terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Ir devagar, chegar longe

A vista de dentro


Na estrada estamos em constante contato com um dos melhores prazeres da vida: a paz e o silêncio de nossa própria consciência. Divertimos-nos com o mundo e com os pneus dos carros girando, com as árvores passando depressa, com a cor do céu mudando, assim como os sons da rua ou de nossos fones de ouvido. Não temos pressa, ocupamos nosso tempo pensando no quão fascinante é se deslocar por terra; ter uma passagem e apenas ir. Observamos todas as formas de vida que surgem e somem deixando apenas uma primeira impressão. O tempo e o espaço se demonstram relativos: os carros em sentido oposto passam como relâmpagos, enquanto que, em nossa direção, ultrapassamos e somos ultrapassados quase que sem perceber.

No Nepal, pegar a estrada é uma experiência singular. O país é pequeno e as distâncias são curtas. No entanto, a geografia montanhosa, somada a intensa atividade rural no interior, tornam as velocidades médias baixas e as viagens longas. Aos pés do Himalaia, as estradas são sinuosas, estreitas e andamos por dentro das nuvens, em longos trechos de neblina. Uma viagem de 160 km pode durar cerca de 6h. As vidas rural e urbana são muito próximas, de modo que as rodovias desempenham um papel importante na vida dos nepaleses, que têm suas atividades adequadas à beira da estrada.

Para dirigir aqui é necessário muita perícia e coragem. As vias são apertadas e em diversos pontos não há espaço sequer para dois carros. Desvios para um acostamento arenoso e pedregoso são frequentes e necessários. Subimos e descemos montanhas beirando precipícios, protegidos apenas por pequenas pedras que funcionam como guias protetoras e que, contudo, não nos oferecem muita segurança. Além disso, em plena rodovia nacional, o trânsito é compartilhado por crianças disciplinadamente uniformizadas caminhando para a escola, agricultores carregando sua colheita como podem, pastores guiando seu rebanho, famílias inteiras sendo carregadas em uma moto, filas de caminhoneiros cruzando o país, ciclistas indo de uma vila a outra, pescadores vendendo sua pesca.

Os rios vindos do Himalaia mostram os caminhos de menor declive pelas montanhas, e a estrada segue o curso das águas. A natureza surge nas mais variadas e belas formas. As montanhas vão tocando o céu, enquanto árvores nos afunilam em verdadeiros túneis naturais. Picos nevados aparecem aos poucos e timidamente. Crianças passam com seus igualmente juvenis cabritos, e a mãe galinha protege seus pintinhos sob suas asas. Até o que não tem vida passa a ter: caminhões coloridos trazem um revigorante ânimo às estradas. Fantasiam-se com símbolos e deuses hinduístas; são atrações à parte. Amontoam-se em postos de venda de enfeites e se vestem como se fossem para um encontro romântico.

Nesse fervedouro de cores e vida, o tempo para. A frase mais comum nos para-choques dos caminhões é "Slow drive, long life". Nenhuma outra poderia ser mais adequada. Anda-se devagar, mas sem se adiantar à ordem natural, ao tempo da natureza. As rodovias do Nepal têm vida própria e sempre nos convidam, com um imenso sorriso, a fazer parte de seu organismo. Não por acaso, os nepaleses são exemplos de simpatia, paciência e gentileza. Não tenhamos pressa. Por que não fazemos na estrada?  




   










quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Sobre sorte, fé, felicidade e paz

“Muitas sementes caíram em terreno pedregoso e mesmo aí brotaram; mas veio o sol e, como não tivessem raízes mergulhadas no seio da terra, as plantinhas morreram. Outras caíram entre espinheiros e os espinheiros abafaram as plantinhas vindas dessas sementes.”
Caminhando pelas apertadas ruas de Kathmandu, sou parado por um vendedor de lembrancinhas, que insistia para que eu comprasse enfeites budistas para espelhos de carro. Após minhas primeiras recusas, ele reduziu sucessivamente o preço de seu produto, alegando serem tais artefatos causadores de boa sorte, não de lucro. Supersticioso que sou, terminei por comprar algumas unidades de sua mercadoria a um preço bem abaixo do valor inicial. 

Saí da quitanda não apenas com os enfeites na bagagem, mas também com a seguinte objeção: o que seria a religião, senão uma superstição? Fui para o Nepal com um conhecimento medíocre sobre o que é o budismo, e agora confiava em sua simbologia para me trazer sorte. Pensei: usufruir de simpatias almejando sorte é, também, uma forma de acreditar em Deus; um gesto análogo à reza. Esse tema perdurou durante toda viagem.

A propósito, em minha estadia no Nepal, sem dúvida foi no Chitwan National Park que precisei contar mais diretamente com a sorte. O parque dispunha de uma exuberante vida selvagem, que incluía rinocerontes, veados, javalis, crocodilos, o exótico garial, além de centenas de espécies de aves. O objetivo principal e declarado, contudo, era caminhar na selva para avistar tigres, animais muito tímidos e discretos. Parti empenhado para as expedições, senti-me um predador atrás da presa. 

A vida selvagem em seu habitat natural é muito pouco amistosa: fotografar os animais foi uma tarefa árdua: se camuflam no meio da mata e percebem nossa presença muito melhor do que nós a deles. Ainda assim, consegui chegar realmente perto de alguns rinocerontes. Enquadrar o corpo inteiro de um em uma foto era na prática impossível, e a lente da câmera teimava em focalizar apenas alguma das centenas de folhas entre eu e meu alvo. De perto, o animal revelou sua dupla faceta, dócil e amedrontadora. Dócil por ser herbívoro, solitário, de certo modo sonolento e com uma visão não muito sofisticada; amedrontador pelo seu incrível tamanho, aparência dinossáurica, chifre sempre em riste e expirações altas e assustadoras. Foi um encontro marcante e excitante que, infelizmente, não tive com o tigre.


Eu poderia atribuir, como costumam, o não encontro com o tigre à falta de sorte. Estava, todavia, tão entusiasmado com a vida selvagem, que jamais poderia estar em um momento de azar. Um tigre precisa caçar e sabe seguir suas presas. Suas presas, por sua vez, dispõem de qualidades imprescindíveis para identificar a presença de um predador. Após alguns dias na selva, amadureci um pouco meu conceito de sorte: no mundo selvagem não existe sorte ou azar. São oportunidades que surgem, e terá êxito quem as aproveita melhor. O tigre foi melhor em fugir das lentes de minha câmera do que eu em seguir seus rastros. 

Os dias no parque me deixaram feliz, e descobri que também a felicidade é um tipo de sorte. Quando desejamos boa sorte, implicitamente desejamos felicidade. Em alemão, por exemplo, as duas qualidades são a mesma palavra, Glück. A despeito da religião, a felicidade é, em síntese, o que se almeja atingir. No budismo o alvo é chamado de Nirvana, a cessação dos sofrimentos. Em nossa busca espiritual, somos orientados a fazer as coisas certas em vida para que possamos desfrutar da suma felicidade em outro plano. Trata-se, novamente, de escolhas e oportunidades, não de acaso. Devemos fazer o bem, e espalhar amor e compaixão para termos sorte na vida e, por que não, na morte.

Sentado em uma ghat em Varanasi, na Índia - escadarias que levam até as águas sagradas do Rio Ganges -, aprendi o conceito mais valioso desta caminhada: podemos acreditar em Deus por diversos caminhos. A força suprema, acreditam os hindus, criadora do universo é, afinal, uma só. Quando perguntei se eu poderia me tornar hindu mesmo não nascendo na Índia e, tampouco, em berço hindu, responderam-me que todos os homens são iguais, e o importante seria acreditar em Deus, independentemente do modo como se acredita. Descobri, também, que na labiríntica divisão de castas, religiões como o Cristianismo, Budismo e Islamismo têm seu lugar. Aparentemente segregadora pela hierarquia das castas, descobri no hinduísmo uma tolerância jamais vista em qualquer outra religião.

Lumbini: cidade natal de Buda, onde se localiza a chama das Nações Unidas. Símbolo da paz mundial
Peguei emprestado uma página de uma leitura passageira para fechar esse pensamento sobre sorte, fé, felicidade e paz. O livro se chamava "One God" e, analisando as mais diferentes formas de crer em Deus, propunha-se a dividir a religião do seguinte modo: aqueles que creem, e os que não. A religião é tão simplesmente uma forma de se buscar a paz, a felicidade, a prosperidade e a compaixão. É, de fato, uma superstição, uma forma de ter sorte e de se preocupar com o seu bem-estar e com o de sua espécie.
"Todas as religiões falam de bem-estar humano. O Sanatan Dharma, por exemplo, em certo ponto declara:
Devem todos viver com felicidade; devem todos se distanciar de ilusões e desilusões e olhar a beleza. Ninguém deve sofrer.
O Dhammapad diz: 
'Animosidade nunca acaba com animosidade nesse mundo; animosidade pode apenas ser curada com amizade - esse princípio eterno.'
 A Bíblia reforça:
 'Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem'
O Koran Majid afirma:
'Bem e mal não são similares. Você responde ao mal com o bem. Então, mesmo que haja alguma animosidade entre você e o outro, ele se tornará seu amigo.'"
Em suma, a função da religião em nossas vidas é nos trazer felicidade. Podemos crer em Deus da forma como nos for mais conveniente: sendo nós sua própria imagem, sendo um elefante, um macaco, uma vaca, um astro do Rock, um militante dos direitos humanos, um antigo príncipe, as águas de um rio, um grão de areia. Eu prefiro apenas crer, pois, em minhas jornadas solitárias, sinto-me confortável em olhar para o céu e dizer "por favor" ou "obrigado". Procurar fazer apenas o bem e trazer a paz e felicidade são os preceitos que sigo em minha vida, e também os que as mais diversas religiões pregam. Minha religião é acreditar; faz bem e não custa nada.     

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Um momento de desencontro

Que maravilha os aviões. Li, ouvi música, distraí-me e fui parar no outro lado deste admirável mundo. Nas 17 horas mal dormidas de viagem, dividida em dois trechos, tive tempo de analisar com calma cada pensamento que me ocorreu. Em o "Lobo do Mar", romance que escolhi para ilustrar esta jornada, o protagonista, em um barco, discorre sobre o que ele chama de divisão do trabalho. Segundo ele, é em razão dessa divisão que podemos ocupar nossa mente com o que nos for conveniente enquanto estamos em trânsito. Assim, eu, desprovido de qualquer conhecimento de aviação e sem me preocupar com as leis da Física que fazem o avião voar, cruzei o mundo em um, procurando apenas lidar com minhas ideias sob a imagem das nuvens do deserto de ar que estava percorrendo. 

Rumei do ocidente para o oriente e meu primeiro desencontro foi com o Sol. Naquela noite, eu não o esperaria vir até mim. Com meu avião, voava em sincronia com o sentido de rotação da Terra, e nos aproximávamos mais rapidamente. Antes que a luz natural entrasse pelas beiradas da janela de meu quarto, permiti que ela entrasse pela janela do avião, em um caloroso encontro de machucar os olhos. Na harmoniosa monotonia da paz celestial, a simplicidade do Sol de cada dia é incompreensível; ele apareceu, para mim, em uma forma tão complexa, que nossa interação foi impossível.   

O derradeiro desencontro, contudo, foi a discordância entre o desejo de vagar, que me trouxe à estrada em pleno primeiro dia do ano, e a saudade de casa. O que teria me motivado a estar em posição tão indefesa, diante do amedrontador planeta Terra, em uma época do ano de renovações, mas de apego à família e aos velhos amigos? Enxerguei uma pista para essa questão em uma interpretação otimista de uma fala de Lobo Larsen, anti-herói de meu livro de cabeceira: "o que tem sorte prolonga seu movimento por mais tempo - eis tudo. Move-se para que possa comer, e come para manter-se em movimento. Eis tudo. Mantê-lo em vida." Em suma, estamos no mundo para nos movimentar.


Em tempo, descobri uma nova diversão. Com a imaginação exaltada que me impediu o sono, acompanhei por horas o trajeto que o avião fazia. Voltei a minha infância, quando adorava rodar o globo terrestre com meus pequenos dedos, observando a localização de cidades e países. Agora, em tamanho real, eu passava por cidades como Viena, Praga e Budapeste, olhando suas respectivas luzes pela minha janela. Vi o Sol nascer - bem menos agressivo -, cruzei desertos, passei pelo Afeganistão, Paquistão e, então, desembarquei na Índia, meu destino final. Talvez, me divertir com o mapa foi o mais próximo que cheguei de meu encontro pessoal.