De Brasília à Chapada dos Veadeiros, a paisagem é típica do Centro-Oeste brasileiro: mares de soja, o "ouro verde" que destrói o nosso Cerrado. Dos dois lados da rodovia, as plantações se perdem no horizonte. Placas ao longo do percurso nos lembram, paradoxalmente, da necessidade de preservação da diversidade natural da região. Ao entrar no parque da Chapada dos Veadeiros, no entanto, o Cerrado se apresenta em sua melhor forma: belas árvores, com o esperado verde da época das chuvas e os inconfundíveis caules retorcidos.
A Chapada é a formação geológica mais
antigas da América do Sul. Com cerca de 1,8 bilhão de anos, não há nenhum
acontecimento terrestre que ela não tenha presenciado. Moldada por intensas
atividades vulcânicas, era integrada a Pangeia e resistiu à deriva continental.
Hoje, compõe um rico patrimônio mineral e natural, com vasta fauna e flora.
Também a História da humanidade é registrada aqui: inscrições rupestres datadas
de 12 mil anos podem ser vistas por toda a região, que resguarda quase uma
centena de sítios arqueológicos pré-históricos.
No capítulo "O Homem", de
"Os Sertões", Euclides da Cunha examina a complexidade étnica
brasileira. Afirma os três elementos constituidores da nossa sociedade: o
indígena, homo americanos, o negro
banto, homo afer, e o português,
intelectual de origem celta, fator aristocrático de nossa gens. O brasileiro surgiria, assim, de uma complexa combinação
ternária, que derivaria em três combinações binárias, sendo a abstrata
tendência o tipo pardo; convergência do mulato, do curiboca e do cafuz. Nesse
contexto, o Homem da Chapada dos Veadeiros é um perfeito exemplo do resultado
desse grande viveiro étnico. Habitada por numerosos povos indígenas, eles
permaneceram intactos até a chegada do homem branco, no século XVIII, durante o
ciclo do ouro. Entradas e bandeiras cruzavam o planalto central com levas de
escravos africanos e dizimavam populações indígenas pelo caminho. Logo começou
a haver conflitos entre índios e mineradores, que começavam a criar vilas e
garimpos para explorar metais preciosos. O escravo negro, que dispunha de uma
inexplorada natureza selvagem, aproveitava para formar imensos quilombos,
existentes até hoje e disponíveis para visitação. De fato, como constatava
Euclides da Cunha, também na Chapada a forma do negro e do índio, principalmente, se encontram mais diluídas.
Chegamos à Vila de São Jorge, distrito distante
em 30 km de Alto Paraíso de Goiás. Antigo acampamento de garimpeiros de
cristal, fundada por devotos de São Jorge, a vila é hoje um apêndice do
charmoso modo de vida rústico. As ruas são de terra, com pouquíssima iluminação
pública. Na pousada, incenso e muitas velas. Prefere-se adotar a decoração simples;
muitas pousadas sequer dispõem de iluminação elétrica. A vila atrai jovens e
hippies, que exibem uma grande variedade de produtos artesanais. Massagens
terapêuticas também são oferecidas. As constantes referências a São Jorge por
toda a vila contribuem para a atmosfera exotérica. É considerada a “Búzios do
Cerrado”, já que a praiana vila de pescadores fluminense costumava ser
frequentada por artistas e intelectuais. Aqui somos seduzidos pela vida
interiorana, e deixamos a luz do dia guiar nossas atividades.

Em São Jorge, a um pequeno passo do Parque
Nacional da Chapada dos Veadeiros, os atrativos naturais nos oferecem inúmeras
possibilidades. Há duas longas trilhas de cerca de 10 km dentro do parque, e
diversas veredas e cachoeiras nos arredores. Na cachoeira de Raizema,
surpreendi-me com um palco decorado com semblantes de ícones do Rock and Roll
dos anos 1960 e 1970 em um lugar tão remoto. Lá estavam John Lennon, Jimmy
Hendrix, Janis Joplin e Raul Seixas. Após a trilha de cerca de 2 km com um bom
banho de cachoeira, terminei em um copo d’água – retirada da fonte e a melhor
da região, segundo o anfitrião – com a população local. Muito alegres e
receptivos, viviam integrados à natureza, e o palco funcionava como um templo
para eles: faziam instrumentos artesanais e viviam pela música e pela arte.
Pedi para experimentar alguns instrumentos e acabamos trocando algumas notas
musicais.
Em clima tropical, sobretudo de altitude, janeiro é mês de estiagem. Durante a
estadia, a energia elétrica em nenhum momento funcionou mais do que um dia
ininterruptamente, e não houve dia sequer que não tenha chovido. Na trilha dos
saltos – altas e belas quedas d’água – uma tempestade encharcou nosso caminho
de volta. No dia seguinte, quando visitamos os cânions, por pouco não tivemos o
mesmo desfecho. Resquícios do tempo de garimpo podem ser encontrados por todo o
parque: a cachoeira do abismo foi habitada pelo último garimpeiro da região, e
sua casa, com seus instrumentos de trabalho, pode ser visitada; nas trilhas do
Parque Nacional, imensos buracos indicam a presença de outrora intensa
atividade garimpeira. Algumas trilhas são ainda bem selvagens, sem veredas
muito claras, que exigem atenção de todos que por elas se aventuram. No parque é necessário preencher um documento assumindo os riscos da trilha. Piscinas
térmicas naturais foram ótimas alternativas para os fins de tarde. Aventurar-se
de carro nas estradas de terra, sob a bela vista de montanhas e chapadões
moldando os céus, foram, também, bons programas. Duas viagens distintas podem
ser feitas nos períodos de seca e estiagem. Há ainda muito para se ver por aqui.
O céu nublado, infelizmente, não nos permitiu ver o famoso pôr-do-sol da
Chapada, e o místico lual de São Jorge, tampouco.
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