sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Incursão: Parte II - sob as bençãos do cavaleiro São Jorge

De Brasília à Chapada dos Veadeiros, a paisagem é típica do Centro-Oeste brasileiro: mares de soja, o "ouro verde" que destrói o nosso Cerrado. Dos dois lados da rodovia, as plantações se perdem no horizonte. Placas ao longo do percurso nos lembram, paradoxalmente, da necessidade de preservação da diversidade natural da região. Ao entrar no parque da Chapada dos Veadeiros, no entanto, o Cerrado se apresenta em sua melhor forma: belas árvores, com o esperado verde da época das chuvas e os inconfundíveis caules retorcidos. 




A Chapada é a formação geológica mais antigas da América do Sul. Com cerca de 1,8 bilhão de anos, não há nenhum acontecimento terrestre que ela não tenha presenciado. Moldada por intensas atividades vulcânicas, era integrada a Pangeia e resistiu à deriva continental. Hoje, compõe um rico patrimônio mineral e natural, com vasta fauna e flora. Também a História da humanidade é registrada aqui: inscrições rupestres datadas de 12 mil anos podem ser vistas por toda a região, que resguarda quase uma centena de sítios arqueológicos pré-históricos. 

No capítulo "O Homem", de "Os Sertões", Euclides da Cunha examina a complexidade étnica brasileira. Afirma os três elementos constituidores da nossa sociedade: o indígena, homo americanos, o negro banto, homo afer, e o português, intelectual de origem celta, fator aristocrático de nossa gens. O brasileiro surgiria, assim, de uma complexa combinação ternária, que derivaria em três combinações binárias, sendo a abstrata tendência o tipo pardo; convergência do mulato, do curiboca e do cafuz. Nesse contexto, o Homem da Chapada dos Veadeiros é um perfeito exemplo do resultado desse grande viveiro étnico. Habitada por numerosos povos indígenas, eles permaneceram intactos até a chegada do homem branco, no século XVIII, durante o ciclo do ouro. Entradas e bandeiras cruzavam o planalto central com levas de escravos africanos e dizimavam populações indígenas pelo caminho. Logo começou a haver conflitos entre índios e mineradores, que começavam a criar vilas e garimpos para explorar metais preciosos. O escravo negro, que dispunha de uma inexplorada natureza selvagem, aproveitava para formar imensos quilombos, existentes até hoje e disponíveis para visitação. De fato, como constatava Euclides da Cunha, também na Chapada a forma do negro e do índio, principalmente, se encontram mais diluídas.

Chegamos à Vila de São Jorge, distrito distante em 30 km de Alto Paraíso de Goiás. Antigo acampamento de garimpeiros de cristal, fundada por devotos de São Jorge, a vila é hoje um apêndice do charmoso modo de vida rústico. As ruas são de terra, com pouquíssima iluminação pública. Na pousada, incenso e muitas velas. Prefere-se adotar a decoração simples; muitas pousadas sequer dispõem de iluminação elétrica. A vila atrai jovens e hippies, que exibem uma grande variedade de produtos artesanais. Massagens terapêuticas também são oferecidas. As constantes referências a São Jorge por toda a vila contribuem para a atmosfera exotérica. É considerada a “Búzios do Cerrado”, já que a praiana vila de pescadores fluminense costumava ser frequentada por artistas e intelectuais. Aqui somos seduzidos pela vida interiorana, e deixamos a luz do dia guiar nossas atividades.



Em São Jorge, a um pequeno passo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, os atrativos naturais nos oferecem inúmeras possibilidades. Há duas longas trilhas de cerca de 10 km dentro do parque, e diversas veredas e cachoeiras nos arredores. Na cachoeira de Raizema, surpreendi-me com um palco decorado com semblantes de ícones do Rock and Roll dos anos 1960 e 1970 em um lugar tão remoto. Lá estavam John Lennon, Jimmy Hendrix, Janis Joplin e Raul Seixas. Após a trilha de cerca de 2 km com um bom banho de cachoeira, terminei em um copo d’água – retirada da fonte e a melhor da região, segundo o anfitrião – com a população local. Muito alegres e receptivos, viviam integrados à natureza, e o palco funcionava como um templo para eles: faziam instrumentos artesanais e viviam pela música e pela arte. Pedi para experimentar alguns instrumentos e acabamos trocando algumas notas musicais.

Em clima tropical, sobretudo de altitude, janeiro é mês de estiagem. Durante a estadia, a energia elétrica em nenhum momento funcionou mais do que um dia ininterruptamente, e não houve dia sequer que não tenha chovido. Na trilha dos saltos – altas e belas quedas d’água – uma tempestade encharcou nosso caminho de volta. No dia seguinte, quando visitamos os cânions, por pouco não tivemos o mesmo desfecho. Resquícios do tempo de garimpo podem ser encontrados por todo o parque: a cachoeira do abismo foi habitada pelo último garimpeiro da região, e sua casa, com seus instrumentos de trabalho, pode ser visitada; nas trilhas do Parque Nacional, imensos buracos indicam a presença de outrora intensa atividade garimpeira. Algumas trilhas são ainda bem selvagens, sem veredas muito claras, que exigem atenção de todos que por elas se aventuram. No parque é necessário preencher um documento assumindo os riscos da trilha. Piscinas térmicas naturais foram ótimas alternativas para os fins de tarde. Aventurar-se de carro nas estradas de terra, sob a bela vista de montanhas e chapadões moldando os céus, foram, também, bons programas. Duas viagens distintas podem ser feitas nos períodos de seca e estiagem. Há ainda muito para se ver por aqui. O céu nublado, infelizmente, não nos permitiu ver o famoso pôr-do-sol da Chapada, e o místico lual de São Jorge, tampouco.

Nas próximas passagens, ainda haverá trilhas a serem desbravadas, rios e cachoeiras a serem explorados, uma tarde a ser gasta em uma comunidade quilombola, pinturas rupestres a serem admiradas. As possibilidades da Chapada dos Veadeiros são infinitas.




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