"Muito simplesmente, é o mundo dos destituídos, daqueles que os desertos e serras desoladas da América Latina observam enquanto seus países mudam, deixando-os de lado. É um mundo em que se mantém unido pelo nascimento, pela família e pela morte, e ainda pelo mito, pela fé e pelo fatalismo."
Prefácio da obra 'Outras Américas', de Sebastião Salgado
"A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que eu me dei conta. (...) A menos que você conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário, será obrigado a aceitar minha versão delas. Agora, eu o deixo em companhia de mim, do homem que eu era."
Ernesto Che Guevara, anotações em seu diário
América, não invoco o teu nome em vão.Quando sujeito ao coração a espada,
quando aguento na alma a goteira,quando pelas janelasum novo dia teu me penetra,sou e estou na luz que me produz,vivo na sombra que me determina,durmo e desperto em tua essencial aurora:doce como as uvas, e terrível,condutor do açúcar e o castigo,empapado em esperma de tua espécie,amamentado em sangue de tua herança.
Canto Geral, Pablo Neruda
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Todas as imagens retiradas de "Outras Américas", por Sebastião Salgado |
Durante sete anos, o fotógrafo Sebastião Salgado percorreu uma série de países latino-americanos com o intuito de registrar a riqueza e a melancolia de populações esquecidas e marginalizadas pelo continente. Do sertão brasileiro à Cordilheira dos Andes, seguindo por Chile, Bolívia, Peru e Equador até a América Central, parando no México, Salgado conseguiu, com muito primor, captar a pobreza que parece intrínseca à América Latina. Com a belíssima narrativa fotográfica, seu trabalho, chamado de "Outras Américas", relaciona as condições de morte, fome e miséria à paisagem da região. É possível, assim, refletir como o processo de formação histórica - o imperialismo, o mercantilismo, a inserção ao sistema capitalista, a formação de minoritárias classes dominantes, a ingerência estadunidense - pode praticamente exterminar populações nativas sociopoliticamente.
O termo América Latina foi utilizado pela primeira vez pelo poeta colombiano José María Caicedo, em 1856, no poema "As duas Américas", em que demonstrava preocupação com o advento dos Estados Unidos em relação às disputas territoriais com o México. Sentindo a ameaça, afirmou que a população latina tinha o dever de se unir perante a ameaça saxônica: "A raça da América Latina, na frente tem a raça saxônica, inimigo mortal já ameaça destruir sua liberdade e o seu pendão". Além disso, afirmou ainda que "a América do Sul está chamada a defender a liberdade genuína (...) [pois] o mundo jaz entre trevas profundas: na Europa domina o despotismo, na América no Norte, o egoísmo, sede de ouro e hipócrita piedade". Teve os mesmos sentimentos de Simon Bolívar, o libertador, que na década de 1820 já temia os efeitos da Doutrina Monroe, lançada pelos Estados Unidos. Ele já propunha a união dos países hispânicos independentes O termo passou a atingir maiores proporções em 1863, em razão do Segundo Império Francês, de Napoleão III, que encontrou nas origens linguísticas a justificativa da intervenção no México. A intenção era puramente imperialista; fazer a manutenção do poder francês nas Américas e inibir a influência inglesa e estadunidense. A consolidação definitiva do termo
José María Caicedo, contudo, ao unir povos de língua sobretudo espanhola e portuguesa sob uma mesma identidade para motivar a luta anti-imperialista, cometeu um erro que contrariava totalmente seus ideais - e que Napoleão III já havia percebido. América Latina também pode ser interpretada como uma determinação eurocentrista, já que ignora civilizações pré-colombianas, cuja linguagem não deriva do latim. A América foi, de fato, constituída segundo o imaginário europeu. Portugal e Espanha dividiram o continente em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, linha imaginária que dividia o chamado Novo Mundo em dois. Outros povos europeus tiveram interesse nas novas terras, e o território foi fragmentado seguindo os preceitos mercantilistas da época. Demétrio Magnoli e Regina Araújo afirmam, em "O projeto da Alca", que "até a Conquista, a América não existia - a não ser, obviamente, como placa geológica continental."
Calcula-se que à época da chegada dos europeus ao continente americano, havia aqui uma população com cerca de 80 milhões de habitantes e uma rica diversidade étnica e cultural. Maias, incas e astecas formaram grandes impérios com complexas cidades e com sistemas políticos, sociais e comerciais bem organizados. Os maias dispunham de um sistema de escrita e faziam avançados cálculos matemáticos e observações astronômicas; os astecas chegaram a desenvolver um calendário solar com 365 dias, também dominavam a escrita e detinham grandes conhecimentos de medicina e astronomia. A cidade de Tenochtitlan, por onde foi construída a Cidade do México, era uma das mais bem desenvolvidas da época, mesmo em comparação às cidades europeias, com 200 mil habitantes e um poderoso esquema de drenagem d'água; os incas, por sua vez, obtiveram grandes êxitos arquitetônicos, matemáticos e geométricos. A tentativa de imposição de um padrão civilizatório pelos europeus acarretou um dos maiores genocídios de que se tem registro e provocou um desastre demográfico. Em raríssimas situações o contato entre as culturas foi saudável, de modo que havia tentativas de escravização da comunidade indígena, ao passo que estas organizavam constantes rebeliões. Infelizmente, era difícil combater o poderio de fogo europeu e as doenças por eles transmitidas.
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