sábado, 14 de julho de 2018

O Grande Deserto do Mundo

O quinto pilar do Islamismo, o da peregrinação, diz que todo fiel deve ir à Meca pelo menos uma vez em vida. A história das viagens começa por aí, em tempos tão longínquos quanto os anos 600: os muçulmanos viajavam não apenas por sobrevivência ou para se enriquecerem com o comércio em terras distantes, mas por pura espiritualidade. Os árabes são, de fato, um povo fadado ao movimento. Quem não se movimenta pensará que o mundo é todo um grande deserto. Ainda que se movimentem, precisam andar muito para deixar a imensidão de paisagens desérticas que se alongam pelo cordão tropical desde o Saara até as fronteiras finais da Ásia Central.

Por outro lado, é igualmente importante que nos movamos até o Oriente Médio. Caso contrário, poderemos pensar que essa região é caótica, que vive em estado permanente de guerra, que a população é grosseira, que pessoas se explodem. Será difícil pensar em árabes sem pensar em terrorismo e destruição, seremos contra sua imigração, defenderemos o fechamento de nossas fronteiras. Julgaremos ser impossível andar em segurança ou em paz nas ruas.

A diversidade do mundo é uma mão que bate e que afaga. Aceitá-la significa receber sabedoria, mudar as lentes com as quais enxergamos o mundo. Negá-la significa nos fecharmos entre os nossos iguais, atribuir aos outros qualidades que os tornam inferiores. Assim como um corpo quente troca calor com um corpo frio pelo simples fato de existir uma diferença de temperatura entre eles, a diversidade é o motor de minhas viagens; existindo diferenças, existe um motivo para me deslocar de um lugar ao outro. Anseio desenhar um mapa-múndi sem fronteiras, em que todas as diferenças serão compreendidas e toleradas.

Bem no meio do mundo sem fronteiras existe um grande deserto onde habita o povo árabe. Esse povo conseguiu preencher o vazio do mundo com vida e existência. É nesse deserto que mito, fé e grandes seres humanos se misturaram em uma única força que gerou nossa humanidade. Com efeito, é muita presunção dizer que, em um mundo tão diverso, nossa força geradora vem exclusivamente do Oriente Médio. Ainda assim, a contribuição daqui é muito densa: de um único mito criacionista, três grandes religiões expandiram suas respectivas fés para todas as esquinas do mundo e, assim, influenciaram desde nossa noção de moral à nossa interpretação para o sentido da vida. Entendemos como a religião é vital para aliviar a dura realidade do deserto. Afinal, por que outro motivo o Paraíso seria descrito como um imenso jardim, de clima ameno, sem mortes e com abundância de recursos?

Desertos não delimitam fronteiras, por isso é tão difícil compreender essa região, assim como é difícil compreender o que significa ser árabe. As bordas predominantemente retilíneas dos países e a imensa paisagem desértica que parece nunca ter fim escondem particularidades e contradições. De perto, é possível ver como é muito difícil definir grupos humanos como restritos a determinado território ou a um mesmo grupo étnico. Árabes podem compartilhar um ancestral próximo e comum com algum dos profetas dos textos sagrados, ou podem ser considerados todos os que falam o idioma árabe. Existe ainda uma grande sobreposição entre o mundo árabe e o mundo islâmico, religião que prevaleceu entre esse povo. Como um grão de areia que se move entre um e outro lado da fronteira, a mobilidade também esculpe a paisagem da região.


Eu fui à Jordânia e, a despeito de uma experiência traumática no Egito e de algumas ideias preconcebidas, juntas a um ano morando na Europa, consegui entender melhor esse povo. Passei a enxergar os árabes como todos aqueles fortes seres humanos de muita fé e cultura enraizada, habitantes do grande deserto do mundo, que defendem sua cultura e religião como ninguém, ao passo que lutam para serem compreendidos pelos outros povos. Um povo que sofre constantes ameaças externas e que busca estabelecer seu lugar no mundo. Um povo que se move para se afastar de adversidades naturais e políticas, mas que pena em resolver seus longos e estáticos conflitos internos. O povo árabe, por fim, é um grande desafio ao nosso prazer pela diversidade. Até que ponto podemos relativizar tanto fundamentalismo religioso e conservadorismo de modo a aceitar uma cultura que nos é essencialmente diferente?

Se, de fato, fundamentalismo religioso e regimes totalitários existem no mundo árabe, a Jordânia foi um contraexemplo que  prontamente me impressionou. Como um dos países do Levante, limitado a oeste por Palestina e Israel e a norte pela Síria, regiões de longo histórico de conflitos, a Jordânia consegue se manter bastante pacífica. A capital Amã é uma cidade de população educada, ruas organizadas e renda média e alta. A liberdade religiosa existe, há um considerável número de cristãos. Muitas mulheres andam sem cobrir os cabelos, e as que cobrem todo o rosto são extremamente raras - provavelmente, estrangeiras de alguma das outras muitas nações árabes. Quando o sol forte baixa, as ruas são preenchidas por clima de animação e relaxamento, ficam cheias e podemos nos sentir seguros a qualquer momento. A população é solícita, gostam de saber sobre nós, é fácil obter informações em inglês. Os temerosos vendedores de lembrancinhas com incríveis habilidades de negócio nos abordam, mas sem assédio, respeitando nosso espaço e nossas decisões.

A população é extremamente religiosa. A religiosidade cria um vínculo forte entre o homem e a terra, faz aflorar um anseio por fartura e uma necessidade de humildade. Essa humildade é intrínseca a um povo habituado viver em regiões desérticas, em que o plantio e a criação de animais é tão difícil que muitas vezes obriga ao povo a necessidade do nomadismo. A fartura existe pelas mesmas razões, provém da inventividade necessária a todos que, de maneira determinística, vivem em lugares inóspitos. A paisagem cor de terra, com pouco verde, contrasta com luxuosíssimos e coloridos artigos de decoração, tecidos, tapetes e mosaicos. Os momentos de refeição são quando fartura e humildade se encontram. Minha passagem pela Jordânia foi em período de Ramadã, em que os muçulmanos jejuam voluntariamente como uma renovação da fé e vivência profunda de irmandade e dos valores da vida familiar. Eles valorizam muito o estar junto, e o fazem em grandes banquetes, com abundância de comida. Enquanto houver luz do dia, eles se privam de comer. Quando o sol se põe, as famílias já estão reunidas para celebrar os valores mais simples da vida, ao passo que a comida é reposta tantas vezes quanto necessário pela madrugada adentro.

É um imenso aprendizado. Mesmo os momentos de lazer e de celebração expõem diferenças entre nós e eles. Em uma sociedade que não consome álcool, são motivos muito mais íntimos e profundos que fazem as pessoas se reunirem em volta de uma mesa. Em comum, contudo, entre nós, eles e todos os demais seres humanos, está o amor pelo Sol, que nasce para todos e em todos os lugares do mundo, fazendo flores desabrocharem, nos protegendo da escuridão. Em comum está o fato de querermos chegar a lugares onde o Sol nasce mais belo para nós. Assim como os árabes dos quais descendo foram para o Brasil por motivos de perseguição religiosa, muitos árabes saem em busca de melhor educação e melhores condições de vida e trabalho. Muitos deles conheci na Europa, hora em universidades de ponta, hora marginalizados nas ruas. Muitos deixam os desertos do mundo árabe, mas continuam vivendo no deserto do preconceito e da intolerância nos lugares para onde emigram. São pessoas como nós, buscando simplesmente seu lugar ao Sol. Cabe a nós recebê-los, compreendê-los e aceitá-los. No fundo o que diferencia a cultura árabe-islâmica da cristã-ocidental é a interpretação que fazemos das escrituras sagradas. O que de grande valor a Jordânia me ensinou é que, sem abdicar de nossa fé, é possível interpretar tais escrituras de maneiras mais inclusivas e tolerantes, sem que precisemos seguir uma cartilha de conduta em todas as pequenas tarefas de nossas vidas, sem que nenhum direito seja reprimido por causa de qualquer tipo de discriminação. Isso já acontece pelo menos em partes do mundo árabe.

Peguei a estrada e logo comecei a ver uma cultura tão diferente com ainda mais proximidade. De fato se anda muito sem deixar os desertos. Populações de beduínos, que para mim eram personagens folclóricos de um passado tribal, são mais presentes do que a cabeça de um brasileiro que quase não vê manifestações culturais dos gentios de sua terra pode pensar. São seres incríveis, praticantes do nomadismo, conhecedores dos segredos e mistérios do deserto. Vivem em grandes grupos, em tendas, sobrevivem em lugares inimagináveis, criando cabras, camelos e usando a terra até esgotá-la. Então se mudam, encontram novos pedaços de terra, vêm vida onde ninguém mais vê.

Amã
Tendas de beduínos






Ver vida nessa região não é tarefa fácil. O rio Jordão fertiliza o solo, mas vai ficando cada vez mais salgado à medida que corre para a jusante, até desaguar no Mar Morto, que recebe esse nome justamente pela falta de vida. A água é tão salgada que impede a presença de vida marinha: apenas seres mais primitivos como algas e bactérias vivem ali. A elevadíssima salinidade torna a água densa a ponto que se pode flutuar sem esforço algum. No entanto, o sal em atrito com a pele impõe um limite de tempo no qual é agradável boiar nas águas. Na porção sul do mar, mineradoras exploram o potássio dos sais para serem amplamente utilizados como fertilizante. O rio Jordão também traça parte da fronteira entre Jordânia e Israel. Em função dos conflitos árabes-israelenses e pela proximidade da Palestina, a fronteira é fortemente militarizada. Na estrada vemos diversos postos de observação israelenses, nos quais, segundo o nosso guia, os militares têm autorização para atirar em quem tentar atravessar.

Quem nunca for ao Oriente Médio talvez também nunca desassocie a cultura árabe da cultura muçulmana. Antes da islamização do mundo árabe, essa região foi de cultura helênica, o que nos faz sentir de certa maneira mais próximos a uma cultura que a distância nos é tão diferente. A herança arquitetônica está presente em Amã, nos anfiteatros encravados no meio da cidade, em templos para Zeus e em magníficos sítios arqueológicos como Jerash. Alexandre, O Grande cooptou ao Império Romano o incrível povo Nabateu, ancestral dos árabes. Esse povo elegeu como sua capital a preciosa Petra, uma ponte entre civilizações da Antiguidade. Uma grande cidade desperta de dentro das rochas. Como em um conto de aventura, em que se deve percorrer um perigoso caminho, cheio de armadilhas, para alcançar um tesouro, a entrada de Petra é marcada por um longo e estreito caminho espremido entre dois paredões. Essa rota, que recebe o nome de Siq, é uma extensa falha geológica em forma de fenda, servindo como porta de entrada para o tesouro de Petra. Tesouro aqui não é uma alegoria, mas o nome do mais imponente edifício do complexo: de tanta beleza, fazia sentido para os antigos beduínos que existisse um riquíssimo tesouro escondido no topo do templo. 

Então, de um estreito sendeiro que perfura uma enorme rocha, surge o Tesouro, uma grande cidade perdida e depois o Monastério. O fascínio de lugares como estes está no susto, na surpresa que causam aos nossos sentidos. O momento de chegada é um golpe que tomamos sem estar preparados. É a beleza que não pode ser descrita, mas que anseia por ser vista. O pasmo chega com um pico de prazer. É como se Petra tivesse selecionado os melhores dentre todos os homens para estar ali, naquele momento, diante dela, para poder contemplá-la. Ser selecionado por ela, porém, exige que precisemos sofrer tal susto, o susto de se comprovar com os sentidos a beleza de um lugar fabuloso. Como é possível uma cidade forjada de dentro das pedras, à base de marretadas? São verdadeiras esculturas em escala ampliada. Poucos lugares no mundo causam esse tipo de assombro.

Siq

Tesouro

Monastério

O calor do deserto queima a pele e drena rapidamente toda a água do corpo. Em um longo dia de caminhada em Petra se pode ter melhor ideia do quão forte é a população que vive nessa região. Em tempo de Ramadã, o guia que nos acompanhou por algumas horas, assim como tantos outros que vivem do turismo na cidade, espantosamente recusava-se a beber água. Mais ao final da luz do dia, quando o jejum já acumula muitas horas, é como se uma epidemia subitamente pairasse sobre a população, que passa a ter olhar distante, rosto pálido, expressão confusa. Entrávamos em lojas e víamos vendedores dormindo em tapetes, minimizando seu consumo de energia. Outros realmente deliravam de tanta fome. Comprei uma lembrancinha com um que mal conseguia erguer a cabeça. Ainda, muitas crianças, poupadas do jejum, tocavam, com muita habilidade, as vendas da família.

As vestimentas árabes são uma adaptação a esse tipo de vida. A túnica que cobre todo o corpo protege a pele do Sol, é folgada para arejar o corpo durante o dia e longa para proteger do frio da noite. O turbante que cobre a cabeça protege o rosto das tempestades de areia, o couro cabeludo da insolação e, se usado junto com um cajado, pode servir como pequena cabana de descanso. O traje tipicamente beduíno foi ressignificado pela cultura muçulmana, que estabeleceu algumas regras sobre seu uso: um fiel não deve expor partes íntimas de seu corpo. O conceito de parte íntima, contudo, é amplo, sobretudo para as mulheres, que, segundo a religião, devem cobrir o corpo inteiro, exceto as mãos e o rosto.

Desse modo, a paisagem molda o homem ao instigar nele a necessidade de sobrevivência, enquanto o homem, ser do mundo, atribui significados à natureza e, portanto, à sua própria existência. Diante de tanto deserto, tanta aridez e de ambientes de sobrevivência tão difícil, passamos a entender porque os árabes são tão afeitos à religião e porque muitas vezes é tão difícil para eles compreender a diversidade do mundo. Assim como os muçulmanos embarcam em perigosas jornadas à Meca para renovar sua fé, viajar ao Oriente Médio é um momento de renovação de tudo o que compreendemos sobre o povo árabe e a fé muçulmana. Preconceitos são destruídos ao vermos o princípio vital do povo árabe, ao vê-los vivendo no lugar onde foram gerados. A fronteira cultural existe: é difícil para um ocidental compreender a cultura árabe, assim como é difícil para um árabe, de cultura tão arraigada, se abrir para o que lhe é diferente. Verdade é que conviver com as diferenças nos faz atingir níveis mais altos de sabedoria. Para tal, precisamos nos mover em todas as direções. 




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