“Muitas sementes caíram em terreno pedregoso e mesmo aí brotaram; mas veio o sol e, como não tivessem raízes mergulhadas no seio da terra, as plantinhas morreram. Outras caíram entre espinheiros e os espinheiros abafaram as plantinhas vindas dessas sementes.”
Caminhando pelas apertadas ruas de Kathmandu, sou parado por um vendedor de lembrancinhas, que insistia para que eu comprasse enfeites budistas para espelhos de carro. Após minhas primeiras recusas, ele reduziu sucessivamente o preço de seu produto, alegando serem tais artefatos causadores de boa sorte, não de lucro. Supersticioso que sou, terminei por comprar algumas unidades de sua mercadoria a um preço bem abaixo do valor inicial.
Saí da quitanda não apenas com os enfeites na bagagem, mas também com a seguinte objeção: o que seria a religião, senão uma superstição? Fui para o Nepal com um conhecimento medíocre sobre o que é o budismo, e agora confiava em sua simbologia para me trazer sorte. Pensei: usufruir de simpatias almejando sorte é, também, uma forma de acreditar em Deus; um gesto análogo à reza. Esse tema perdurou durante toda viagem.
A propósito, em minha estadia no Nepal, sem dúvida foi no Chitwan National Park que precisei contar mais diretamente com a sorte. O parque dispunha de uma exuberante vida selvagem, que incluía rinocerontes, veados, javalis, crocodilos, o exótico garial, além de centenas de espécies de aves. O objetivo principal e declarado, contudo, era caminhar na selva para avistar tigres, animais muito tímidos e discretos. Parti empenhado para as expedições, senti-me um predador atrás da presa.
A vida selvagem em seu habitat natural é muito pouco amistosa: fotografar os animais foi uma tarefa árdua: se camuflam no meio da mata e percebem nossa presença muito melhor do que nós a deles. Ainda assim, consegui chegar realmente perto de alguns rinocerontes. Enquadrar o corpo inteiro de um em uma foto era na prática impossível, e a lente da câmera teimava em focalizar apenas alguma das centenas de folhas entre eu e meu alvo. De perto, o animal revelou sua dupla faceta, dócil e amedrontadora. Dócil por ser herbívoro, solitário, de certo modo sonolento e com uma visão não muito sofisticada; amedrontador pelo seu incrível tamanho, aparência dinossáurica, chifre sempre em riste e expirações altas e assustadoras. Foi um encontro marcante e excitante que, infelizmente, não tive com o tigre.
Eu poderia atribuir, como costumam, o não encontro com o tigre à falta de sorte. Estava, todavia, tão entusiasmado com a vida selvagem, que jamais poderia estar em um momento de azar. Um tigre precisa caçar e sabe seguir suas presas. Suas presas, por sua vez, dispõem de qualidades imprescindíveis para identificar a presença de um predador. Após alguns dias na selva, amadureci um pouco meu conceito de sorte: no mundo selvagem não existe sorte ou azar. São oportunidades que surgem, e terá êxito quem as aproveita melhor. O tigre foi melhor em fugir das lentes de minha câmera do que eu em seguir seus rastros.
Os dias no parque me deixaram feliz, e descobri que também a felicidade é um tipo de sorte. Quando desejamos boa sorte, implicitamente desejamos felicidade. Em alemão, por exemplo, as duas qualidades são a mesma palavra, Glück. A despeito da religião, a felicidade é, em síntese, o que se almeja atingir. No budismo o alvo é chamado de Nirvana, a cessação dos sofrimentos. Em nossa busca espiritual, somos orientados a fazer as coisas certas em vida para que possamos desfrutar da suma felicidade em outro plano. Trata-se, novamente, de escolhas e oportunidades, não de acaso. Devemos fazer o bem, e espalhar amor e compaixão para termos sorte na vida e, por que não, na morte.
Sentado em uma ghat em Varanasi, na Índia - escadarias que levam até as águas sagradas do Rio Ganges -, aprendi o conceito mais valioso desta caminhada: podemos acreditar em Deus por diversos caminhos. A força suprema, acreditam os hindus, criadora do universo é, afinal, uma só. Quando perguntei se eu poderia me tornar hindu mesmo não nascendo na Índia e, tampouco, em berço hindu, responderam-me que todos os homens são iguais, e o importante seria acreditar em Deus, independentemente do modo como se acredita. Descobri, também, que na labiríntica divisão de castas, religiões como o Cristianismo, Budismo e Islamismo têm seu lugar. Aparentemente segregadora pela hierarquia das castas, descobri no hinduísmo uma tolerância jamais vista em qualquer outra religião.
Peguei emprestado uma página de uma leitura passageira para fechar esse pensamento sobre sorte, fé, felicidade e paz. O livro se chamava "One God" e, analisando as mais diferentes formas de crer em Deus, propunha-se a dividir a religião do seguinte modo: aqueles que creem, e os que não. A religião é tão simplesmente uma forma de se buscar a paz, a felicidade, a prosperidade e a compaixão. É, de fato, uma superstição, uma forma de ter sorte e de se preocupar com o seu bem-estar e com o de sua espécie.
Sentado em uma ghat em Varanasi, na Índia - escadarias que levam até as águas sagradas do Rio Ganges -, aprendi o conceito mais valioso desta caminhada: podemos acreditar em Deus por diversos caminhos. A força suprema, acreditam os hindus, criadora do universo é, afinal, uma só. Quando perguntei se eu poderia me tornar hindu mesmo não nascendo na Índia e, tampouco, em berço hindu, responderam-me que todos os homens são iguais, e o importante seria acreditar em Deus, independentemente do modo como se acredita. Descobri, também, que na labiríntica divisão de castas, religiões como o Cristianismo, Budismo e Islamismo têm seu lugar. Aparentemente segregadora pela hierarquia das castas, descobri no hinduísmo uma tolerância jamais vista em qualquer outra religião.
Lumbini: cidade natal de Buda, onde se localiza a chama das Nações Unidas. Símbolo da paz mundial |
"Todas as religiões falam de bem-estar humano. O Sanatan Dharma, por exemplo, em certo ponto declara:
Devem todos viver com felicidade; devem todos se distanciar de ilusões e desilusões e olhar a beleza. Ninguém deve sofrer.
O Dhammapad diz:
'Animosidade nunca acaba com animosidade nesse mundo; animosidade pode apenas ser curada com amizade - esse princípio eterno.'
A Bíblia reforça:
'Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem'
O Koran Majid afirma:
'Bem e mal não são similares. Você responde ao mal com o bem. Então, mesmo que haja alguma animosidade entre você e o outro, ele se tornará seu amigo.'"Em suma, a função da religião em nossas vidas é nos trazer felicidade. Podemos crer em Deus da forma como nos for mais conveniente: sendo nós sua própria imagem, sendo um elefante, um macaco, uma vaca, um astro do Rock, um militante dos direitos humanos, um antigo príncipe, as águas de um rio, um grão de areia. Eu prefiro apenas crer, pois, em minhas jornadas solitárias, sinto-me confortável em olhar para o céu e dizer "por favor" ou "obrigado". Procurar fazer apenas o bem e trazer a paz e felicidade são os preceitos que sigo em minha vida, e também os que as mais diversas religiões pregam. Minha religião é acreditar; faz bem e não custa nada.
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