sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Entrelinhas latino-americanas

"Muito simplesmente, é o mundo dos destituídos, daqueles que os desertos e serras desoladas da América Latina observam enquanto seus países mudam, deixando-os de lado. É um mundo em que se mantém unido pelo nascimento, pela família e pela morte, e ainda pelo mito, pela fé e pelo fatalismo."
Prefácio da obra 'Outras Américas', de Sebastião Salgado

"A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que eu me dei conta. (...) A menos que você conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário, será obrigado a aceitar minha versão delas. Agora, eu o deixo em companhia de mim, do homem que eu era." 
Ernesto Che Guevara, anotações em seu diário 

América, não invoco o teu nome em vão. 
Quando sujeito ao coração a espada, 

quando aguento na alma a goteira, 
quando pelas janelas 
um novo dia teu me penetra, 
sou e estou na luz que me produz, 
vivo na sombra que me determina, 
durmo e desperto em tua essencial aurora: 
doce como as uvas, e terrível, 
condutor do açúcar e o castigo, 
empapado em esperma de tua espécie, 
amamentado em sangue de tua herança. 
Canto Geral, Pablo Neruda  










Todas as imagens retiradas de "Outras Américas", por Sebastião Salgado
Durante sete anos, o fotógrafo Sebastião Salgado percorreu uma série de países latino-americanos com o intuito de registrar a riqueza e a melancolia de populações esquecidas e marginalizadas pelo continente. Do sertão brasileiro à Cordilheira dos Andes, seguindo por Chile, Bolívia, Peru e Equador até a América Central, parando no México, Salgado conseguiu, com muito primor, captar a pobreza que parece intrínseca à América Latina. Com a belíssima narrativa fotográfica, seu trabalho, chamado de "Outras Américas", relaciona as condições de morte, fome e miséria à paisagem da região. É possível, assim, refletir como o processo de formação histórica - o imperialismo, o mercantilismo, a inserção ao sistema capitalista, a formação de minoritárias classes dominantes, a ingerência estadunidense - pode praticamente exterminar populações nativas sociopoliticamente.

O termo América Latina foi utilizado pela primeira vez pelo poeta colombiano José María Caicedo, em 1856, no poema "As duas Américas", em que demonstrava preocupação com o advento dos Estados Unidos em relação às disputas territoriais com o México. Sentindo a ameaça, afirmou que a população latina tinha o dever de se unir perante a ameaça saxônica: "A raça da América Latina, na frente tem a raça saxônica, inimigo mortal já ameaça destruir sua liberdade e o seu pendão". Além disso, afirmou ainda que "a América do Sul está chamada a defender a liberdade genuína (...) [pois] o mundo jaz entre trevas profundas: na Europa domina o despotismo, na América no Norte, o egoísmo, sede de ouro e hipócrita piedade". Teve os mesmos sentimentos de Simon Bolívar, o libertador, que na década de 1820 já temia os efeitos da Doutrina Monroe, lançada pelos Estados Unidos. Ele já propunha a união dos países hispânicos independentes O termo passou a atingir maiores proporções em 1863, em razão do Segundo Império Francês, de Napoleão III, que encontrou nas origens linguísticas a justificativa da intervenção no México. A intenção era puramente imperialista; fazer a manutenção do poder francês nas Américas e inibir a influência inglesa e estadunidense. A consolidação definitiva do termo

José María Caicedo, contudo, ao unir povos de língua sobretudo espanhola e portuguesa sob uma mesma identidade para motivar a luta anti-imperialista, cometeu um erro que contrariava totalmente seus ideais - e que Napoleão III já havia percebido. América Latina também pode ser interpretada como uma determinação eurocentrista, já que ignora civilizações pré-colombianas, cuja linguagem não deriva do latim. A América foi, de fato, constituída segundo o imaginário europeu. Portugal e Espanha dividiram o continente em 1494 pelo Tratado de Tordesilhas, linha imaginária que dividia o chamado Novo Mundo em dois. Outros povos europeus tiveram interesse nas novas terras, e o território foi fragmentado seguindo os preceitos mercantilistas da época. Demétrio Magnoli e Regina Araújo afirmam, em "O projeto da Alca", que "até a Conquista, a América não existia - a não ser, obviamente, como placa geológica continental." 

Calcula-se que à época da chegada dos europeus ao continente americano, havia aqui uma população com cerca de 80 milhões de habitantes e uma rica diversidade étnica e cultural. Maias, incas e astecas formaram grandes impérios com complexas cidades e com sistemas políticos, sociais e comerciais bem organizados. Os maias dispunham de um sistema de escrita e faziam avançados cálculos matemáticos e observações astronômicas; os astecas chegaram a desenvolver um calendário solar com 365 dias, também dominavam a escrita e detinham grandes conhecimentos de medicina e astronomia. A cidade de Tenochtitlan, por onde foi construída a Cidade do México, era uma das mais bem desenvolvidas da época, mesmo em comparação às cidades europeias, com 200 mil habitantes e um poderoso esquema de drenagem d'água; os incas, por sua vez, obtiveram grandes êxitos arquitetônicos, matemáticos e geométricos. A tentativa de imposição de um padrão civilizatório pelos europeus acarretou um dos maiores genocídios de que se tem registro e provocou um desastre demográfico. Em raríssimas situações o contato entre as culturas foi saudável, de modo que havia tentativas de escravização da comunidade indígena, ao passo que estas organizavam constantes rebeliões. Infelizmente, era difícil combater o poderio de fogo europeu e as doenças por eles transmitidas.

A desenvolvida cidade de Tenochtitlan e a discrepância entre os encaixes incas (abaixo) e encaixes espanhóis (acima) em construções na cidade de Cuzco

Existe uma imensa diversidade cultural na América Latina, como é possível observar no próprio trabalho de Salgado. Ainda assim, a história dos povos latino-americanos concorrem em diversos pontos. Até hoje sofrendo as consequências de um passado imperialista, a América Latina luta pra desvincular a sua imagem da de pobreza. No Brasil, sétima maior economia do mundo, nos esquecemos frequentemente de nos incluir dentre os latino-americanos. O que dizer de países como Guiana, Suriname e Jamaica, cujas línguas oficiais não derivam do latim? E daqueles que, mesmo tendo o espanhol como uma das língua oficiais, ainda se comunicam em guarani, quíchua e aimará? A definição já superou há tempos a questão da linguagem e hoje se expressa sobretudo por características econômicas e sociais. A etiqueta "Latina" é  apenas uma clara referência à cultura do dominador.

No entanto, é inegável a vertente unificadora, associativa e até emancipadora do termo, que estimula a luta anti-imperialista, iniciada por Símon Bolívar. Ainda que tenha conseguido no máximo um acordo de apoio mútuo entre países latino-americanos em caso de intervenção militar estrangeira e que seja em alguns pontos contestado, ele lançou as bases da unidade latina, ganhou uma multiplicidade de seguidores e passou a ser considerado um herói. Seus ideais ainda hoje guiam políticas externas de países como a Venezuela chavista - o socialismo do século XXI, a Aliança Bolivariana para as Américas, que engloba oito países e a "América livre dos Estados Unidos" são alguns dos pilares.

Assim como a história dos países latino-americanos, as perspectivas também são duras. As independências não conseguiram subverter a ordem social vigente; a dominação, antes feita fisicamente pelas respectivas metrópoles, passou a ser feita economicamente pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. A forçada inserção desses países no sistema capitalista como exportadores de matéria-prima e de produtos agrícolas causou um quadro de extrema pobreza e prejudicou os indicadores sociais. Inibiu o desenvolvimento industrial e econômico interno. A ingerência fez inclusive governos com tendências fascistas entrarem na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados. Hoje ainda se convive com muita pobreza extrema. Uma nova tendência esquerdista tem se preocupado mais com a parte social. Mesmo em países de maioria indígena, como a Bolívia e a Guatemala, a dificuldade de mobilização e participação política dessa população é preocupante. A Bolívia elegeu seu primeiro presidente indígena apenas neste século. As origens colonizadoras causaram quadros graves de desigualdade social e concentração fundiária. A América Latina reúne os países com as piores distribuições de renda no mundo. Os 10% mais ricos da população detêm quase 50% da renda, enquanto os 10% mais pobres dispõem de um pouco mais de 1%. A pobreza atinge cerca de 220 milhões de pessoas 

Por fim,  uma expedição pelo continente como a de Salgado revela que, infelizmente, a pobreza ainda compõe a paisagem latino-americana. Em uma análise sobre a obra, John Mraz observa que a miséria não é retratada como consequência da má distribuição de renda, das diferenças sociais ou da dificuldade de acesso à serviços nas superpopulosas megacidades, mas como produto do meio; como se a América Latina fosse essencialmente pobre. Sob tamanhos impactos de uma História constituída pelas classes dominantes, a identidade latino-americana mantem o sonho de uma sociedade mais justa e unida vivo. A causa deve ser seguida: essa parte da América, tão rica e diversificada culturalmente, precisa criar sua própria história; manter as tradições culturais e procurar resistir, assim como nossos antepassados indígenas, às intervenções imperialistas é o caminho da luta. Com uma identidade comum - que vai muito além da língua - e consciente, é possível seguirmos fortes, unidos, livres e autossuficientes. Espera-se que populações camponesas, indígenas, sertanejos, sem-terras e as demais minorias atinjam a participação política e sejam enfim contemplados em políticas públicas. As identidades culturais, aliadas a governos que prezem pela igualdade, serão capazes de isolar todas as obscuras raízes históricas da formação de nossa sociedade. 

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