"Entre as moscas sanguinárias
a Fruteira desembarca
despejando o café e os frutos
nos seus barcos que transportarão
como bandejas o tesouro
das nossas terras submersas."
Pablo Neruda
De volta ao istmo central de minha terra, me voltam, também, as lembranças das palavras de Eduardo Galeano na definitiva obra As veias abertas da América Latina. Nesta terra, é importante não nascer importante: colônias ricas tiveram todas as suas riquezas drenadas para a acumulação capitalista europeia; colônias pobres, de terras pouco generosas, apresentaram maior paz e prosperidade. É muito difícil saber para onde o mundo caminha, mas a América nos forneceu diferentes caminhos para lidar com os desafios do mundo. Hoje, podemos observá-los e, sobretudo, imaginar um destino melhor para este povo e esta terra.
Quando li pela primeira vez As veias abertas da América Latina, estava trilhando os caminhos do Monte Roraima. Nessa ocasião, me chamou a atenção o modo como o desenvolvimento deixou alguns náufragos pelo caminho. As populações indígenas do Brasil e da Venezuela, geograficamente isoladas dos principais centros de seus respectivos países, separadas por fronteiras nacionais que nada tinham a ver com eles, buscavam compreender qual seu papel nesse novo mundo que lhes foi proposto após a colonização. Já na pequena e tenaz Cuba, retomei a leitura do livro para compreender melhor a Cuba pré-revolucionária, em que a monocultura do açúcar criava relações de dependência econômica e desigualdade social entre as oligarquias açucareiras e o grosso da população camponesa.
Dessa vez, novamente viajando pela doce
cintura da América, como cunhou Pablo Neruda, passei por Costa Rica e Panamá.
Dois países muito próximos, mas com significantes diferenças entre si. O
caminho que trouxe o passado até o presente foi uma linha reta, mas o futuro é
repleto de bifurcações. A Costa Rica hoje anda rumo ao futuro por rotas largas
e bem sinalizadas. O Panamá, por sua vez, após um longo histórico de ingerência
norte-americana, está, finalmente, assentando as bases de seu próprio caminho.
Em 1949, a Costa Rica optou seguir por um caminho ainda desconhecido
no mundo, o caminho da paz: extinguiu completamente seu exército e adotou, em sua constituição, a neutralidade política. Enquanto seus vizinhos viveram - e ainda vivem - terríveis conflitos armados e instabilidade política, a Costa Rica encontrou um caminho para seu próprio desenvolvimento sustentável e independente. Diversificou sua economia, deixou de ser uma república de bananas e optou pelo ambientalismo, bem antes de isso ser pauta dentre os chefes de estado de todo o mundo. Hoje o país tem 30% de seu território protegido como reserva natural, quase a totalidade de sua energia gerada por fontes renováveis e, dentre todas as nações do mundo, é a que está mais próxima de se tornar neutra em carbono.
Costa Rica
Em um continente tão contraditório quanto a América, essa relativa prosperidade costarriquenha tem, em sua gênese, a escassez de recursos naturais e humanos. Localizada nas periferias das mais impressionantes civilizações pré-colombianas - os maias, ao norte, e os incas, ao sul -, a Costa Rica, antes da conquista, era pouco habitada por povos indígenas. O nome Costa Rica, a propósito, é uma trágica ironia: foi dado por Cristóvão Colombo, que relatou ter visto, ali, vastas quantidades de ouro dentre os nativos, imaginando se tratar de uma região riquíssima. Tal riqueza não foi comprovada pela experiência colonizadora: os espanhóis não somente não encontraram nenhuma Eldorado na região, como padeceram, em massa, das doenças tropicais. Além disso, encontraram poucos nativos para escravizar e lhes apresentar a região, o que fez a Costa Rica ser considerada a mais pobre e miserável colônia espanhola em toda a América.
Assim, longe da cobiça europeia, a Costa Rica se desenvolveu a seu próprio modo, com base na agricultura de subsistência e, posteriormente, na exportação de café. Aos poucos, os europeus foram povoando o país, os indígenas, que já eram poucos, foram desaparecendo, e desse modo nasceu uma sociedade igualitária, democrática, sem classe oprimida e essencialmente branca, em pleno cordão tropical do planeta.
A Costa Rica é diferente, singular na América Latina. A primeira impressão do país engana, vem da feiura de sua capital San José. Sem um passado colonial marcante, também não há as grandes e imponentes catedrais, edificações ou mesmo as tão características e belas praças de armas, comuns em toda a América espanhola. Os engarrafamentos e quantidade de carros nos fazem pensar que se trata de mais uma grande e caótica capital latino-americana, a segunda mais recente no continente, atrás apenas de Brasília. No entanto, nas entrelinhas de um aglomerado urbano sem muitos encantos, está uma cidade segura, com enormes parques, um centro empresarial pulsante e com atividades econômicas diversificadas.
Localizada na meseta intervulcânica do Vale Central, as montanhas que envolvem a capital, muitas das quais com vulcões ativos, servem como um convite para que nos desloquemos para o interior do país. A Costa Rica nos convence a explorá-la. O melhor a se fazer é entrar em um carro; sentir na ponta dos dedos a emoção de se perder pelas estradas do país, estreitas, sinuosas, íngremes e lentas. Somos levados por seus caminhos e presenteados com paisagens incríveis que, a despeito das pequenas dimensões do país, são altamente mutáveis e diversas. Sentimos a liberdade de se poder ir quando e como quiser, de se dobrar esta ou aquela esquina, de se usar o tempo como bem entendermos.
No interior, vemos uma terra misteriosa, como se de repente descobríssemos uma terra distante, fértil, mas indisponível para a exploração estrangeira. Antes, trata-se de uma paisagem original, cuja intervenção humana se dá com muito respeito e adoração. Os ticos, como são conhecidos os costarriquenhos pelo uso de diminutivos com essa terminação, que têm em sua origem um hiato cultural entre os povos nativos e os europeus, transcenderam o apreço pelo meio ambiente ao nível de um elemento vital para sua identidade patriótica. Existe uma expressão que simboliza tudo isso, Pura Vida, uma versão tropical do Carpe Diem. É amplamente usada como uma saudação, para desejar boas energias, mas é, sobretudo, uma filosofia com muitos significados e que não carece de maiores explicações. É a simplicidade e a boa relação com a natureza que norteiam a cultura costarriquenha, e o conceito de Pura Vida está no cerne do que a nação quer deixar como sua contribuição para o conhecimento da humanidade.
A natureza, por sua vez, faz questão de mostrar a força que emana de suas profundezas para se afirmar como motivo de veneração e respeito. O país é repleto de vulcões, e o mais impressionante deles, o Arenal, é um verdadeiro inquieto monstro geológico. O cone de pedra que brotou do interior do planeta esteve adormecido por 400 anos até que uma violenta explosão em 1968 destruiu três vilarejos próximos. Até 2010, o vulcão expelia, quase que diariamente, cinzas, gases e partículas sólidas. Desde então, ele dorme tranquilo novamente. As encostas do cone possuem marcas do escoamento de lavas do passado. Os caminhos que nos levam até próximo à base do vulcão são acompanhados por rochas vulcânicas enegrecidas e recentes, que mostram toda a magnitude da força que o Arenal pode atingir.
Por todo o país se pode encontrar belíssimos parques nacionais e uma vasta vida selvagem. Nas estradas, é comum situações em que um congestionamento de carros se forma para que um bicho-preguiça ou uma família de quatis possa atravessar a pista com segurança. Ao chegar a uma ponte alta sobre um rio, comecei a reduzir a velocidade do carro, até que parei e estacionei. Turistas se aglomeravam nas beiradas da ponte, guardas de trânsito tentavam organizar o tráfego. Quando desci do carro e me juntei ao alvoroço, descobri que estavam todos observando o banho de sol de ao menos uma dúzia de enormes crocodilos.
Cenas assim são mais comuns do que se imagina nas estradas costarriquenhas. Em um país tão comprometido com a preservação do meio ambiente, a ideia não é abrir grandes rodovias, que possam, ocasionalmente, causar isolamento de populações da mesma espécie ou morte de vida selvagem por atropelamento. Pelo contrário, as estradas, se pavimentadas, são cheias de curva e de difícil direção, mas necessárias para se conhecer um país tão pequeno como naturalmente diverso.
Uma das formas possíveis de prosperidade econômica na porção americana ao sul do Rio Bravo era a combinação entre café e ferrovia. Na Costa Rica, os pequenos agricultores se beneficiaram do gosto europeu pelo café e passaram a lucrar muito com as exportações. A partir de 1870, o general Tomás Guardia, com apoio dos barões do café, iniciou a construção da Ferrovia Atlântica, prodigiosa obra que conectou o planalto ao novo porto caribenho de Limón. Até então, para escoar a produção, o café era transportado em carro de boi até o porto de Puntarenas, no Oceano Pacífico, de onde era levado até a Colômbia. Então, bordejando a América do Sul, o café ia até o Oceano Atlântico, onde se conectava às rotas comerciais marítimas europeias. O empreendimento foi realizado pelo empresário nova-iorquino Minor Cooper Keith. A construção da ferrovia, no entanto, mostrou-se extraordinariamente desafiadora devido ao terreno acidentado, selva espessa, chuvas torrenciais e ocorrência de malária, febre amarela, disenteria e outras doenças tropicais. Com dificuldades de cumprir a dívida da obra, o governo costa-riquenho cedeu ao empresário 800 mil acres de terra na planície do Caribe, além de conceder a operação da ferrovia por 99 anos. Nessa terra, Keith começou a plantar e exportar bananas, o que logo se tornou sua principal unidade de negócio. Assim nasceu a poderosa United Fruit Company.
Finalizei minha passagem pela Costa Rica na melancólica estação de trem de San José. Antes símbolo do progresso, do domínio do homem sobre a natureza, hoje o sistema ferroviário costa-riquenho é precário. Quando não há embarque ou desembarque de passageiros, a estação fica deserta e sem vida, envolta por um denso silêncio. Sobre esses trilhos, iniciou-se um dos capítulos mais duros da América Latina, em que a United Fruit Company inaugurou um segundo período de colonização, controlando portos, ferrovias, interferindo em governos e, sobretudo, drenando a riqueza latino-americana para os Estados Unidos. Com a comercialização de bananas, os Estados Unidos iam consolidando seu império transnacional e adquirindo cada vez mais poder sobre os países da América Central.
Panamá
Inaugurado em 1914, o Canal do Panamá é um dos grandes feitos da humanidade. Incrível como, com alguns conceitos de Física básica, dois oceanos desnivelados foram conectados, criando um novo horizonte de possibilidades no continente americano. Um conjunto de esclusas e comportas permite que a água, por pressão hidrostática, passe do lado mais elevado para o mais baixo. Quando o nível da coluna d'água se iguala, os navios vão atravessando, em etapas, o continente, até desembocarem no outro oceano. Antes, o único jeito de se passar do Oceano Atlântico ao Pacífico era pelo extremo sul da América do Sul, na Terra do Fogo, via estreito de Magalhães ou cabo Horn, uma das regiões de mais difícil navegação do planeta.
Tal feito de engenharia beneficiou um país muito mais do que os outros: os Estados Unidos, que agora tinham um caminho rápido e fácil que ligava as costas leste e oeste de seu território. Era o que faltava ao longo plano expansionista estadunidense, que primeiro alcançou o Oceano Pacífico, depois a região polar, até expandir seus tentáculos em direção à América Central. O Destino Manifesto chegava ao seu auge com o canal do Panamá, construído e gerido por anos pelos Estados Unidos. Em meados de 1880, quando o Panamá fazia parte da Grã-Colômbia de Simón Bolívar, houve a primeira tentativa de construção do canal com capital majoritariamente francês. Os franceses, contudo, dada a dificuldade e a alta taxa de mortalidade no empreendimento, desistiram da obra. Os Estados Unidos, não obtendo sucesso nas negociações com a Colômbia para a continuidade do projeto, passaram a financiar movimentos separatistas no Panamá. Em 3 de outubro de 1903, o Panamá proclamou independência da Colômbia, e quinze dias depois, foi firmado um tratado que concedia aos Estados Unidos o uso, controle e ocupação perpétua da Zona do Canal, conferindo ao Panamá a condição, na prática, de protetorado americano.
Hoje o Panamá lida com um passado cujos caminhos não foram traçados pelos panamenhos; vive a sua primeira independência de fato. A sede administrativa do canal foi montada, pelos Estados Unidos, no topo de uma colina, à semelhança de um Monte Olimpo, morada dos deuses, com eloquentes referências renascentistas, em que a razão humana deveria reinar sobre o mundo. Logo ao lado, o "bairro americano" foi uma região onde os estadunidenses que trabalhavam no canal se autossegregavam dos latinos panamenhos em suas belas casas com jardins que pareciam retiradas dos subúrbios americanos. Em 1977, os dois países assinaram um tratado de transição da administração do canal, até que em 1999 o governo do Panamá assumiu o controle de vez.
Com grande parte da riqueza do canal agora permanecendo no Panamá, o país se reinventou em direção ao multiculturalismo, globalismo e diversidade. Diferentemente da Costa Rica, a cultura nativa panamenha é muito presente no país. A etnia Guna preenche as ruas da capital com o colorido das molas, arte têxtil que compõe sobretudo a vestimenta feminina. A maioria dos gunas vive em três comarcas politicamente autônomas dentro do Estado do Panamá, onde preservam suas tradições e desenvolvem atividades econômicas como o turismo. Até 2010, o povo era referido como "Kuna", mas uma reforma ortográfica alterou a grafia para "Guna". Em meio aos esforços para se estabelecer uma gramática guna, um idioma de fato, não um dialeto ou variante, definiu-se o uso de apenas 15 letras do alfabeto latino, ficando o "K" de fora. Essa mudança faz parte de um conjunto de medidas para se criar uma educação bilíngue no país.
O colorido da Cidade do Panamá não se dá somente pelas molas, mas também pelos diablos rojos, antigos ônibus escolares americanos adquiridos em segunda mão para realizar o transporte público coletivo da cidade. Contrabalanceando o concreto dos arranha-céus, os diabos vermelhos, todos customizados com uma arte cheia de cores, inevitavelmente se tornaram um símbolo do país. Não podia passar pelo Panamá sem ter a experiência de andar em um deles: após passar pela sede administrativa do canal, embarquei em um ônibus qualquer, indo para qualquer lugar. O preço é muito barato, alguns centavos de dólar, moeda praticada no país. Por dentro, é nítida a falta de manutenção e o estado precário dos bancos; é o transporte das camadas populares, ameaçado de extinção com o desenvolvimento econômico experienciado pela cidade. Dentro do ônibus, quase todos eram indígenas, de estatura mais baixa, o que se adequava aos banquinhos apertados que outrora levavam crianças para a escola. O ônibus começou a se afastar da cidade: atravessou a Ponte das Américas, que por muito tempo foi a única passagem terrestre entre as porções norte e sul do país, separadas pelo canal. Ali existe um mirante em homenagem aos 150 anos da cultura chinesa no Panamá. Seguiu mais um pouco e rapidamente a grande metrópole global de prédios enormes deu lugar a barracos e a moradias precárias. Estava em uma estrada e desci em uma parada perto de um grande posto, de onde seria fácil arranjar transporte de volta para o núcleo urbano. Aos poucos me foi revelado um país pobre, rural e indígena em seu interior, que dessa vez não tive a oportunidade de conhecer.
***
Quanto mais do mundo eu vivo, mais eu entendo o quanto o mundo é complexo. A América é lar da nação mais poderosa do mundo, mas também das mais pobres e desiguais. Tem país de negro, país de branco, país miscigenado, país indígena, país comunista, país sustentável, país com a maior obra de engenharia do século, vulcão, floresta tropical, dois oceanos. Longe de conhecermos o melhor caminho a seguir em um futuro que é inexoravelmente incerto, podemos ver, na América, diversas experiências civilizatórias que deram certo, ou não.
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