, o monte era o tronco de uma árvore que fornecia todos os bons frutos. A árvore, porém, era sagrada e ninguém podia tocá-la. Quando o dia amanheceu com a árvore cortada, a natureza revoltou-se e, em seu lugar, surgiu o Monte Roraima, sagrado para todos os índios da região, que o julgam a mãe de todas as águas, protegido pelo espírito de Makunaima. Acreditam que até hoje o monte chora pela violação do passado; quando há trovoadas e tempestades, significa que Makunaima foi contrariado e está a castigar alguma tribo.

Uma das formações geológicas mais antigas do planeta, o monte conta nossa história desde o princípio. Erguido há cerca de 2 bilhões de anos, ele presenciou a formação dos continentes, dos oceanos e da atmosfera. Viu eras glaciais, superaquecimentos, vulcões nascendo e morrendo. Também viu o surgimento do DNA, viu seres vivos migrarem da água para a terra e o primata virar homo sapiens. Conheceu a pedra polida, a pedra lascada, a imprensa de Gutenberg e a máquina a vapor de Watt. Viu a amazônia surgir aos seus pés, e o maior rio do mundo escorrer em seu quintal. Descobriu que vivia na América e que existiam pecados. Viu as sagas de Cristo, Buda, Moisés e Maomé. Viu conquistas, reconquistas e genocídios; viu a América virar católica.

Lá é onde a vida começa. A água que vem do céu e escorre pelas nossas costas é a mesma que enche rios e mares, e a mesma que está disponível, limpa e em abundancia, para todos. Assim como a semente que espera a água da chuva para brotar do solo, aprendemos a viver do que a natureza nos dá. Banhamos-nos em rios, cedemos nosso sangue aos mosquitos, caminhamos com as nossas próprias pernas, olhamos o monte adiante e nos atentamos à presença de serpentes no caminho. Ouvimos o canto dos pássaros e o som do vento. Do mesmo modo como querermos sempre nos manter vivos, tomamos cuidado com todas as formas de vida que surgem em nosso caminho.





O prazeroso desconforto de dormir em um acampamento aguça nossos sentidos. Imaginamos tanta coisa que se torna difícil distinguir os momentos de sono dos momentos de divagação consciente. Difícil mesmo é parar para pensar que estamos em nosso próprio planeta Terra. O topo do Roraima tem uma beleza sem igual; talvez possa ser comparado apenas à superfície de planetas que ainda nem foram descobertos pelos humanos. O terreno é irregular, com diversas subidas e descidas, e a natureza é extraordinária, formando um verdadeiro mundo à parte. O alto índice pluviométrico formou cavernas e crateras. Os nutrientes que faltam ao solo rochoso é compensado pelos insetos na dieta das diversas plantas carnívoras que ali abitam. O monte se dá ao luxo de dispor de um vale de cristais, com diversas formações bipiramidais de quartzo, que esbranquiça e embeleza o cume. A fauna é endêmica, e espécies que vivem ali não vivem mais em lugar nenhum. Anfíbios e aves foram os que melhor se adaptaram a viver sob tão extremas condições. Há quem jure, ainda, já ter visto seres fantásticos, com cabeça de pássaro e corpo de lagarto.    

No páreo dos 2800 m de altitude, em um terreno mais antigo que os Andes e o Himalaia, estamos acima das nuvens e nos sentimos no topo do mundo. Acima de nós, somente o céu. Abaixo, apenas a imensidão das matas intocadas da Gran Sabana. O monte que marca a fronteira tripla entre Brasil, Venezuela e Guiana, na verdade, não tem nação; maior que qualquer sentimento nacional, o monte vive de lendas, folclore e misticismo. Os exotéricos afirmam ser ali um lugar bastante propenso às boas energias. É, como indicam as placas na BR-174, a terra de Makunaíma. Índios Macuxi contam que, no topo do Roraima, nasceu, do encontro do Sol com a Lua, Makunaima. Ele era o único ser que podia tocar na árvore de todos os frutos, dividindo sua colheita igualmente entre todos os seus iguais. Essa farta árvore despertou a ambição e a inveja em alguns corações da tribo, que foram até a árvore colher seus frutos para tentar replantá-la em outras localidades. A árvore morreu e Makunaima ficou furioso, transformado a floresta em pedra. O mesmo Makunaima, herói do povo Macuxi, teria inspirado Mario de Andrade a criar  "Macunaíma", nosso herói sem caráter, cujo grande corpo contrasta com a pequena cabeça.




Após seis dias e cinco noites vivendo sob a tutela do Monte Roraima, estava exausto e com o espírito renovado. Podia contar uma bolha na ponta de cada dedo dos meus pés. Já estava habituado a carregar uma mochila de 10 kg, de modo que tinha dificuldades em me equilibrar sem ela. Minha perna doía de cima a baixo, e minhas costas estavam castigadas pelas noites de campanha. No fim da descida, enquanto minha dor física dialogava com minha revigorada saúde espiritual, Roger, o indígena guia de nossa expedição, falava que gostava tanto da civilização - pois podia beber cerveja - quanto do mato - onde podia permanecer em paz . Eu, com pouco fôlego, só pude dizer: 

estoy cansado pero feliz



sábado, 19 de setembro de 2015

Esse país é o meu país

No Brasil existe um lugar que fica no hemisfério norte, onde se canta o Hino Nacional, onde grande parte da população tem feições indígenas, onde o garimpeiro é herói e o taxista é garimpeiro. Nesse lugar existe a savana, a floresta amazônica e grandes plantações de soja. Os habitantes mais velhos ainda vivem em Território Nacional, não em uma Unidade Federativa. Ajudaram a construir o Brasil, a povoar os extremos de nosso território. O país termina ali, onde fica nosso ponto mais setentrional. 

Em 15 de novembro de 1889 a estrela de Roraima ainda nem sonhava em brilhar no céu do Rio de Janeiro, a capital nacional. Hoje, Boa Vista celebra, em um mesmo monumento, o índio, o fazendeiro e o garimpeiro, as vertentes que povoaram o miscigenado estado, isolado pela sua própria localização. O estado com a menor população, menor densidade demográfica e menor número de municípios, é um dos que mais tem territórios indígenas demarcados. A maioria de seus poucos quinze municípios têm nome com raízes indígenas. As rodovias federais e estaduais não podem ser trafegadas a qualquer momento do dia. Por cruzarem reservas indígenas, seu trânsito é controlado de modo a não incomodar aqueles que primeiro abitaram ali, desde muito antes da colonização.

O grande encanto de Roraima é, certamente, poder ver o Brasil sob uma ótica ímpar. De um território que no passado foi motivo de disputa entre colonizadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses - em busca de índios para serem vendidos como escravos - ao território esquecido e pouco assistido ao logo da formação histórica do nosso Estado Nacional, Roraima parece ainda procurar sua afirmação cultural. A região foi apenas notada quando o ouro começou a aparecer por lá, atraindo uma grande leva de migrantes, sobretudo, nordestinos. Os impactos sociais e ambientais foram grandes, e o conflito de interesses pela terra persiste até hoje. Pelas ruas, não é difícil encontrar pessoas, inclusive jovens, que vêm de outras partes do Brasil. Entre homens mais velhos, não raramente, foram garimpeiros migrantes. A identidade roraimense ainda está em formação.

Marcando a fronteira brasileira com a Venezuela e a Guiana, essa região de veias abertas é um produto da ambição humana, que insiste em criar definições para tudo. Mesmos grupos étnicos indígenas, como o Pemon e o Yanomami, pertencentes a este ou aquele país, estão separados por um posto de fronteira, algumas dezenas de homens fardados, duas bandeiras nacionais e uma linha imaginária, desenhada sobre o pedaço de terra que chamamos de América do Sul. A capital Boa Vista está a 190 km da fronteira com a Venezuela, e a 130 km da com a Guiana. De fato, como afirmou Eduardo Galeano, o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes; enquanto que no interior da Venezuela os índios têm sua cultura mais bem preservada, inclusive conversando entre si em línguas nativas, no Brasil, local economicamente mais desenvolvido, eles vão, timidamente, às ruas reivindicar por seus direitos, preteridos em nome da pátria.

Qual é, afinal, a diferença entre estar deste ou daquele lado da fronteira?


Desci de um ônibus vindo de Boa Vista com direção à cidade de Bonfim, lado brasileiro da fronteira com a Guiana. Diante de mim, um pátio deserto e uma placa indicando que a Guiana estava logo em frente, depois do Rio Tacutu. Uma extensa ponte, que, em uma manobra de engenharia, trocava o sentido de direção para se adequar à mão inglesa, utilizada na antiga colônia britânica, podia ser transitada livremente. Após atravessá-la a pé, ouvi pessoas conversando em inglês e em línguas incompreensíveis para mim. Em Lethem, a cidade guianesa, circulavam reais e dólares guianeses. Havia grupos rastafáris ouvindo reggae, negros, comerciantes hindus, mulheres inteiramente cobertas de burca em pleno sol equatorial e chineses trabalhando nas muitas lojas.

O simples atravessar de fronteira foi determinante para que a população local se comunicasse na língua de seu respectivo colonizador europeu. Contudo, as semelhanças entre Lethem e Bonfim são muitas: ambas compartilham do isolamento em relação aos seus países. Brasileiros, sujeitos a altas taxações comerciais, vêm de longe para fazer compras em Lethem, onde encontram produtos a preços baixíssimos. Do outro lado do Rio, os impostos são menores porque alguém definiu assim. O que se compra, no entanto, é o mesmo - se a Receita Federal permitir que os produtos entrem no Brasil. Também me surpreendeu que fronteiras, ainda hoje, são motivo de disputa entre países irmãos. A Venezuela reivindica para si mais da metade do território da Guiana, formando o que seria a Guiana Essequiba. Na Venezuela, os mapas incluem tal região como "Zona em Disputa" ou, em melhores palavras, "Zona em Litígio".

Pouco tempo depois de me estabelecer em Boa Vista, fui caminhar pela cidade, planejada em forma de leque, em que todas as largas avenidas convergem para o centro cívico - praça em que fica a sede dos três poderes. Ao me aproximar do monumento do garimpeiro, localizado bem ao centro da praça, fui surpreendido pelo desabafo de um indígena macuxi: com o olho esquerdo consumido por uma catarata, ele, apontando para mim, me acusou como culpado pela sua difícil condição de vida. Com sua sanidade afetada, ele mal conseguia se expressar, mas sua mensagem, até que sua fala fosse interrompida pelo pranto, foi transmitida a mim de um modo bem claro. Eu era o branco opressor, que vinha para Roraima me apropriar de algo que pertence aos índios. De certo modo era verdade. Foi um tapa na cara, que, ao menos, me fez lembrar das dores dos índios que vivem em nosso país. No sudeste, é difícil lembrar que eles existem e fazem parte de nós brasileiros.

Caminhos de Roraima



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A Índia, o Fim e o Meio

"A Índia é o único lugar do mundo onde um homem pode fazer o que desejar sem ninguém perguntar por quê"
Rudyard Kipling
Há experiências que mudam sua vida de modo irreversível. Respirar ares indianos e beber o máximo possível de sua cultura é certamente uma delas. Desde os princípios da estadia no país já sofremos uma forte pancada, cujas dores demoram para se cessar. Ficamos, assim, desnorteados, sem saber o que dizer, procurando resgatar a estabilidade para poder reorganizar as ideias. Testemunhamos o inimaginável, não compreendemos nossas semelhantes formas humanas, regidas por princípios totalmente diferentes dos nossos. Queremos fazer parte daquela bagunça, daquela mistura, mas sentimos medo. 

Buscamos os livros, as enciclopédias eletrônicas, tentamos aprender pelas escrituras. Difícil. Para compreender a Índia é essencial que tomemos coragem, saiamos pelas ruas, conversemos com a população, troquemos valores, vivamos como indianos. Devemos comer da sua comida, gostar da ardência do tempero picante, descalçar os pés para entrar em seus templos, ouvir mantras, fazer ioga, arranhar um som na cítara, pegar ônibus públicos, tuk-tuks, trens, dizer Namastê, bradar um Om, juntar as palmas das mãos e reclinar o corpo, falar hindi, oferecer pétalas de flores ao Ganges, ter cuidado com as vacas nas ruas, ir ao cinema ver um filme de Bollywood. 

A Índia está em grande movimento, e comecei a entender o país prestando atenção em suas relações de trânsito, mais familiar para mim. Ali tudo é da lei e cada um parece fazer o que quer. Vê-se de tudo e dos mais variados meios de transporte. As vias são compartilhadas por veículos animados, de propulsão humana e motora, em proporções semelhantes. O barulho é intenso, a buzina parece um elemento cultural e é usada sem moderação; não se ultrapassa sem buzinar. O uso que sobra à buzina falta aos retrovisores. Carros fecham seus espelhos e se espremem em qualquer pedaço de rua. Em duas faixas de rolamento cabem três carros, e em uma cabem dois. As convenções do trânsito não são claras ao olhar estrangeiro, mas existem. Percebe-se um tipo diferente de educação, de modo que, em uma rápida troca de olhares e em poucas palavras, cada um sabe a sua vez de parar ou prosseguir. A pouca quantidade de acidentes diante daquela confusão impressiona, apesar de surgirem vidros quebrados e carros amassados a granel. Segue-se a mão inglesa, mas não muito rigorosamente. Veículos andam na contra-mão, fazem retornos e manobras improváveis, sobem calçadas. Semáforos existem, mas são raros. Para atravessar a rua, devemos ser cooptados pela agitação e entrar no jogo de olhares. Em plena rodovia de alta velocidade, caminhões, vez ou outra, trafegam em direção contrária. É uma aventura. O movimento precisa ser registrado - eu ainda descobriria que o trânsito diz muito sobre a cultura indiana.        







A Índia é também um lugar de contrastes. Do moderníssimo aeroporto de Nova Delhi para a desordem do trânsito; do caos e do barulho das ruas densamente povoadas, para a paz e silêncio dos templos. Para a fala mansa da população, para o carinho com as crianças e com os mais velhos, para a silenciosa e compenetrada busca pela prosperidade via meditação, para as formas perfeitas da arquitetura. Frequentamos aeroportos que não anunciam voos por alto-falantes a fim de preservar o silêncio. Passamos pela tolerância religiosa e pela religiosidade extremamente presente na vida dos indianos. Multidões muçulmanas, hindus, budistas, jainistas e cristãs convivem sob o mesmo espaço. Exaltamos a mistura. As ruas, com o tempo, tornam-se mais convidativas. A religião nos faz sentir mais seguros. Acredita-se que o visitante deve ser sempre bem recebido. Ainda assim, estamos sempre sujeitos aos olhares vidrados igualmente curiosos dos indianos.

Contrastes são, do mesmo modo, evidentes quando comparamos a riqueza do passado e do presente com a sujeira e miséria das ruas. Conseguimos compreender o porquê de a Índia ter sido, ao longo dos séculos, objeto de desejo do imperialismo europeu e, ainda hoje, viver sob o imaginário de todo o Ocidente. A arte e o conhecimento estavam concentrados nesse extenso pedaço de terra, um legítimo subcontinente, limitado ao norte pelos Himalaias, a leste pela Baía de Bengala e a oeste pelo Oceano Índico. Fortes e palácios são grandiosos e ostensivos. A tapeçaria, a pintura, as artes em geral, as cores, os jardins, a harmonia das construções, as onipresentes imagens de deuses, a culinária e as especiarias compõem as maravilhas do país. Hoje a economia é gigante, e a Índia desponta como um dos pilares do desenvolvimento tecnológico no mundo. Por outro lado, a desigualdade social atemoriza até nós brasileiros, infelizmente habituados a esta condição degradante da natureza humana. Nas vias de Nova Delhi, plena capital, vemos uma imensidão de habitações extremamente pobres, e temos dificuldade em encontrar uma região que se configure como um polo desenvolvido como no padrão ocidental. Precisaríamos ir bem a fundo no Brasil para encontrar condições parecidas de pobreza extrema em larga escala. A impressionante população, de aproximadamente 1,2 bilhão, não tem muita noção de higiene e nos deparamos com todo o tipo de poluição. Há muito lixo nas ruas, bem como nos transportes públicos. Surpreendentemente, o cheiro não é tão ruim diante de toda a sujeira. Sobre rios de lixo, trafegam pessoas, porcos, cachorros, vacas e macacos. Na maioria das vezes, estão atrás de comida.  











Após algum tempo, descobrimos que todas as voltas que demos, todas as tonturas que sentimos, são, na verdade, o caminho de um espiral, que nos leva cada vez mais alto. De repente, mudamos nosso olhar sobre a vida e não sentimos mais vertigem. Envolvemos-nos com os indianos, somos convidados a entrar em suas casas, a tomar chá, somos contagiados pelos sorrisos das crianças e começamos a sorrir como elas. Dos casebres, elas surgem, aos montes, nos estendendo a mão para que a apertemos. Depois, acenam para se despedir. Também querem aprender com nossa cultura, com nossos gestos. A grande maioria dos indianos depende dos estrangeiros para compreender o planeta em que vivemos. Um taxista ficou absolutamente incrédulo ao saber que, em janeiro, é verão e faz calor na outra metade do mundo, no hemisfério sul - afirmava, com muita propriedade, que janeiro é mês de inverno. Já os mais bem abastados pediam para tirar foto conosco em seus modernos smartphones. Acostumamos-nos aos olhares curiosos, à indiscrição, aos indianos que se aproximam para ouvir nossas conversas ou ler o que estamos lendo, ao barulho e cheiro das ruas.

Achar banhos quentes não é tarefa fácil, mesmo em hotéis nobres. Além disso, baldes e canecas para banho são mais comuns do que chuveiros. Os dias sem banho, de pele oleosa e mal cheiro nos deixa mais humildes e menos vaidosos. As preferências mudam. Tornamos-nos menos materialistas em face da fé hindu e do equilíbrio espiritual. No lugar em que homens santos abdicam de todos os bens materiais e dos desejos ilusórios para viver de esmolas, atinge-se a paz de espírito mesmo diante de tanta pobreza e condições precárias de higiene. Entendemos melhor, afinal, o significado da paz - um dos preceitos mais fundamentais da sabedoria indiana - e da não-violência de Mahatma Gandhi. A suástica, que aqui é amplamente evocada em homenagem aos deuses, foi utilizada na Europa como símbolo de uma das maiores atrocidades da humanidade. É um contraponto ingênuo, mas interessante. De fato, nós do Ocidente temos muito a aprender com a Índia e o Oriente.












Abro um jornal e vejo diversos anúncios de matrimônios nos classificados. Procura-se noivos e esposas em uma série de categorias, como religião, casta, divorciados e viúvos. Geralmente era o patriarca da família que oferecia a mão da prole em casamento. Nos anúncios havia uma breve descrição física dos pretendidos, altura, peso, nível de escolaridade, ano de nascimento - algumas vezes o dia e a hora também - e um e-mail para troca de fotos. Em Jaipur, tive a oportunidade de conversar com uma moça que afirmava ter dois namorados: um de amor e um da família. O de amor era aquele por quem se apaixonou; o de família, o que os pais escolheram para buscar uma aliança. Segundo ela, uma união com o último seria improvável, uma vez que ele seria um homem sério e nervoso, enquanto ela, alegre, que gosta de cantar e dançar. Disse que o namorado de amor, independente de casta, era melhor para sua felicidade, todavia pior para sua família. O consenso que chegou foi de que sua família escolheria o noivo, mas dependeria de sua aprovação.

Tais são as mazelas de uma sociedade extremamente tradicional e patriarcal. Visitei casas em que as mulheres eram impedidas de sair e trabalhar pelos maridos. Vi pessoas se contorcendo para não esbarrar em outras, mal vestidas, provavelmente intocáveis, as castas mais baixas do hinduísmo. Percebi que as relações interpessoais são como o trânsito do país. A suposta intocável parecia não se incomodar com o desprezo dos demais e continuou calmamente seu caminho pela rua. Trata-se de um jeito diferente de compreender o espaço pessoal, de estratificar a sociedade. Apesar de as castas serem segregadoras, parece haver certo conformismo e tolerância entre elas, com cada um sabendo de suas atribuições sociais. Cabe a eles acreditar que serão reencarnados em castas mais altas. O sistema de castas foi abolido oficialmente na Constituição de 1950, contudo a maioria dos indianos não se atreve a rebelar-se contra sua religião e ignorar os deveres que os deuses lhe atribuíram.


Após refazer o caminho das Índias, de Alexandre, o Grande, São Tomé, Marco Polo, Vasco da Gama, São Francisco Xavier, Hermann Hesse e George Harrison, também pude, ao meu modo, recolher riquezas, buscar inspirações, procurar novos caminhos, explorar e ensinar. Em 26 de janeiro, dia nacional da república indiana, eu e mais um grupo de estrangeiros fomos convidados pelo senhor síndico do bairro em que estávamos morando para a cerimônia de celebração à bandeira e ao hino nacional. Em seu discurso, exaltou os esforços de Gandhi e reforçou a importância do dia para os indianos, que foram dominados e explorados pelo império britânico durante cerca de trezentos anos. Explicou as cores da bandeira e os símbolos nacionais. Para nós, estrangeiros, deixou um precioso recado: saiam de seus quartos e andem pelo nosso bairro, Jai Jawan Colony II. Queremos aprender com vocês e esperamos poder lhes ensinar alguma coisa. Depois, chamou um de nós ao palanque para contarmos algo sobre nosso país, para que cantássemos alguma canção. Tomei coragem e fui. Consenti com o fato de sermos vítimas do imperialismo europeu e agradeci, em nome da espécie humana, todas as contribuições do conhecimento indiano para a humanidade. Com a bandeira indiana em mãos, cantei o meu hino nacional, ouvido de pé por todos. Recebi um abraço do senhor e ouvi dele que Índia e Brasil são nações irmãs. No final daquele dia, tomamos um chá em sua casa. Foi a pérola que faltava à minha estadia na Índia.

Em algum momento entre uma viagem montado em um camelo e em um elefante, entre um trem lotado e um ônibus público, na estrada entre Agra e Varanasi ou entre um tuk-tuk e um rebanho de ovelhas, percebi que todas as marcas das pancadas que sofri ao desembarcar na Índia haviam se cicatrizado. Agora elas se manifestavam por todo meu corpo e em minha alma. Faziam parte do meu novo eu e jamais sairiam de mim.

Nunca foi tão duro ter que deixar um país. Saí, contudo, com a certeza de que voltarei logo. Ao lugar onde a ordem lógica é invertida, o início, o meio e o fim são simultâneos, resta-me apenas dizer até breve. De volta à terra natal, recorri, pois, aos livros, para continuar a aprendizagem com a sabedoria hindu. No conforto do lar e com o distanciamento de milhares de quilômetros, pude voltar a me concentrar em uma leitura.


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Ir devagar, chegar longe

A vista de dentro


Na estrada estamos em constante contato com um dos melhores prazeres da vida: a paz e o silêncio de nossa própria consciência. Divertimos-nos com o mundo e com os pneus dos carros girando, com as árvores passando depressa, com a cor do céu mudando, assim como os sons da rua ou de nossos fones de ouvido. Não temos pressa, ocupamos nosso tempo pensando no quão fascinante é se deslocar por terra; ter uma passagem e apenas ir. Observamos todas as formas de vida que surgem e somem deixando apenas uma primeira impressão. O tempo e o espaço se demonstram relativos: os carros em sentido oposto passam como relâmpagos, enquanto que, em nossa direção, ultrapassamos e somos ultrapassados quase que sem perceber.

No Nepal, pegar a estrada é uma experiência singular. O país é pequeno e as distâncias são curtas. No entanto, a geografia montanhosa, somada a intensa atividade rural no interior, tornam as velocidades médias baixas e as viagens longas. Aos pés do Himalaia, as estradas são sinuosas, estreitas e andamos por dentro das nuvens, em longos trechos de neblina. Uma viagem de 160 km pode durar cerca de 6h. As vidas rural e urbana são muito próximas, de modo que as rodovias desempenham um papel importante na vida dos nepaleses, que têm suas atividades adequadas à beira da estrada.

Para dirigir aqui é necessário muita perícia e coragem. As vias são apertadas e em diversos pontos não há espaço sequer para dois carros. Desvios para um acostamento arenoso e pedregoso são frequentes e necessários. Subimos e descemos montanhas beirando precipícios, protegidos apenas por pequenas pedras que funcionam como guias protetoras e que, contudo, não nos oferecem muita segurança. Além disso, em plena rodovia nacional, o trânsito é compartilhado por crianças disciplinadamente uniformizadas caminhando para a escola, agricultores carregando sua colheita como podem, pastores guiando seu rebanho, famílias inteiras sendo carregadas em uma moto, filas de caminhoneiros cruzando o país, ciclistas indo de uma vila a outra, pescadores vendendo sua pesca.

Os rios vindos do Himalaia mostram os caminhos de menor declive pelas montanhas, e a estrada segue o curso das águas. A natureza surge nas mais variadas e belas formas. As montanhas vão tocando o céu, enquanto árvores nos afunilam em verdadeiros túneis naturais. Picos nevados aparecem aos poucos e timidamente. Crianças passam com seus igualmente juvenis cabritos, e a mãe galinha protege seus pintinhos sob suas asas. Até o que não tem vida passa a ter: caminhões coloridos trazem um revigorante ânimo às estradas. Fantasiam-se com símbolos e deuses hinduístas; são atrações à parte. Amontoam-se em postos de venda de enfeites e se vestem como se fossem para um encontro romântico.

Nesse fervedouro de cores e vida, o tempo para. A frase mais comum nos para-choques dos caminhões é "Slow drive, long life". Nenhuma outra poderia ser mais adequada. Anda-se devagar, mas sem se adiantar à ordem natural, ao tempo da natureza. As rodovias do Nepal têm vida própria e sempre nos convidam, com um imenso sorriso, a fazer parte de seu organismo. Não por acaso, os nepaleses são exemplos de simpatia, paciência e gentileza. Não tenhamos pressa. Por que não fazemos na estrada?