sábado, 16 de agosto de 2025

Viagem ao Borborema (cordel)

Buíque tinha a aparência de um corpo aleijado: o largo da Feira formava o tronco, a rua da Pedra e a rua da Palha serviam de pernas, uma quase estirada, a outra curvada, dando um passo, galgando um monte; a rua da Cruz, onde ficava o cemitério velho, constituía o braço único, levantado; e a cabeça era a igreja, de torre fina, povoada de corujas.

 

(...) porque nos redemoinhos que açoitavam a catinga pelada havia provavelmente um ser furioso, soprando, assobiando, torcendo paus e rebentando galhos. Essa criatura de sonho e bagunça, um cavalo de asas, não me causou espanto.  

Graciliano Ramos, Infância 




Como um dia prometi
Fui-me embora pro sertão
Onde a vida é austera
Mas não foi de supetão
Fui até o Borborema
Onde o vento é oração.

Levo pouco na mochila
Pois escolho a liberdade
Quero tempo pra viver
Com vigor e sobriedade
Carrego só o preciso
Para andar com lealdade.

Eu corro por essa serra
Sem pressa ou temor
O que ponho nesses versos
É fruto do bom humor
O cordel cruza o tempo
Deixo aqui o meu clamor.

***

Começo por Alagoas
Que já foi Capitania
Junto à Pernambuco outrora
Conquistou soberania
Quando a Coroa puniu
Quem República queria.

Bem depois do litoral,
Onde sobem altos prédios
Fica União dos Palmares
Como um forte intermédio
Cidade menor que a lenda
Que venceu mil sacrilégios.

No Brasil, muitos quilombos
Conseguiram resistir
Mas nenhum foi tão valente
Nem tão duro de cair
Quanto o dos Palmares livres
Que descrevo a seguir.

Foi na Serra da Barriga
Ventre antigo de pedra gasta
Isolada dos engenhos
Prova da história nefasta
De negros escravizados
Que os grilhões já não arrastam.
 
Em lugar de muita mata
Onde o branco não pisava
Cresciam muitas palmeiras
Entre o mato e serra brava
Seus frutos e sua palha
O quilombo alimentava.

Quilombo vem do Bantu,
Quer dizer acampamento
O termo exato é Mucambo,
Refúgio em movimento
Mas virou sinônimo forte
De união e pertencimento.

Por doze grandes mucambos
Palmares foi formado.
O maior deste país,
Quase um Estado alçado.
Teve vinte mil pessoas,
No Nordeste assentado.

Ganga Zumba era então
Um líder muito querido
Mas um trato mal pensado
Com os portugueses cumprido
Foi pior que traição:
Foi um passo mal medido.

Esse combinado dizia:
Quem dali fosse nascido
Já seria homem livre
Mas o negro foragido
Era entregue aos senhores,
Mesmo tendo ali abrigo.

Um novo líder assim
Foi pelo povo aclamado
Homem de pele retinta
Por seus iguais respeitado
Zumbi dos Palmares rei
Resistir foi seu legado.

Zumbi nasceu em Palmares
Aos seis anos virou Francisco
Batizado como cristão
Sua vida tinha menos risco
Sobrinho de Ganga Zumba
Se tornou guerreiro mítico.

Zumbi, tal qual o príncipe,
Tinha o sangue em ebulição,
Ao ver seu povo vendido
Por acordo e traição.
Não vingava um só destino,
Mas lutava a nação.

Com o branco, não deu acordo
Liberdade é valentia
Negro nunca se dobrava
Nem fazia parceria
Zumbi voltou pro Quilombo
E a revolta principia.

Para derrotar Palmares,
Bandeirantes traiçoeiros,
Pela Coroa recrutados,
Feitos nobres cavaleiros,
Eram os verdadeiros selvagens
Que deram golpe derradeiro.

Zumbi foi apunhalado
Mas lutou bravamente
Sua cabeça foi cortada
E levada de presente
Para servir como exemplo
Mesmo sendo ele inocente.

Objetivo declarado
Era provar, por A mais B
Que Zumbi não era eterno,
Mas taí pra quem quer ver:
O nome de Zumbi vive
Em quem luta pra vencer.

Eu me pergunto insistente
Se a humanidade tem cura
Quando esconde os seus heróis
Sob o véu da amargura
Mas Zumbi segue presente
Na memória que perdura.

***

De Palmares me despedi
Com respeito e reverência
Mas o chão do sertão vasto
Tem mais que resistência
Tem pedra, rio e silêncio
Que falam com inteligência.

Fui então ao Catimbau
Na cidade de Buíque
Entre agreste e sertão
Com olhar que multiplique
Essa terra de belezas
Muito além do xique-xique.

Parece coisa de filme
Do tipo de Hollywood
Mas com molho brasileiro
De gente de atitude
No Catimbau cada cena
É poesia em plenitude.

Vamos falar da cidade
Que é berço de literatura,
Inspirou Graciliano
Na Infância, rija e dura.
Denunciou a pobreza
Com palavra sem censura.

Sobre Buíque disse o autor:
Tem aparência aleijada
Seu tronco era largo e curvo,
Com a espinha encurvada.
Duas ruas eram as pernas,
Uma delas estirada.

Mais acima da cidade,
Nos agudos da serra fria,
Surge o Vale encantado,
Feito sonho ou fantasia
Tem pintura nas pedras
E uma bruma de magia.

Por inteira na Caatinga,
A floresta esbranquiçada
Quando chove fica verde
E esclarece a madrugada
É Brasil em sua essência,
Parte de qualquer jornada.

Nos tempos antes de Cristo
Por aqui já tinha gente,
Um povo que a pedra guarda
De maneira permanente
Com tinta na parede bruta,
Revela um grito latente.

O vermelho a reluzir,
Como sangue sobre a rocha
Uma arte geométrica
Das cavernas desabrocha
Em morro alto e pedra nua
Vive o tempo que arrocha.
 
***

Do bando de Lampião
Dezoito vêm dessa terra
O massacre de Angico
A maior de todas guerras
À beira do São Francisco
Foi ao sul algumas léguas.

Quando o bando derrotado,
Com a vida a reconstruir
Sem o líder carismático,
Qual melhor caminho seguir?
Onze chegaram à Buíque
Que acolheu sem reprimir.

Dentre os sobreviventes
Um de nome Candeeiro
Com coragem se armou
Contra um destino certeiro
Lampião foi sua escola
Fez-se bravo cangaceiro.

A história de Candeeiro
No sertão ainda soa
Nunca foi um trapaceiro
Era um pássaro que voa
Só queria sobreviver
Da sina que não perdoa.

Enxergava na distância
Mesmo em noite de breu
Tinha o faro e a esperteza
De quem nunca se perdeu
Candeeiro era a chama
Que do cangaço nasceu.

Nem a lua minguante
Conseguia lhe atrasar  
Andava firme e seguro
Sabendo se camuflar
Tinha o dom de perceber
O perigo a espreitar.

Depois deixou Pernambuco
Pra travar nova missão
Foi soldado nas seringas
Lá pros lados do Acre, então
Na batalha contra a fome
A borracha foi seu pão.

Faleceu lá em Arcoverde  
Com noventa e nove anos  
Foi o último cangaceiro  
Dos que foram veteranos  
Apagou-se a lamparina  
Que alumia os mais humanos.

***

Apresento a trajetória
De outro bravo cangaceiro
Jararaca é sua glória
Homem duro e justiceiro
Santo vivo no sertão 
Mais tenaz que um facheiro.

Nasceu também em Buíque,
Em Mossoró consagrou-se
Contra fazendeiros ricos
O seu rifle levantou-se
Mas de forma violenta
O destino seu fim trouxe.

Foi vítima de autoridade
Que abusou de seu poder
Cavou a própria cova
Sem poder se defender
Enterrado ainda vivo
No suplício até morrer.

No leito de despedida
Pediu perdão ao Senhor
Deixou a vida bandida
Abraçando o Redentor
Via-crúcis sertaneja
O seu fim foi sofredor.

Seu túmulo é destino
De romeiro e procissão
Milagres vêm do divino
Assim conta a tradição
Quando Dia de Finados
É o mais visto do sertão.

***

No Brasil se costuma crer
Que somos pessoas cordiais
Mas quanto mais eu ando,
Mais vejo histórias brutais
Começou lá com Zumbi
E segue até os dias atuais.

O Catimbau virou Parque
Com sessenta mil hectares
A terra virou do Estado
Mas se tu bem me escutares
Verás que já havia gente
Ostentando seus cocares.

Com a identidade roubada,
Muitos já não se entendiam
Se achavam pardos, caboclos,
Mas indígenas já seriam
Na defesa de suas terras,
Suas raízes descobriram.

Se há tanto tempo habitada
É porque a terra é boa
Isso gerou a cobiça
De quem da justiça destoa
Certos fazendeiros querem
Reinar com uma coroa.

O povo Kapinawá
Precisou se defender
Uma terra a demarcar
Os grileiros por vencer
Onde colocar a cerca
Pra seu direito valer?

Já os grileiros se juntavam
Com jagunço e delegado,
Falsificavam papéis
Num cartório combinado
Transformavam a mentira
Num direito registrado.

Ali a demarcação
Não garante proteção,
Pois a terra que sobrou
Foi vendida em traição
Quem ainda nela resiste
Sofre assédio e opressão.

***

Como diz Luiz Gonzaga,
A vida do viajante
Precisa de boas lembranças
E amigos bem marcantes.
Peguei doença de estrada,
Com o peito flamejante.

Uma viagem que se preze
Pelo Nordeste a percorrer
Tem que fazer um desvio
Pro Velho Chico conhecer
Rio que mesmo na seca
Faz a vida florescer.

Vindo de Minas Gerais
Atravessa a Bahia
Em Remanso muda a rota
Pro oceano ele se vira
Vem pra desaguar no mar
Em Piaçabuçu termina.

Entre Alagoas e Sergipe
O rio se encontra ao mar.
Cercado por piaçavas,
Palmeiras a balançar.
Beleza que Pero Vaz
Em suas cartas fez brilhar.

Desse lado do Ocidente
Que os ingleses desconhecem,
Eu conheci o John Lennon,
Barqueiro que tudo esclarece
Mostrando a história da terra
E das dunas que prevalecem.

Com olhar triste ele diz:
"O rio está salgado"
O palmeiral se torna mangue,
Os surubins, enxugados
O mar empurrou com força
Um rio bem castigado.

De um antigo povoado
Só resta ainda o farol.
Ali mais de cem famílias
Perderam tudo, sem dó.
As pescas no rio doce
Não enchem mais o anzol.

***

O que aprendi no caminho
Foi mais que história e chão
Cada passo me ensinou
Com coragem e coração
O sertão guarda segredos
Que ensinam a lição.

Andar por esse país
É buscar o próprio alento
Nos rios, serras e matas
No vento e no firmamento
Talvez um dia eu descanse
Com alegria e acalento.


Alto da Serra da Barriga, União dos Palmares


Centro de União dos Palmares




Povoado Vale do Catimbau, município de Buíque






Museu em Buíque



Pinturas Rupestres, sítio Alcobaça



Piaçabuçu, foz do São Francisco





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