Após meses, a caravana de iaques retorna ao vilarejo com um membro a menos: o líder Lhakpa havia sido vítima das majestosas montanhas do Himalaia. Seu pai, Tinle, não se conforma com a morte do filho e acusa Karma de culpa, sob alegação de este almejar a liderança do grupo. Tinle, já um ancião, ocupava um cargo de prestígio no pequeno vilarejo tibetano, de modo que o conflito que iniciara dividiu a opinião dos aldeões: alguns eximiam o jovem Karma de culpa, enquanto outros criam na impossibilidade de as montanhas haverem levado Lhakpa.
O sal norteava a vida da comunidade. Habitantes de um local pouco acessível, frio, desértico, sem vegetação e isolado, dispunham apenas dele como recurso natural e dependiam de constantes caravanas para trocá-lo por grãos nas planícies. Havia, assim, muita simbologia e espiritualidade envolvendo as expedições, que assumiam grandes dimensões no vilarejo. Tinle fora um importante líder de caravana e repassou a função ao seu filho. Muito magoado com sua morte, tentou vetar que a próxima caravana fosse liderada por Karma. Karma, por sua vez, ignorou as pretensões do ancião e as pregações dos demais sábios da aldeia. Tinle decidiu, logo, montar sua própria caravana com seu segundo filho, Norbou, seu órfão neto, Pasang - ainda uma criança -, sua viúva nora, Pema, e com seus antigos companheiros de caravana, para proteger a herança familiar e se vingar de Karma.
Baseado em histórias reais, Eric Valli, cineasta e fotógrafo francês, dirigiu o filme "Himalaia", que busca retratar, sobretudo, o modo de vida da população tibetana. Valli é um grande entusiasta da cultura nepalesa e dedica uma notável parte de sua obra à essa região. Compôs um elenco formado majoritariamente por aldeões, muitos dos quais interpretaram si próprios, e aprendeu a língua e traços marcantes da cultura local. Norbou, um dos personagens do filme, é, inclusive, seu amigo pessoal. Desse modo, o filme também exibe um admirável caráter etnográfico e altruísta: o enredo trata um tema tradicional e universal - vingança, conflito de egos e de gerações -, de modo que o contexto em que a história é situada se sobressai. A produção se demonstra única por abranger, com tanta verossimilhança, os desafios de uma civilização esquecida. O próprio diretor, em uma conversa motivacional com o elenco, afirmou que a principal razão do filme era proteger a memória de um povo que "parecia se derreter com o gelo".
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Trabalho fotográfico do diretor |
De fato, as paisagens são atrações à parte; elas tornam o filme singular. Belíssimas imagens da cordilheira ao longo de toda a trama, com trilha sonora típica, produzem uma sensação de conforto a quem assiste. Além disso, são essenciais na busca pelo retrato das adversidades e do modo de vida dos aldeões, que residem entre quatro e cinco mil metros acima do nível do mar e precisam enfrentar o Himalaia para garantir a sua sobrevivência. A ausência de árvores no vilarejo, a propósito, carrega um valor simbólico muito bem explorado: o contraste à difícil vida nos planaltos é a abundância de árvores na planície. A grande maioria dos habitantes nunca viram uma árvore sequer.
Movidos pelo sentimento de estarem no teto do mundo, a religião era fundamental para a comunidade. As montanhas eram tratadas como seres temperamentais, e tudo acontecia conforme o desejo dos deuses. Sábios da aldeia procuravam interpretar as mensagens divinas para calcular a data em que as caravanas deveriam partir. Nesse contexto, a conduta de Karma causou um embate na aldeia: ele mobilizou uma caravana e partiu antes do prazo estabelecido pelos sábios. Foi o estopim para que Tinle também organizasse a sua. Viajou para convocar seu segundo filho, Norbou, que seria transformado no novo líder. Norbou passara a vida toda em um mosteiro e se preparava para se tornar um Lama, líder espiritual tibetano. Além disso, ocupava-se com a pintura, e não se entusiasmou muito com a ideia da caravana, embora tenha acatado o pedido do pai. Tinle também nomeou seu pequeno neto, Pasang, filho de Lhakpa, como futuro líder. Assim, partiram quando a data predefinida chegou, quatro dias após a partida de Karma.
A antítese velho e novo logo se mostrou bastante evidente. Enquanto Tinle orientava o filho a andar devagar como um velho, no ritmo dos iaques, Karma corria com os animais. O conflito de egos mostra a semelhança da conduta entre os dois: eram criticados por só pensarem em si próprios. Tinle pensava apenas em alcançar e superar a caravana de Karma, e Karma esperava chegar às planícies bem antes de seu concorrente; a ambição de Karma afrontava a autoridade de Tinle. Paralelamente, a inocência de Pasang, que via em Karma a figura paterna, já indicava a resolução natural da crise de sucessão. Pasang não compreendia valores religiosos muito bem: julgava as montanhas todas iguais e se animou com a possibilidade de ver demônios. Ainda assim, manifestava muita admiração por seu avô. Sua pureza - a infância de um chefe - foi a força conciliadora entre a juventude rebelde e a autoridade conservadora.
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Tinle e Pasang |
Tudo se acerta sozinho, tão naturalmente quanto a vida nas montanhas. Tinle e Karma compartilhavam os mesmos sonhos e os mesmos objetivos. O filme ensina que grandes líderes começam desobedecendo, e que, mesmos chefes devem obedecer aos deuses, um bem maior. No final, a velha lição de que é preciso se modernizar sem abdicar das tradições prevalece; um ciclo se fecha, e outro se abre. A grandiosidade do filme se encontra, contudo, na comoção que as cenas na cordilheira do Himalaia nos exercem. Fazer-nos sentirmos tão perto de um povo de cultura exótica e inviolada, e tão envolvidos por uma história simples e de superação foram as grandes virtudes de "Himalaia".
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