sábado, 16 de fevereiro de 2019

Ventre Amazônico

"Agora que o terrível desconhecido libertara-o, ele se esqueceu de que o desconhecido possuía qualquer terror. Ele estava ciente apenas da curiosidade por todas as coisas à sua volta"
Jack London
Este texto foi inspirado nas ideias de dois mundos apresentadas por Hermann Hesse em Demian.

Deixar a escuridão e o vazio da preexistência para ter o primeiro encontro com a luz foi como me senti ao chegar ao Pará. Uma nova viagem é, afinal, como um novo nascimento, em que a partir do momento em que deixamos o útero de nossas mães, estamos em permanente contato com o estranho e o desconhecido. Em viagens, contudo, somos órfãos, filhos sem mãe. O mundo não se importa se teremos uma cama para dormir à noite ou um agasalho para nos proteger do frio. Não se importa se estamos tomando chuva ou sentindo demasiado calor. Nós, viajantes, também somos duros e resilientes. Rebeldes, enfrentamos o mundo não maternal e achamos isso divertido; rimos da cara do perigo. Somos tão desobedientes quanto o crescimento, a inexorável maré de vida que se ergue dentro de nós a cada passo e a cada respiração.

A viagem ao Pará começa em uma noite sem cama, nas pouco confortáveis cadeiras do saguão do aeroporto de Santarém. Do mesmo modo começamos nossa jornada no mundo: com um choque, desnudos e desprotegidos, sentindo a luz, mas sem conseguir abrir os olhos. Somos colocados no colo de nossa mãe e logo descobrimos a existência de dois mundos: o mundo perfeitamente conhecido, o de nossos pais e de nossa casa; e o mundo desconhecido, o imenso lado de fora, hostil e impetuoso. Em uma viagem, assim como no processo de crescimento, precisamos transitar por esses dois mundos, removendo atributos do desconhecido e adicionando-os ao conhecido. O crescimento acontece quando expandimos o nosso mundo familiar, quando deixamos que a curiosidade pelo mundo de fora supere o temor que sentimos dele.

A madrugada no aeroporto de Santarém passou devagar. O fuso horário do Pará, uma hora atrasado em relação a Brasília, aumentou ainda mais o tempo de espera. De Santarém, precisávamos chegar ao distrito de Alter do Chão, 37 km distante. Esperava o dia clarear, quando a família que nos receberia já estaria iniciando as suas atividades do dia. Enquanto a madrugada lentamente se transformava em dia, voos chegavam e partiam com frequência, até que as companhias aéreas encerraram suas atividades por volta das 4h da manhã. O aeroporto ficava vazio, os taxistas, sem nenhum passageiro para transportar, se retiravam.

Havia um rapaz sozinho, imerso em seu próprio mundo, muito diferente do meu, com o rosto envolvido por um enorme fone de ouvido. Precisamente às 5h da manhã, um taxista com o qual ele já havia pré-combinado sua viagem veio a seu encontro. Vi uma oportunidade de baratear os custos da ida a Alter do Chão - provavelmente o rapaz era mais um turista indo para lá, com quem eu poderia dividir o preço do táxi. Abordei o rapaz e descobri que na verdade ele estava indo para Monte Alegre, na margem oposta do Rio Amazonas. Ele era meu conterrâneo, carioca de Madureira, que iria reencontrar sua mãe após longos nove anos sem vê-la. Era uma visita surpresa, e o rapaz, desnorteado em seus movimentos secretos, encontrava diversos problemas para se orientar no Pará. Nosso encontro foi então apreciado por todas partes: minha viagem ficou mais barata, o rapaz encontrou um companheiro para sua solitária viagem, e o taxista, que primeiro deixou o rapaz no porto de Santarém e depois nos conduziu, finalmente, a Alter do Chão, faturou alguns reais a mais do que esperava inicialmente.

Na chegada a Alter do Chão, um novo espasmo de susto percorreu meu corpo. O dia ainda não havia completamente rompido a noite, e, no endereço indicado pelos nossos anfitriões, não havia casa alguma. Em um lugar onde as ruas não necessariamente são retilíneas, asfaltadas ou sinalizadas, ficamos ao relento, no meio da rua. O taxista deixou seu número de telefone e partiu. Fui a pé procurar com mais profundidade a casa, as mochilas nas costas. Fora da rua principal, os caminhos que surgiam ofereciam pouco acolhimento: a vegetação se fechava e, sob o espectro da alvorada, formavam-se vias nebulosas e obscuras. Nesse caminho desolado, havia, contudo, um grande hotel, onde fomos buscar algum abrigo e hospitalidade.

Longe de casa, o mundo pode apresentar, também, refúgios maternos; um momento de castigo sempre pode ser equilibrado por outro de afago. Paulo, o recepcionista do hotel, foi ligeiro em nos receber. Aparentemente, a surpresa da chegada de dois inesperados viajantes em sua monótona noite na recepção deu a ele uma dose de ânimo. Tentou achar a nossa casa, buscou informações em seu celular, respondeu todas as nossas perguntas sobre a cidade. Ofereceu as dependências do hotel para nosso descanso. Vimos o dia surgir tímido no Lago Verde e, então, tomamos um belo café da manhã depois de uma longa viagem e uma madrugada inteira ora sentados no aeroporto, ora perdidos tentando encontrar nosso destino. Com a ajuda de Paulo, descobrimos o endereço correto: das duas pontas que marcam o início ou o fim de uma rua, fomos para a ponta errada. O dia já estava completamente claro e Paulo tratava de arrumar um transporte para o nosso endereço certo, quando meu celular tocou. Era João Tiago, dono da casa onde iríamos morar pelos próximos cinco dias. Ele queria se certificar de que havíamos chegado bem a Alter, e logo se ofereceu para nos buscar, de carro, no hotel. Do Lago Verde, atravessamos a cidade em sentido transversal e fomos transportados até a margem do Rio Tapajós.

Fomos recebidos por uma linda família. Sami era a esposa de Tiago. Da mistura dos dois, nasceu Mie, dona de um dos rostinhos mais brasileiros que pode existir. Tiago tem ancestralidade indígena, e Sami, por sua vez, descende de japoneses pelo lado da mãe e de gaúchos brancos pelo lado do pai. A dúvida se os olhos puxados de Mie vêm da herança ameríndia ou asiática torna a composição de seu rosto encantadora. Enquanto nosso quarto era arrumado para nos receber, nos foram oferecidas redes para descansar. Mais tarde, quando acordamos após a noite passada em claro, os pais de Sami, que também se encontravam na casa, nos ofereceram almoço. O prato era tambaqui, peixe amazônico, que, junto com o pirarucu, faria parte de nossa dieta básica durante toda a passagem pelo Pará. A essa altura, os mundos conhecido e desconhecido eram indistinguíveis: encontramos em Alter do Chão, por um breve momento, a extensão da casa de nossos pais.

Dentro do mapa, Santarém é um município localizado no encontro dos rios Tapajós e Amazonas, de naturezas perpetuamente destinadas a se chocarem. Por diferenças de temperatura e densidade, os rios não se misturam nem se separam, formando um casamento eterno entre as águas azul-esverdeadas do Tapajós e barrentas do Amazonas. Esse fenômeno, particular da relação entre o Rio Amazonas e seus afluentes, é um dos fatores que compõem a misticidade dessa bacia hidrográfica, a mais monstruosa e superlativa do mundo. Na região, de uma margem do rio, mal se pode ver a outra: é tanta água que insistimos em chamar rio de mar. Alter do Chão é um distrito administrativo de Santarém, repleto de praias banhadas pelo Tapajós. Ao norte de Alter está a Ilha do Amor, uma península que surge e desaparece a cada ciclo de cheia e vazante.

Alter do Chão

Encontro das águas
Não somente a água que vem das montanhas e corre até o mar impressiona por sua abundância - o mesmo se pode dizer da água que vem do céu. Existem rios no ar, feitos da mesma matéria e à imagem e semelhança dos rios da terra. A Amazônia é como a mãe de todas as criaturas, a deusa geradora de vida no planeta. A maior floresta tropical do mundo é fonte inesgotável de umidade, reguladora do ciclo de chuvas de toda a América do Sul e estabilizadora do clima global; uma deusa de fato, a floresta de todas as florestas. Se eu não tivesse sentido tanta água escorrendo pelo meu corpo ao longo de um dia inteiro de passeio pela floresta, seria capaz de duvidar de seus poderes. De Alter do Chão, pegamos um barco em direção à Floresta Nacional do Tapajós (FLONA). Logo após alguns minutos de viagem, uma verdadeira tempestade tropical envolveu toda a floresta. As águas do céu e da terra estabeleceram contato por uma grossa linha de chuva. O rio, de águas calmas, se agitou. O intenso calor, típico da barriga equatorial do planeta, se arrefeceu a ponto de nos causar hipotermia. O barquinho em que estávamos não oferecia abrigo contra a chuva, e ficamos todos completamente encharcados. Viver esse momento deve ser algum tipo de provação para aqueles que querem ser incluídos na magia da Amazônia.

Na FLONA tivemos o primeiro contato com os povos da floresta. Paramos o barco e caminhamos por cinco minutos até a vila de Jamaraquá. Durante o período de cheia, pode-se chegar até a vila de barco, e as árvores que apareceram nesse caminho ficam parcial ou totalmente submersas. Isso pode ser visto ao observar os caules escurecidos até alturas que indicam o nível das águas nas cheias. Na vila fomos recebidos por comunidades típicas e indígenas para um passeio guiado pela floresta. A floresta oferece muitos produtos, e muitas são as possibilidades de uso sustentável pelos locais, das quais se destacam a extração de látex e óleos. Nosso guia nos conduziu por diferentes paisagens amazônicas até um igarapé de águas cristalinas. Lá experimentamos uma série de frutos amazônicos coletados ao longo da trilha, enquanto conversávamos com os moradores locais. Um deles, já um senhor, mostrava-se preocupado com a preservação da Amazônia, em um cenário político em que se pretendia combinar, em um único ministério, as pastas do meio ambiente e da agricultura. Para ele, isso era uma clara ameaça ao seu meio de vida. Os povos da floresta não a destroem, pelo contrário, sabem que sua preservação pode trazer uma série de riquezas. Sabem, sobretudo, que a natureza não pode se defender da devastação, mas pode se vingar como ninguém. O fim da caminhada foi recompensado por uma série de Sumaúmas, incríveis árvores amazônicas cujo caule, de tão grande, só pode ser abraçado por cerca de trinta adultos. A Amazônia é terra de gigantes.

Afastada da floresta, no núcleo urbano de Santarém, uma senhora ganhou o mundo fazendo arte com matérias-primas amazônicas. Dona Dica Frazão é uma daquelas raras pessoas que são pioneiras em algo, que criam do zero, que se tornam lendárias. Ela vivia em Santarém, e fazia, de sua própria casa, um museu, onde recebia, pessoalmente, visitantes do mundo todo. Ela faleceu em julho de 2017, com 97 anos. Seu legado é mantido por sua filha, que cuida, hoje, da casa-museu, e também por conversas registradas em livros e relatos de muitos outros viajantes que estiveram ali. Descrita brevemente, Dona Dica Frazão seria uma estilista, mas que não usa tecidos ou panos. Suas peças são feitas com fibras da natureza. Em uma cesta, estão concentradas todas as fibras usadas como matéria-prima: palha do buriti, raiz de patchouli, fibra de malva e a mística entrecasca. Segundo Dica, a entrecasca é extraída há mais de 50 anos por índios munducurus, que mantêm o nome da árvore em segredo. Ela já produziu para a Rainha Fabíola da Bélgica, Papa João Paulo II e Juscelino Kubitscheck. Certamente é uma das maiores brasileiras que já viveu. Sua filha, que nos apresentou a casa de Dica Frazão, aprendeu a fazer peças como a mãe e pretende criar oficinas de empoderamento feminino por meio do domínio da técnica.






Em Santarém, subi as escadas de um prédio antigo e cheguei ao escritório da empresa de transporte que realiza a viagem de barco até Belém, por onde eu seguiria viagem explorando os segredos do Pará. O barco, chamado pela população local de lancha, sai toda quarta-feira de Manaus, passa por Santarém às sextas, e chega domingo a Belém. Nessa região de muita água e floresta densa, a maioria das viagens - muita das quais contadas em dias - se faz por vias fluviais. O trajeto de Manaus a Belém percorre um bom pedaço do Rio Amazonas, e Santarém fica exatamente na metade do caminho entre as duas capitais. Enquanto eu aguardava Sérgio, o vendedor de passagens com quem já havia falado ao telefone,  observava, na sala de espera, fotos de um navio que até então vivia apenas em meu imaginário, como parte do folclore amazônico. A propósito, nos dias que antecederam minha ida ao Pará, tentei por diversos meios encontrar informações sobre empresas que operam esse trajeto. Não foi fácil. Quando perguntei a Sérgio se corria risco de as passagens se esgotarem, ele me respondeu: "não se preocupe. Se lotar, é na lotação máxima, não vai viajar em excesso, vão todos em segurança" 

A chegada ao barco foi caótica. A lancha possuía, enfim, um nome de batismo: "Navio Roraima". De grandes dimensões, ele comportava uma tripulação de dois mil passageiros. Se ele havia atingido ou superado a lotação máxima, era difícil precisar. Entre Manaus e Belém, o navio aporta em diversas cidades, onde pessoas entram e saem, cada uma com sua própria origem e destino, convivendo por alguns dias sob o mesmo espaço. Espaços esses que muitas vezes se sobrepõem, que não possuem limites claros. O navio dispõe de alguns camarotes e também de suítes, com banheiros particulares. No entanto, a grande maioria dos viajantes se aglomera nos redários, dois andares de áreas vazias, preenchidas por tantas redes quanto possíveis. Com o balançado, redes se chocam, e, entre elas, formam-se labirintos. No porto de Santarém, havia uma grande movimentação nos porões do navio. Como ponto estratégico, na metade do percurso, havia troca de turno dos funcionários do navio, chegada de novos alimentos e descarte do lixo gerado. Muitos passageiros, com diferentes condições físicas, subiam as estreitas escadas do navio com quantidades variáveis de bagagem. Chegamos ao redário e, com uma certa dificuldade, conseguimos finalmente armar nossas redes e acomodar nossos pertences.

Antes da partida, pelos alto-falantes do navio, foi realizado uma espécie de culto evangélico. Atravessamos o encontro das águas e partimos, então, de Santarém rumo a Belém, seguindo o Amazonas à jusante. Logo fui enjaulado pelo medo. Deitei na rede, e, com o movimento do navio, ela balançava para frente e para trás, como um pêndulo errático e compulsivo. Senti-me imediatamente nauseado, arrependido de estar ali. Seria muito para mim aguentar dois dias inteiros naquelas condições. Para me desembaraçar das oscilações da rede, busquei outros ambientes do navio. Visitei os banheiros, a cantina e o restaurante, e não encontrei em nenhum lugar a sensação de conforto. Fui à área externa, onde poderia tomar um ar e esperava encontrar maior sensação de estabilidade. Era um espaço onde pessoas se encontravam, onde a luz do sol chegava, o vento batia, mas que não havia silêncio. Enormes caixas de som tocavam, ininterruptamente das 8h da manhã à meia-noite, música sertaneja em alto volume. 

Para viver nesse barco, precisava observar a realidade em meu entorno. Foi quando vivi um novo nascimento diante da aventura que se apresentava a mim. Como uma ave, que tem de quebrar um ovo para vir à luz, precisei destruir um mundo para entrar em outro. Esse outro mundo me era completamente diferente, e podia comportar muitos outros mundos. Quantos mundos diferentes podem caber dentro do universo de um navio? A verdadeira pergunta a ser feita é: quantos brasis podem existir dentro de um Brasil? Pelos próximos dois dias eu estaria renovando em mim o mundo, ao seguir um impulso de minha natureza em direção ao incerto. Eis o momento em que, libertado do medo, pude fazer, do terror, matéria-prima para curiosidade.





Passei a prestar atenção nas pessoas. Poucos eram como eu, viajantes motivados pela curiosidade. Viagens de dias pelos rios amazônicos podem se resumir a poucas horas - ou mesmo a minutos - de voo. O valor das passagens aéreas é acessível, ao passo que o preço do barco não é tão barato quanto pode parecer. Dificilmente quem estava ali queria estar ali; realmente precisavam e não tinham muita escolha. Havia mãe com vários filhos, com crianças de colo, gestantes e idosos com dificuldades de locomoção, todos sem condições adequadas de higiene. Muitos carregavam muita bagagem e comida. O barco dispunha de um restaurante que servia almoço e janta por 15 reais cada. A despeito de haver aproximadamente duas mil pessoas no barco, o pequenino restaurante nunca estava cheio: poucos tinham condições de pagar 30 reais em refeições em um único dia. Era comum levarem caixas térmicas com comida para todos os dias de viagem, com receitas baseadas sobretudo em farinha de mandioca.

Havia ainda um time de futebol inteiro de garotos que iam disputar uma partida em Belém. Havia quem catasse latinhas de refrigerante das lixeiras para ganhar algum dinheiro com a reciclagem. Havia um pregador com a Bíblia embaixo do braço. Uma mãe conversava em português com adultos e em tupi com seu filhinho. Havia quem estivesse ali por preferir apreciar a paisagem da floresta a olhar a mesmice das nuvens em uma viagem de avião. Outros queriam viajar com tanta bagagem que a passagem aérea se tornaria demasiadamente cara. Existe um Brasil em que muitos estão a dois dias de viagem da capital mais próxima. Conversei com um senhor que havia viajado 30h em um ônibus desde o Mato Grosso até Santarém, para então encarar mais dois dias de barco até Belém. Havia estrangeiros, um rapaz japonês, vizinho de rede, que não largava seus equipamentos eletrônicos. Europeus completamente deslocados de sua realidade. Latino-americanos descobrindo, no Brasil, os seios da América.

Depois que o navio assume velocidade constante, o princípio da inércia age e o chacoalho no redário cessa. A noite cai sublime, e o refúgio materno tornou a se materializar em mim sob a forma de um céu estrelado. O sol se pôs à popa do navio, se escondendo no horizonte que marcava o início da jornada. Nós navegávamos para leste, em direção ao nascer do sol, usando os astros como guias. Assim como nas escrituras, as estrelas indicavam o caminho, não para Belém da Judéia, mas para Belém do Pará. Ao zênite de um céu amarelado pelo pôr-do-sol, surgia tímida a lua, que logo estaria em seu mais intenso júbilo. Já tendo conhecido a realidade e o jeito de se viver no barco, a adaptação veio com o tempo, e, a essa altura, já podia desfrutar de estar ali, vivendo a mitologia de um cruzeiro  pelo Rio Amazonas.










Durante o primeiro dia no barco, navegamos a maior parte do tempo afastados das margens do rio, o que tornou a paisagem um tanto monótona. Com a chegada da escuridão, contudo, esparsos pontos de luz podiam ser vistos na floresta. Eram seus olhos, que estavam ali o tempo todo, observando nossa passagem de longe. Quando o novo dia chegou, fui acordado com uma movimentação inédita até então. Os passageiros estavam reunindo alguns itens em sacolas de plástico e lançando-as ao rio. Quando fui à janela, fiquei espantado ao ver a quantidade de ribeirinhos que remavam suas canoas até próximo de nosso navio esperando coletar, nas sacolas, roupas ou comida. Navegávamos agora por canais menores, pequenos braços do Rio Amazonas, de onde podíamos ver de perto todas as formas de vida humana que existiam na beirada do rio. Vinham crianças, vinham famílias. Homens anfíbios, adaptados a viver nas margens do rio, são brasileiros que conhecem um Brasil muito diferente do meu. Vivi por um instante a sensação de estar no Brasil original. As canoas podiam ser tanto a remo quanto motorizadas, e alguns ribeirinhos chegavam a atrelar suas pequenas embarcações na nossa para entrar e vender açaí, camarões e outros produtos da floresta.

Os ribeirinhos em suas canoas nos acompanharam por boa parte do percurso até Belém. Nas margens dos rios podíamos ver suas casas, erguidas sobre palafitas e feitas de madeira. Havia casinhas isoladas, mas também pequenas comunidades reunidas. Existe, de fato, um modo de se viver ali. Igrejas evangélicas se proliferam na região, e barco-escolas levam educação aos cantos mais remotos desse país. A última cidade em que o navio parou antes da capital foi Breves, diante de um novo e lindo pôr-do-sol. Perguntava a mim mesmo se foi penoso o caminho até ali. Difícil, apenas? Não teria sido belo também? O navio ficou uma hora parado no porto de Breves, e os botos vieram expor sua exuberância. Em uma das cenas mais lindas que vi em toda a minha vida, eles saltavam bem alto, rodopiando no ar, fazendo um balé nas águas. Maravilhado com o baile, eu podia apenas confirmar com os olhos que, de fato, os botos, criaturas do folclore amazônico, possuem o dorso encantadora e surpreendentemente cor-de-rosa. 

Amanhecemos no dia seguinte já nas cercanias de Belém. Depois de tanta selva, banhada por um rio imenso, tínhamos à vista um amplo aglomerado de arranha-céus. A tripulação se aglomerava na frente do navio para poder ver a cidade de longe. Havia, principalmente uma agitação entre as crianças. Muitas delas estavam vendo prédios pela primeira vez na vida: aquilo é um prédio, mamãe? Nos próximos dias, em Belém, o Pará guardava ainda algumas surpresas: uma metrópole dinâmica, culturalmente agitada, no meio da selva; uma ilha fluvial enorme, no meio do Rio Amazonas, com uma população incrível de búfalos; um mercado símbolo do Brasil, com sua miríade de aromas, que vende os maiores peixes de rio do mundo; uma senhora mística que vende produtos que solucionam, desde um amor mal resolvido, a problemas financeiros.

No Pará, abri em mim uma janela por onde diversos mundos penetraram radiantes. Descobri que para amar o mundo todo, preciso amar todos os lados dele, sejam o conhecido e o desconhecido, o luminoso e o obscuro, o de dentro e o de fora. No final, senti que tudo o que eu vivi nessa viagem havia retornado a mim sob a forma de resposta e concretização.







Um comentário:

  1. Resgatar essa memória contada pelo seu olhar, renasceu em mim as vivências daqueles dias... que privilégio essa experiência de vida!

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