domingo, 22 de outubro de 2017

Pé na areia, Epílogo

Francisco falava pouco ou quase nada. Andava muito a minha frente e, por mais que eu tentasse apressar meus passos, não conseguia diminuir a distância entre nós. Ele conhecia melhor a linguagem do mundo do que a língua portuguesa. Eu queria me comunicar com ele, mas ele parecia em um nível mais elevado, incompreensível para mim. Seu silêncio era denso, me perturbava. Contemplava a radiação emanada da Lua, o som do vento arrastando areia, o balé das águas. Em alguns momentos ele segurava a caminhada, com um gesto, e permanecia em silêncio. Saía do caminho sem dar explicações e indicava que eu deveria esperá-lo ali. Ele colhia ervas, guardava uma parte no bolso. A outra parte, triturava na mão, retirava um papel de seda e tabaco de outro bolso, acendia um cigarro. Nesses momentos, enquanto eu o acompanhava com o meu olhar, tentava, assim como ele, decifrar os sons dos lençóis que entravam em meus ouvidos. Eu o perdia de vista, mas sabia que estava mapeado em sua cabeça: ele conseguia rastrear a presença de qualquer ser em suas imediações. Podia buscar minha presença assim como buscava ervas nas raras formações vegetais da região. Tinha, enfim, uma visão integral, um entendimento geral de todos os fenômenos a sua volta. 

Compreendi, assim, a distância que imperava entre nós. Eu era um homem alheio aos lençóis, um estranho, que não sabia me comunicar com aquela paisagem deslumbrante. Ele detectava minha presença, mas seu radar acionava um alarme de elemento estranho.

Ele me guiou até Santo Amaro. Quando chegamos, ele não descansou. Despachou-me em uma pousada e disse que iria voltar para Queimada dos Britos a tempo do jantar. O Sol estava forte. Ele não sentia nenhum um tipo de pesar pela longa caminhada até ali. Pelo contrário, estava disposto a refazê-la pelo caminho inverso. Ele era capaz de passar todas as horas de Sol do dia e mais um pouco andando sozinho pelos lençóis. Despediu-se de mim como quem acabara de entregar uma mercadoria a um cliente. Agora ele poderia andar pelos lençóis em completa paz, sem presenças estranhas, conversando, ao seu modo, com a areia, as plantas, a água, o vento e os animais. Ele era um homem completo, estava em casa.

Todo homem que anda, em última análise, está tomando o caminho de volta para a casa. Andamos porque queremos abraçar o mundo e tê-lo, ele todo, como casa. Queremos encontrar nosso lugar nele, nosso lugar de conforto, aprender a viver tendo a paisagem como melhor companheira. Aventuramos-nos em uma travessia para poder ter aonde chegar ao final do dia. Saímos do conforto do lar para descobrirmos como ambientes desérticos podem ser confortantes. Uma rede presa entre dois troncos é uma casa, uma cabana é uma casa, uma fazendinha é uma casa, uma pilha de areia é uma casa, um desejo realizado é uma casa. Em casa foi onde me senti quando concluí a travessia. Tirei tudo o que eu vestia para tomar uma ducha e me espreguiçar sobre uma rede. Finalmente, senti-me em casa quando percebi que sentia saudades ao reconstruir os meus passos mentalmente.


A saudade me moveu adiante. Eu começava a deixar minha casa alegórica para partir para minha casa real. Santo Amaro era um núcleo urbano, mas se encontrava, ainda assim, isolado. Nas margens dos lençóis, a via asfaltada até a estrada ainda estava em construção. Apenas veículos tracionados conseguiam fazer aquele trajeto. Entrei em um jipe que fazia o papel de transporte coletivo da cidade e fui conduzido até uma pequena parada na beira da estrada. Uma nova aventura foi proposta a mim quando descobri que o jipe não me deixaria aonde eu precisava chegar. Eu ainda teria que andar mais dois quilômetros até outra parada, de onde eu pegaria um ônibus de volta para São Luis - esse ônibus trazia de Barreirinhas algum dos meus pertences que eu não levei para a travessia. 

Nem sempre o caminhante pode abstrair das dores do corpo. Quando temos uma meta, podemos desfrutar dela enquanto deixamos as dores em segundo plano. Nos lençóis não havia espaço para padecimento. Eu estava encantando com um cenário novo, com seres humanos incríveis, procurando aprender algo entre eles. Quando eu soube que não precisaria mais caminhar longas distâncias no próximo dia, deixei que meu corpo se tornasse dolorido. Foi inglório descobrir que, naquele estado, ainda precisaria andar até o ponto do meu ônibus.

Mesmo as situações inesperadas podem nos trazer gratas recompensas. Comecei a caminhar assustado. No acostamento da estrada, mochila nas costas, sandália nos pés, cabelo ao vento. Agora eu caminhava em terreno sólido, mas queria a areia de volta. Estava de costas para o trânsito, discutia comigo mesmo se eu deveria pedir carona. De carro, dois quilômetros seriam logo ali. Preferi seguir a pé. Atravessei para andar de frente para os carros que se aproximavam. Foi a primeira vez que caminhei  na estrada, e esse momento será sempre para mim inesquecível. As velocidades pareciam altíssimas, eu estava totalmente fora do compasso e só conseguia ver um borrão do que pretendia ser um automóvel. Os caminhões primeiro passavam por mim. Depois vinha o seu som. Em seguida o vento. Por fim, gotículas de água do asfalto umedecido. Cada evento tinha a sua entrada triunfal. Cada um tinha o seu momento, não podiam acontecer juntos para que a energia de um não ricochetasse sobre a de outro. Um acontecimento lindo, não da natureza dessa vez, mas da engenharia das invenções humanas. Que belo contraste. Mal podia aguardar pela minha próxima louca aventura sob o céu.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Cada leitura por aqui é como me transportar contigo para experiências na estrada que nem vivi de fato... Ainda!

    (mal posso esperar por elas, e por você).

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