sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Incursão: Parte II - sob as bençãos do cavaleiro São Jorge

De Brasília à Chapada dos Veadeiros, a paisagem é típica do Centro-Oeste brasileiro: mares de soja, o "ouro verde" que destrói o nosso Cerrado. Dos dois lados da rodovia, as plantações se perdem no horizonte. Placas ao longo do percurso nos lembram, paradoxalmente, da necessidade de preservação da diversidade natural da região. Ao entrar no parque da Chapada dos Veadeiros, no entanto, o Cerrado se apresenta em sua melhor forma: belas árvores, com o esperado verde da época das chuvas e os inconfundíveis caules retorcidos. 




A Chapada é a formação geológica mais antigas da América do Sul. Com cerca de 1,8 bilhão de anos, não há nenhum acontecimento terrestre que ela não tenha presenciado. Moldada por intensas atividades vulcânicas, era integrada a Pangeia e resistiu à deriva continental. Hoje, compõe um rico patrimônio mineral e natural, com vasta fauna e flora. Também a História da humanidade é registrada aqui: inscrições rupestres datadas de 12 mil anos podem ser vistas por toda a região, que resguarda quase uma centena de sítios arqueológicos pré-históricos. 

No capítulo "O Homem", de "Os Sertões", Euclides da Cunha examina a complexidade étnica brasileira. Afirma os três elementos constituidores da nossa sociedade: o indígena, homo americanos, o negro banto, homo afer, e o português, intelectual de origem celta, fator aristocrático de nossa gens. O brasileiro surgiria, assim, de uma complexa combinação ternária, que derivaria em três combinações binárias, sendo a abstrata tendência o tipo pardo; convergência do mulato, do curiboca e do cafuz. Nesse contexto, o Homem da Chapada dos Veadeiros é um perfeito exemplo do resultado desse grande viveiro étnico. Habitada por numerosos povos indígenas, eles permaneceram intactos até a chegada do homem branco, no século XVIII, durante o ciclo do ouro. Entradas e bandeiras cruzavam o planalto central com levas de escravos africanos e dizimavam populações indígenas pelo caminho. Logo começou a haver conflitos entre índios e mineradores, que começavam a criar vilas e garimpos para explorar metais preciosos. O escravo negro, que dispunha de uma inexplorada natureza selvagem, aproveitava para formar imensos quilombos, existentes até hoje e disponíveis para visitação. De fato, como constatava Euclides da Cunha, também na Chapada a forma do negro e do índio, principalmente, se encontram mais diluídas.

Chegamos à Vila de São Jorge, distrito distante em 30 km de Alto Paraíso de Goiás. Antigo acampamento de garimpeiros de cristal, fundada por devotos de São Jorge, a vila é hoje um apêndice do charmoso modo de vida rústico. As ruas são de terra, com pouquíssima iluminação pública. Na pousada, incenso e muitas velas. Prefere-se adotar a decoração simples; muitas pousadas sequer dispõem de iluminação elétrica. A vila atrai jovens e hippies, que exibem uma grande variedade de produtos artesanais. Massagens terapêuticas também são oferecidas. As constantes referências a São Jorge por toda a vila contribuem para a atmosfera exotérica. É considerada a “Búzios do Cerrado”, já que a praiana vila de pescadores fluminense costumava ser frequentada por artistas e intelectuais. Aqui somos seduzidos pela vida interiorana, e deixamos a luz do dia guiar nossas atividades.



Em São Jorge, a um pequeno passo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, os atrativos naturais nos oferecem inúmeras possibilidades. Há duas longas trilhas de cerca de 10 km dentro do parque, e diversas veredas e cachoeiras nos arredores. Na cachoeira de Raizema, surpreendi-me com um palco decorado com semblantes de ícones do Rock and Roll dos anos 1960 e 1970 em um lugar tão remoto. Lá estavam John Lennon, Jimmy Hendrix, Janis Joplin e Raul Seixas. Após a trilha de cerca de 2 km com um bom banho de cachoeira, terminei em um copo d’água – retirada da fonte e a melhor da região, segundo o anfitrião – com a população local. Muito alegres e receptivos, viviam integrados à natureza, e o palco funcionava como um templo para eles: faziam instrumentos artesanais e viviam pela música e pela arte. Pedi para experimentar alguns instrumentos e acabamos trocando algumas notas musicais.

Em clima tropical, sobretudo de altitude, janeiro é mês de estiagem. Durante a estadia, a energia elétrica em nenhum momento funcionou mais do que um dia ininterruptamente, e não houve dia sequer que não tenha chovido. Na trilha dos saltos – altas e belas quedas d’água – uma tempestade encharcou nosso caminho de volta. No dia seguinte, quando visitamos os cânions, por pouco não tivemos o mesmo desfecho. Resquícios do tempo de garimpo podem ser encontrados por todo o parque: a cachoeira do abismo foi habitada pelo último garimpeiro da região, e sua casa, com seus instrumentos de trabalho, pode ser visitada; nas trilhas do Parque Nacional, imensos buracos indicam a presença de outrora intensa atividade garimpeira. Algumas trilhas são ainda bem selvagens, sem veredas muito claras, que exigem atenção de todos que por elas se aventuram. No parque é necessário preencher um documento assumindo os riscos da trilha. Piscinas térmicas naturais foram ótimas alternativas para os fins de tarde. Aventurar-se de carro nas estradas de terra, sob a bela vista de montanhas e chapadões moldando os céus, foram, também, bons programas. Duas viagens distintas podem ser feitas nos períodos de seca e estiagem. Há ainda muito para se ver por aqui. O céu nublado, infelizmente, não nos permitiu ver o famoso pôr-do-sol da Chapada, e o místico lual de São Jorge, tampouco.

Nas próximas passagens, ainda haverá trilhas a serem desbravadas, rios e cachoeiras a serem explorados, uma tarde a ser gasta em uma comunidade quilombola, pinturas rupestres a serem admiradas. As possibilidades da Chapada dos Veadeiros são infinitas.




sábado, 18 de janeiro de 2014

Incursão: Parte I - impressões da capital

Um grande homem deve conhecer a história - e a capital - de sua pátria.

Brasília é a consequência de uma capital administrativa que não é nem capital financeira, nem cultural. Construída à moda JK, com largas e imensas avenidas, o sítio urbano não favorece a circulação de pessoas. Há raras ciclovias, muito poucas calçadas, e uma geografia favorável à expansão do transporte coletivo ainda pouco explorada. O fluxo é essencialmente baseado em veículos particulares, e caminhões-cegonhas são constantes sobretudo na parte final da Rodovia BR-040, que liga Belo Horizonte à Brasília - um retrocesso às grandes cidades do mundo. Tal cenário torna a cidade, a princípio, sóbria, esvaziada e pouco receptiva. 


Planejado em setores e com nomes de rua em caráteres alfa-numéricos, o Plano Piloto ainda é motivo de muitas controvérsias. A segregação das atividades e dos serviços não estimula a integração urbana. O Eixo Monumental é um reflexo da formação histórica e política da nação: longas distâncias e poucas calçadas, com os edifícios dos três poderes separadas por largas e movimentadas avenidas de semáforos e faixas de pedestres quase inexistentes, inibem a mobilização e a participação política popular; a Praça dos Três Poderes é muito dispersiva. Em frente ao Legislativo, uma pequena aglomeração da velha guarda petista reivindicava a pena imposta aos mensaleiros; no Executivo, um grupo um pouco maior de estudantes pedia a federalização da Universidade Gama Filho. Os primeiros sob a bandeira da CUT, e os segundos, sob a da UNE. Ainda muito pouco em relação aos panelaços de Buenos Aires, ou a toda efervescência política de Santiago e até mesmo de demais capitais sul-americanas, em que geralmente funcionam como centros de polarização econômica e cultural. Há, contudo, perspectivas de melhorias: ao passar pelo Congresso, é impossível não se lembrar da icônica imagem das revoltas de junho, quando manifestantes subiram no teto e suas sombras foram projetadas na cúpula arquitetada por Oscar Niemeyer.


Desde a primeira constituição republicana já se idealizava uma capital no centro do país. Embora os cerca de 1.100 km desde o Rio de Janeiro tenham sido cansativos, Brasília é, de fato, muito bem localizada espacialmente. A estrada, agora privatizada, é majoritariamente boa. Muito bem de Rio à Juiz de Fora, entre Juiz de Fora e Belo Horizonte se encontra, provavelmente, o pior trecho. De Belo Horizonte a Brasília, bastantes quilômetros duplicados, até a bifurcação com a BR-365, e daí em diante uma boa estrada, cortando o Planalto Central em grandes e lisas retas, ainda que em mão única. Na parte final, uma maior concentração de caminhões reduziu o ritmo da viagem. Foram feitas duas paradas estratégicas em Minas Gerais durante o percurso: uma em Brumadinho, onde pude admirar a beleza de Inhotim - parque com belos jardins, lagos, esculturas ao ar livre, e diversas galerias de artes plásticas contemporâneas -, e outra em Três Marias, onde funciona uma das mais importantes represas do país, em pleno Rio São Francisco.

As obras de Niemeyer são realmente muito bonitas. É o que faz a visita valer a pena. A arquitetura modernista de Brasília é uma particularidade que não pode ser observada em nenhuma outra cidade do mundo. Sua obra favorita, o Congresso, abriga o plenário dos senadores, semiesfera à esquerda voltada para baixo, e dos deputados, à direita e voltada para cima. Uma visita ao interior do Congresso e do Supremo Tribunal Federal revela também a delicadeza da decoração. Este, com mobília antiga datada do século XIX trazida do Rio de Janeiro, antiga capital, e aquele com obras de arte moderna, com belos vitrais projetados pelo mesmo artista encarregado pelos vitrais da Catedral, que, por sua vez, dispõe de uma beleza inigualável. O Memorial JK, outro projeto de Niemeyer, chama a atenção pela genialidade e ousadia do arquiteto em desenhar a foice, símbolo comunista, em plena ditadura militar. A Esplanada dos Ministérios é imensa, mas hoje já está pequena com o crescente número de novos ministérios; edifícios abrigam mais de uma repartição, e anexos foram construídos.

A visita à Brasília é fundamental para a compreensão da história do país. Nas diversas edificações da cidade, muitos artefatos referentes a própria construção, registros da "Constituição Cidadã", homenagens aos candangos, muitas menções à JK e presentes de uma multiplicidade de chefes de Estado mundo afora. Nas entradas da cidade, muitas obras para a Copa do Mundo. O estádio está pronto e é também muito bonito e bem localizado. O simpático Catetinho, 30 km afastado do centro, é um recanto da simplicidade de JK: palácio modesto, construído em dez dias com madeira e nomeado em homenagem à antiga capital, foi o ponto de partida para a construção de Brasília.

No Palácio da Alvorada, como manda a tradição, depositei sonhos, desejos, e a esperança de dias melhores.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Caravana



Após meses, a caravana de iaques retorna ao vilarejo com um membro a menos: o líder Lhakpa havia sido vítima das majestosas montanhas do Himalaia. Seu pai, Tinle, não se conforma com a morte do filho e acusa Karma de culpa, sob alegação de este almejar a liderança do grupo. Tinle, já um ancião, ocupava um cargo de prestígio no pequeno vilarejo tibetano, de modo que o conflito que iniciara dividiu a opinião dos aldeões: alguns eximiam o jovem Karma de culpa, enquanto outros criam na impossibilidade de as montanhas haverem levado Lhakpa.   

O sal norteava a vida da comunidade. Habitantes de um local pouco acessível, frio, desértico, sem vegetação e isolado, dispunham apenas dele como recurso natural e dependiam de constantes caravanas para trocá-lo por grãos nas planícies. Havia, assim, muita simbologia e espiritualidade envolvendo as expedições, que assumiam grandes dimensões no vilarejo. Tinle fora um importante líder de caravana e repassou a função ao seu filho. Muito magoado com sua morte, tentou vetar que a próxima caravana fosse liderada por Karma. Karma, por sua vez, ignorou as pretensões do ancião e as pregações dos demais sábios da aldeia. Tinle decidiu, logo, montar sua própria caravana com seu segundo filho, Norbou, seu órfão neto, Pasang - ainda uma criança -, sua viúva nora, Pema, e com seus antigos companheiros de caravana, para proteger a herança familiar e se vingar de Karma.       

Baseado em histórias reais, Eric Valli, cineasta e fotógrafo francês, dirigiu o filme "Himalaia", que busca retratar, sobretudo, o modo de vida da população tibetana. Valli é um grande entusiasta da cultura nepalesa e dedica uma notável parte de sua obra à essa região. Compôs um elenco formado majoritariamente por aldeões, muitos dos quais interpretaram si próprios, e aprendeu a língua e traços marcantes da cultura local. Norbou, um dos personagens do filme, é, inclusive, seu amigo pessoal. Desse modo, o filme também exibe um admirável caráter etnográfico e altruísta: o enredo trata um tema tradicional e universal - vingança, conflito de egos e de gerações -, de modo que o contexto em que a história é situada se sobressai. A produção se demonstra única por abranger, com tanta verossimilhança, os desafios de uma civilização esquecida. O próprio diretor, em uma conversa motivacional com o elenco, afirmou que a principal razão do filme era proteger a memória de um povo que "parecia se derreter com o gelo".

Trabalho fotográfico do diretor
De fato, as paisagens são atrações à parte; elas tornam o filme singular. Belíssimas imagens da cordilheira ao longo de toda a trama, com trilha sonora típica, produzem uma sensação de conforto a quem assiste. Além disso, são essenciais na busca pelo retrato das adversidades e do modo de vida dos aldeões, que residem entre quatro e cinco mil metros acima do nível do mar e precisam enfrentar o Himalaia para garantir a sua sobrevivência. A ausência de árvores no vilarejo, a propósito, carrega um valor simbólico muito bem explorado: o contraste à difícil vida nos planaltos é a abundância de árvores na planície. A grande maioria dos habitantes nunca viram uma árvore sequer.  

Movidos pelo sentimento de estarem no teto do mundo, a religião era fundamental para a comunidade. As montanhas eram tratadas como seres temperamentais, e tudo acontecia conforme o desejo dos deuses. Sábios da aldeia procuravam interpretar as mensagens divinas para calcular a data em que as caravanas deveriam partir.  Nesse contexto, a conduta de Karma causou um embate na aldeia: ele mobilizou uma caravana e partiu antes do prazo estabelecido pelos sábios. Foi o estopim para que Tinle também organizasse a sua. Viajou para convocar seu segundo filho, Norbou, que seria transformado no novo líder. Norbou passara a vida toda em um mosteiro e se preparava para se tornar um Lama, líder espiritual tibetano. Além disso, ocupava-se com a pintura, e não se entusiasmou muito com a ideia da caravana, embora tenha acatado o pedido do pai. Tinle também nomeou seu pequeno neto, Pasang, filho de Lhakpa, como futuro líder. Assim, partiram quando a data predefinida chegou, quatro dias após a partida de Karma.

A antítese velho e novo logo se mostrou bastante evidente. Enquanto Tinle orientava o filho a andar devagar como um velho, no ritmo dos iaques, Karma corria com os animais. O conflito de egos mostra a semelhança da conduta entre os dois: eram criticados por só pensarem em si próprios. Tinle pensava apenas em alcançar e superar a caravana de Karma, e Karma esperava chegar às planícies bem antes de seu concorrente; a ambição de Karma afrontava a autoridade de Tinle. Paralelamente, a inocência de Pasang, que via em Karma a figura paterna, já indicava a resolução natural da crise de sucessão. Pasang não compreendia valores religiosos muito bem: julgava as montanhas todas iguais e se animou com a possibilidade de ver demônios. Ainda assim, manifestava muita admiração por seu avô. Sua pureza - a infância de um chefe - foi a força conciliadora entre a juventude rebelde e a autoridade conservadora.

Tinle e Pasang
Tudo se acerta sozinho, tão naturalmente quanto a vida nas montanhas. Tinle e Karma compartilhavam os mesmos sonhos e os mesmos objetivos. O filme ensina que grandes líderes começam desobedecendo, e que, mesmos chefes devem obedecer aos deuses, um bem maior. No final, a velha lição de que é preciso se modernizar sem abdicar das tradições prevalece; um ciclo se fecha, e outro se abre. A grandiosidade do filme se encontra, contudo, na comoção que as cenas na cordilheira do Himalaia nos exercem. Fazer-nos sentirmos tão perto de um povo de cultura exótica e inviolada, e tão envolvidos por uma história simples e de superação foram as grandes virtudes de "Himalaia". 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Entrelinhas latino-americanas

"Muito simplesmente, é o mundo dos destituídos, daqueles que os desertos e serras desoladas da América Latina observam enquanto seus países mudam, deixando-os de lado. É um mundo em que se mantém unido pelo nascimento, pela família e pela morte, e ainda pelo mito, pela fé e pelo fatalismo."
Prefácio da obra 'Outras Américas', de Sebastião Salgado

"A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que eu me dei conta. (...) A menos que você conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário, será obrigado a aceitar minha versão delas. Agora, eu o deixo em companhia de mim, do homem que eu era." 
Ernesto Che Guevara, anotações em seu diário 

América, não invoco o teu nome em vão. 
Quando sujeito ao coração a espada, 

quando aguento na alma a goteira, 
quando pelas janelas 
um novo dia teu me penetra, 
sou e estou na luz que me produz, 
vivo na sombra que me determina, 
durmo e desperto em tua essencial aurora: 
doce como as uvas, e terrível, 
condutor do açúcar e o castigo, 
empapado em esperma de tua espécie, 
amamentado em sangue de tua herança. 
Canto Geral, Pablo Neruda  










Todas as imagens retiradas de "Outras Américas", por Sebastião Salgado
Durante sete anos, o fotógrafo Sebastião Salgado percorreu uma série de países latino-americanos com o intuito de registrar a riqueza e a melancolia de populações esquecidas e marginalizadas pelo continente. Do sertão brasileiro à Cordilheira dos Andes, seguindo por Chile, Bolívia, Peru e Equador até a América Central, parando no México, Salgado conseguiu, com muito primor, captar a pobreza que parece intrínseca à América Latina. Com a belíssima narrativa fotográfica, seu trabalho, chamado de "Outras Américas", relaciona as condições de morte, fome e miséria à paisagem da região. É possível, assim, refletir como o processo de formação histórica - o imperialismo, o mercantilismo, a inserção ao sistema capitalista, a formação de minoritárias classes dominantes, a ingerência estadunidense - pode praticamente exterminar populações nativas sociopoliticamente.

O termo América Latina foi utilizado pela primeira vez pelo poeta colombiano José María Caicedo, em 1856, no poema "As duas Américas", em que demonstrava preocupação com o advento dos Estados Unidos em relação às disputas territoriais com o México. Sentindo a ameaça, afirmou que a população latina tinha o dever de se unir perante a ameaça saxônica: "A raça da América Latina, na frente tem a raça saxônica, inimigo mortal já ameaça destruir sua liberdade e o seu pendão". Além disso, afirmou ainda que "a América do Sul está chamada a defender a liberdade genuína (...) [pois] o mundo jaz entre trevas profundas: na Europa domina o despotismo, na América no Norte, o egoísmo, sede de ouro e hipócrita piedade". Teve os mesmos sentimentos de Simon Bolívar, o libertador, que na década de 1820 já temia os efeitos da Doutrina Monroe, lançada pelos Estados Unidos. Ele já propunha a união dos países hispânicos independentes O termo passou a atingir maiores proporções em 1863, em razão do Segundo Império Francês, de Napoleão III, que encontrou nas origens linguísticas a justificativa da intervenção no México. A intenção era puramente imperialista; fazer a manutenção do poder francês nas Américas e inibir a influência inglesa e estadunidense. A consolidação definitiva do termo

José María Caicedo, contudo, ao unir povos de língua sobretudo espanhola e portuguesa sob uma mesma identidade para motivar a luta anti-imperialista, cometeu um erro que contrariava totalmente seus ideais - e que Napoleão III já havia percebido. América Latina também pode ser interpretada como uma determinação eurocentrista, já que ignora civilizações pré-colombianas, cuja linguagem não deriva do latim. A América foi, de fato, constituída segundo o imaginário europeu. Portugal e Espanha dividiram o continente em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, linha imaginária que dividia o chamado Novo Mundo em dois. Outros povos europeus tiveram interesse nas novas terras, e o território foi fragmentado seguindo os preceitos mercantilistas da época. Demétrio Magnoli e Regina Araújo afirmam, em "O projeto da Alca", que "até a Conquista, a América não existia - a não ser, obviamente, como placa geológica continental." 

Calcula-se que à época da chegada dos europeus ao continente americano, havia aqui uma população com cerca de 80 milhões de habitantes e uma rica diversidade étnica e cultural. Maias, incas e astecas formaram grandes impérios com complexas cidades e com sistemas políticos, sociais e comerciais bem organizados. Os maias dispunham de um sistema de escrita e faziam avançados cálculos matemáticos e observações astronômicas; os astecas chegaram a desenvolver um calendário solar com 365 dias, também dominavam a escrita e detinham grandes conhecimentos de medicina e astronomia. A cidade de Tenochtitlan, por onde foi construída a Cidade do México, era uma das mais bem desenvolvidas da época, mesmo em comparação às cidades europeias, com 200 mil habitantes e um poderoso esquema de drenagem d'água; os incas, por sua vez, obtiveram grandes êxitos arquitetônicos, matemáticos e geométricos. A tentativa de imposição de um padrão civilizatório pelos europeus acarretou um dos maiores genocídios de que se tem registro e provocou um desastre demográfico. Em raríssimas situações o contato entre as culturas foi saudável, de modo que havia tentativas de escravização da comunidade indígena, ao passo que estas organizavam constantes rebeliões. Infelizmente, era difícil combater o poderio de fogo europeu e as doenças por eles transmitidas.

A desenvolvida cidade de Tenochtitlan e a discrepância entre os encaixes incas (abaixo) e encaixes espanhóis (acima) em construções na cidade de Cuzco

Existe uma imensa diversidade cultural na América Latina, como é possível observar no próprio trabalho de Salgado. Ainda assim, a história dos povos latino-americanos concorrem em diversos pontos. Até hoje sofrendo as consequências de um passado imperialista, a América Latina luta pra desvincular a sua imagem da de pobreza. No Brasil, sétima maior economia do mundo, nos esquecemos frequentemente de nos incluir dentre os latino-americanos. O que dizer de países como Guiana, Suriname e Jamaica, cujas línguas oficiais não derivam do latim? E daqueles que, mesmo tendo o espanhol como uma das língua oficiais, ainda se comunicam em guarani, quíchua e aimará? A definição já superou há tempos a questão da linguagem e hoje se expressa sobretudo por características econômicas e sociais. A etiqueta "Latina" é  apenas uma clara referência à cultura do dominador.

No entanto, é inegável a vertente unificadora, associativa e até emancipadora do termo, que estimula a luta anti-imperialista, iniciada por Símon Bolívar. Ainda que tenha conseguido no máximo um acordo de apoio mútuo entre países latino-americanos em caso de intervenção militar estrangeira e que seja em alguns pontos contestado, ele lançou as bases da unidade latina, ganhou uma multiplicidade de seguidores e passou a ser considerado um herói. Seus ideais ainda hoje guiam políticas externas de países como a Venezuela chavista - o socialismo do século XXI, a Aliança Bolivariana para as Américas, que engloba oito países e a "América livre dos Estados Unidos" são alguns dos pilares.

Assim como a história dos países latino-americanos, as perspectivas também são duras. As independências não conseguiram subverter a ordem social vigente; a dominação, antes feita fisicamente pelas respectivas metrópoles, passou a ser feita economicamente pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. A forçada inserção desses países no sistema capitalista como exportadores de matéria-prima e de produtos agrícolas causou um quadro de extrema pobreza e prejudicou os indicadores sociais. Inibiu o desenvolvimento industrial e econômico interno. A ingerência fez inclusive governos com tendências fascistas entrarem na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados. Hoje ainda se convive com muita pobreza extrema. Uma nova tendência esquerdista tem se preocupado mais com a parte social. Mesmo em países de maioria indígena, como a Bolívia e a Guatemala, a dificuldade de mobilização e participação política dessa população é preocupante. A Bolívia elegeu seu primeiro presidente indígena apenas neste século. As origens colonizadoras causaram quadros graves de desigualdade social e concentração fundiária. A América Latina reúne os países com as piores distribuições de renda no mundo. Os 10% mais ricos da população detêm quase 50% da renda, enquanto os 10% mais pobres dispõem de um pouco mais de 1%. A pobreza atinge cerca de 220 milhões de pessoas 

Por fim,  uma expedição pelo continente como a de Salgado revela que, infelizmente, a pobreza ainda compõe a paisagem latino-americana. Em uma análise sobre a obra, John Mraz observa que a miséria não é retratada como consequência da má distribuição de renda, das diferenças sociais ou da dificuldade de acesso à serviços nas superpopulosas megacidades, mas como produto do meio; como se a América Latina fosse essencialmente pobre. Sob tamanhos impactos de uma História constituída pelas classes dominantes, a identidade latino-americana mantem o sonho de uma sociedade mais justa e unida vivo. A causa deve ser seguida: essa parte da América, tão rica e diversificada culturalmente, precisa criar sua própria história; manter as tradições culturais e procurar resistir, assim como nossos antepassados indígenas, às intervenções imperialistas é o caminho da luta. Com uma identidade comum - que vai muito além da língua - e consciente, é possível seguirmos fortes, unidos, livres e autossuficientes. Espera-se que populações camponesas, indígenas, sertanejos, sem-terras e as demais minorias atinjam a participação política e sejam enfim contemplados em políticas públicas. As identidades culturais, aliadas a governos que prezem pela igualdade, serão capazes de isolar todas as obscuras raízes históricas da formação de nossa sociedade.