domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Jesus estava certo, mas seus discípulos eram grossos e ordinários"

Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: "Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?" Jesus respondeu: "Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete.
Mateus 18:21-22
"O cristianismo vai desaparecer e encolher. Eu não preciso discutir isso, eu estou certo e eu vou provar. Nós somos mais populares que Jesus agora. Eu não sei qual será o primeiro - o rock 'n' roll ou o cristianismo. Jesus estava certo, mas seus discípulos eram grossos e ordinários. É a distorção deles que estraga tudo para mim."
John Lennon 
Eis que estou em Santos! Perdido pela rua Ana Costa, procuro conforto em uma livraria. Chamada de Realejo, era também uma editora, que vendia seus próprios livros. Um grande negócio. Pedi um café, peguei um livro para ler e logo a dona da loja se aproximou. Seu marido, livreiro, sentado com um jornal em mãos próximo a porta de entrada, trabalhava como chefe e ilustrador da editora. Ele era um dos pilares de uma parceira com a Carta Capital, em que o colunista Vitor Knijnik mantem um seção chamada de Blogs do além. Com muito humor, Knijnik psicografa mensagens de falecidos ícones da ciência, política, arte e cultura popular. Aproveita, também, para fazer suas irreverentes críticas sociais.
"Christ, you know it ain't easy
You know how hard it can be
The way things are going
They're gonna crucify me"
"Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor"
"Sim, eu acredito que Deus é como uma usina de força, que ele é um poder supremo, que não é nem bom nem ruim, nem de direita nem de esquerda, nem branco nem preto, Ele simplesmente é"
"Não sou antideus, nem anticristo, nem antireligião. Se tivesse dito que a televisão era mais popular do que Jesus, ninguém teria ligado. Eu só usei o termo 'Beatles' para exemplificar, porque é mais fácil para mim. Meu comentário se referia ao que acontece na Inglaterra. Lá somos mais influentes para os jovens do que a religião. Não era minha intenção ofender, mas é um fato. Não quis comparar Jesus Cristo a uma pessoa, nem nada do tipo. Fui mal interpretado".
No caso, o personagem John Lennon ironiza a negativa repercussão de sua declaração quanto ao fato de os Beatles serem mais famosos do que Jesus Cristo. Em 1966, quando os quatro garotos de Liverpool já se sentiam esgotados pelos purgantes anos da beatlemania, um pequeno trecho de uma entrevista em uma publicação inglesa, intitulada "Como vive um Beatle?", reproduziu-se de modo a marcar a história do rock, dos Beatles e dos anos 60. Em meio àquele caos, Lennon analisou a importância do rock, da cultura pop, para a juventude, julgando-a maior do que a da religião naquele momento. Utilizou-se dos termos "Beatles" e "Jesus Cristo" com valores metonímicos para a sua argumentação. Foi o estopim para causar a fúria de devotos católicos estadunidenses.


Pastores organizaram queima de discos. Iniciaram movimentos para boicotar a banda inglesa. As rádios deixaram de tocar suas músicas. A Igreja passou a chamar John, Paul, George e Ringo de satânicos. Os Beatles passaram a ser hostilizados. Temendo, sobretudo por suas integridades físicas, pararam de se apresentar ao vivo. John, com sua habitual língua afiada, fez um pedido público de desculpas, sem retirar o que disse. Avisou que sua mensagem deveria ser mais universal e generalista e que não era contrário à religião ou à figura de Jesus. A Igreja Católica, contrariando um de seus próprios preceitos, após anos de repugnância aos Beatles, perdoou-os apenas em 2009, quando se comemorava 40 anos do lançamento do álbum branco ('The Beatles - White album). Ringo Starr, um dos beatles ainda vivos, não gostou da posição da Igreja, alegando que ela teria assuntos mais importantes com que se preocupar. Ainda nesse ano, o jornal Daily Telegraph apurou que a palavra Beatles foi mais pesquisada do que Jesus no Google. Claro que, nas circunstâncias da polêmica, também houve diversas manifestações de apoio a banda. O lema principal era "John, eu rezo para você!"


Nos anos que se seguiram à polêmica declaração, a banda emplacou grandes sucessos. Ainda em 1966, lançaram o álbum Revolver, que trazia inovações inéditas na história da música, como guitarras revertidas e o sincretismo entre o pop ocidental e a música indiana. No ano seguinte, Sargent Pepper's se consagrou como o álbum de rock mais revolucionário de todos os tempos. A genialidade dos Beatles, como reforçada na própria carta de perdão do Vaticano, transpôs todas as controvérsias. Segundo a publicação, a declaração se tornou insignificante perante a grandiosidade da banda. Item valioso nos mercados negros de países em que a banda foi banida, suas músicas continuaram causando admiração universal. Um exemplo em outro contexto foi quando Fidel Castro, como presidente de Cuba após a revolução, proibiu os Beatles no país por os julgar um símbolo imperialista. Ele percebeu seu equívoco, sobretudo com músicas da carreira solo de Lennon, como Imagine e Working Class Hero, e logo corrigiu seu erro histórico, criando uma praça em Havanna em homenagem à memória do artista.

Em 1980, John foi assassinado por seu próprio fã, seu próprio seguidor. Uma traição equiparável a de Judas. No fim, o que construiu foi quase uma religião; uma entidade muito forte, unida pelo bom gosto musical e pelas mensagens de amor e paz universal das letras de suas músicas. O legado que John, junto aos Beatles, deixou resiste ao tempo e, talvez, assim como o cristianismo, poderá perdurar por milênios, marcando o início de uma nova era.    

Segue o "Blog do John Lennon", publicado na Carta Capital e na coletânea "Blogs do além". Quanto à nova polêmica proposta pelo autor, Imagine é, de fato, mais famosa que Ave-Maria.    

A outra face
Não sei se vocês sabem que o jornal da Santa Sé L’Osservatore Romano informou que a Igreja Católica me perdoou por ter declarado que os Beatles eram mais populares do que Jesus Cristo. O artigo me absolve dizendo que “A declaração de John Lennon, que provocou tanta indignação nos Estados Unidos, depois de todos estes anos soa como uma bravata de um jovem proletário inglês às voltas com um sucesso inesperado”. O texto ainda saúda os 40 anos do álbum branco: “O fato é que 38 anos após o rompimento, as canções de John Lennon e Paul McCartney mostraram uma extraordinária resistência à passagem do tempo, tornando-se uma fonte de inspiração para mais de uma geração de músicos pop”, afirmou o jornal. Primeiro, quero dizer que estou preocupado com a repercussão negativa que isso pode ter sobre as vendas do álbum branco. As conseqüências podem ser piores do que as provocadas pela crise global. Mas o aspecto comercial não é o mais importante. O perdão me comoveu sinceramente. Vi que eu sou um cara de sorte. O Galileu Galilei, por exemplo, com todo o prestígio de um dos maiores cientistas da humanidade, teve que esperar mais de três séculos para ser absolvido pela Igreja Católica. Não imaginava que isso fosse possível – e olhe que eu já imaginei cada coisa difícil de acontecer. Fiz até uma canção sobre isso. Aliás, eu poderia dizer que essa canção é mais famosa que Ave-Maria, mas não vou dar essa declaração. Chega de polêmica. Bom, como ia dizendo, meu coração se encheu de alegria. Por instantes, pensei até que o sonho não tinha acabado. Tive instintos de fazer uma nova canção. Depois, refleti bem e entendi que o melhor era vir aqui e retribuir o gesto. Não sou candidato a santo, apesar de que muitos queiram me ver como tal. Mas creio que minha obrigação é ser ainda mais generoso do que foram comigo. Portanto, perdoarei mais que uma simples declaração. Perdoarei atos e conseqüências. Vamos à lista:
Eu perdoo as cruzadas. A inquisição. Perdoo por terem queimado vivo Giordano Bruno, por terem perseguido Galileu. Levo na boa o genocídio dos índios nas Américas. Perdoo pela omissão sobre os horrores do holocausto na II Guerra, mesmo tendo conhecimento sobre o mesmo.
Quanto ao encobrimento dos abusos dos padres pedófilos, contra a proibição dos casamentos entre homossexuais, contra os métodos contraceptivos (principalmente a camisinha) e suas conseqüências na geração desigualdade, pobreza e doenças e as músicas do Padre Marcelo, eu só me manifestarei quando o L’Osservatore Romano elogiar o Sargent Pepper.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Menos um, menos um...

A pêndula 
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim: 
— Outra de menos... 
— Outra de menos...  
— Outra de menos... 
— Outra de menos... 
O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis 
"O sangue amarelou... Tonho, tu conhece a tua obrigação"
A metáfora construída, de modo brilhante, por Machado de Assis, norteia a releitura cinematográfica de Walter Salles do romance albanês "Abril despedaçado". Estamos em 1910, no sertão brasileiro. Envolvidos em seculares disputas territoriais, duas famílias, Breves e Ferreiras, matam, metodicamente, uns aos outros ao longo de gerações por questões de honra. Tonho é o filho do meio da família Breves. Seu irmão mais velho fora assassinado pela família rival, e o patriarca o impele a vingar a morte do membro da família. Seguindo a tradição, o pai pendura a camisa ensanguentada de seu finado filho ao ar livre, até que ela ficasse amarelada, quando a hora da vingança estaria indicada.
"É a minha história, do meu irmão e de uma camisa no vento"
Nesse cenário, surge o menino mais novo, que é contrário a perpetuação da vingança. Tonho, diante da reação do pequeno irmão, passa a questionar a tradição. Sabe que, se matar um membro da família rival, ele será o próximo na mortífera linha de sucessão. As raízes patriarcais de ordem e disciplina rurais fazem com que Tonho dirija-se até a propriedade rival e tire a vida de um Ferreira. Mais uma morte matada no sertão, por onde aves-bala sempre voam desocupadas. Não tardaria para que as filhas-bala começassem a voar também. 

No funeral da mais recente vítima da violência sertaneja, Tonho faz um pedido de trégua ao pai Ferreira. Em nome da tradição, da dignidade e da honra, o patriarca, já cego, divide a vida de Tonho em duas: a primeira seriam os vinte anos por ele já vividos; a segunda, a convivência com o espectro da morte, em que o tempo seria contando de modo regressivo - enquanto o relógio progredia, mais de sua vida era descontada. A camisa do finado foi estendida. Até a próxima lua cheia, ela já estaria amarelada. No braço de Tonho foi posta uma fita preta, indicando que ele seria a próxima vítima.
"Nessa história de olho por olho, todo mundo ficou cego"

A modernização conservadora e excludente do Brasil no período ameaçava a economia da família Breves. A produção de açúcar por meio da força animada, com a bolandeira (carro de bois), era preterida pelas novas usinas a vapor. O progresso agravava a vida do sertanejo, e a impunidade oriunda da ausência estatal não regulava as disputas territoriais. A cidade, localizada no meio do nada, acima do chão e debaixo do sol, chamava-se Riacho das Almas. O riacho, contudo, havia secado; só restaram as almas.

Construído de modo muito poético, o tema universal, pensado, originalmente, nas montanhas da Albânia, foi transposto e aculturado, com muitos simbolismos, para o sertão brasileiro. A bolandeira e suas engrenagens funcionam como um relógio marcando o tempo; a aproximação da morte. O balanço, por sua vez, como um metrônomo, um pêndulo. A bolandeira possui uma múltipla função na obra: além de lembrar a morte, simboliza a repetição, a indolência, o autoritarismo paterno, a tristeza, a obrigação do labor, a insistência em ações retrógradas, o previsível, a impossibilidade da coexistência com novas ideias. O filme também é repleto de linguagem não verbal, com o silêncio e a escuridão marcando a constante presença da morte.


O encontro com dois forasteiros artistas de um circo itinerário dita o tom existencial de "Abril despedaçado". Eles passam pela remota região de Riacho das Almas e pedem informação para o anônimo filho mais novo da família Breves. Chamado apenas de Menino, o garoto recebe um livro dos artistas Clara e Salustiano e, embora analfabeto, passou a criar diversas histórias, por meio das figuras, que fugiam da agressiva realidade da seca. Dentre as personagens principais em suas fantasias, havia uma sereia e outros seres marinhos. A sereia era a imagem de Clara, que provocou a admiração dos dois irmãos e mais tarde despertaria o amor em Tonho. Tonho e Menino, seu irmão mais novo, desafiando as ordens do pai, vão até a cidade ver a apresentação da dupla. Salustiano batiza o Menino e o chama de Pacu. O ideal de humanização do mar fez com que o menino passasse a ter nome de peixe. Com a morte já decretada, Tonho passa a tomar consciência de sua existência: desrespeita o castigo do pai; deixa de ser modelado pelo meio e começa a se tornar sujeito de suas próprias ações. Ele sai para viajar com os artistas e expande seus horizontes - é quando descobre o amor. Numa cena muito delicada, a simbologia da roda assume uma dimensão positiva: sob os estímulos de Clara, Tonho gira a sua própria roda e se sente muito feliz.

Tonho vive a fantasia de seu irmão Pacu. Chegada a hora da vingança, o cego, vítima da política 'olho por olho', comete um erro. A chuva cai. Na escuridão da Caatinga, o Ferreira da vez deixa seus óculos caírem e acerta o tiro em Pacu: cobrou o sangue errado. Tonho segue caminhando. O pai ordena, em vão, que ele retorne. A mulher sofre com a morte. Deixe ele ir! Acabou, homem! A estrada se bifurca. Tonho prossegue rumo ao mar. 

Marco no cinema existencial brasileiro, o filme dialoga com notáveis obras que tematizam a seca. Vidas Secas nos mostra a cachorra Baleia, a mais lúcida membra da família de Fabiano, também com um nome que faz referência ao mar. Em Morte e vida severina, Severino queria criar sua própria existência no litoral. Retornando a Vidas Secas, vê-se a dificuldade das personagens com a fala, a utilização de sons guturais, filhos da família sem nome, chamados de "meninos". No mesmo patamar de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, Walter Salles compôs uma obra essencial para a compreensão cultural da seca no Brasil. As almas despedaçadas presavam mais a honra do que valores humanos; apenas a valorização da própria existência possibilitaria novas histórias, fantasias, amores, descobertas e sonhos realizados. 
"Agora tu já sabe minha história, mas eu continuo sem me lembrar da outra... uma sereia, um sapo... diacho! veio buscar a sereia... não, não era isso... caralho! a sereia que foi buscar... é isso, acho que tô lembrando! Um dia a sereia veio buscar o menino para viver mais ela, e ele gostou. Ela virou o menino em peixe e levou ele para viver embaixo do mar. No mar ninguém morria e tinha lugar para todo mundo... no mar eles viviam tão felizes! Tão felizes que não conseguiam parar de dar risada"
Pacu 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Incursão: parte III - o mar virou sertão

Montanhas, serras e chapadas nos guiaram durante boa parte do percurso até Ponte Alta do Tocantis. Quanto mais adentro no interior brasileiro, maiores as distâncias, menores os sinais de vida humana, e mais preservada a natureza. Emas, lagartos, aranhas e mais uma imensa variedade de aves do Cerrado surgiram no trajeto. Infelizmente, a quantidade de pequenos mamíferos mortos na estrada era alta. As plantações de soja tardaram, mas apareceram, já perto de Palmas. O Cerrado aberto de Goiás começa a dar lugar a plantações mais fechadas: os babaçus indicam a transição para o domínio amazônico. Cruzamos o limite da Amazônia Legal. Entrando em Tocantins, as estradas recaem bastante de nível em relação a Goiás. Seguimos pela Rodovia Coluna Prestes, nomeada em homenagem ao movimento encabeçado por Luis Carlos Prestes, que percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil, conspirando contra a República das Oligarquias. Prestes, pelo visto muito cultuado em Tocantins, passou por aqui antes de seguir para o nordeste.

Aqui se trafega por quilômetros sem cruzar com carros na estrada ou com indivíduos nas bordas da rodovia. Há muita pobreza, porém pouca miséria. A seca não aflige Tocantins. Pelo contrário, chove diariamente, a ponto de os moradores chamarem o verão, período das chuvas, de inverno. Todas as casas por que passei, ainda que rústicas - feitas adobe e pau-a-pique -, dispunham de energia elétrica e, frequentemente, de antenas de TV a cabo e sistema de telefonia. Programas do governo federal são exaltados, como o "luz para todos" e a distribuição de ônibus escolares pelo MEC - não é difícil encontrá-los pelo estado. No Jalapão, destino final, todos deslumbram o advento do turismo. Ainda pouco desenvolvido, muito se discute em como torná-lo o meio do progresso para tão remota localidade, situada próximo à tríplice fronteira entre Tocantins, Piauí e Maranhão.



O interior brasileiro se desenvolve. O meu mapa de 2008 estava bastante defasado: estradas de terra já haviam sido asfaltadas, de modo que até Ponte Alta percorri por apenas 20 km em chão, em um terreno que já estava sendo preparado para receber asfalto. Ponte Alta, ponto de partida para o deserto do Jalapão, é uma relativamente grande cidade; a maior da região, com cerca de sete mil habitantes. O turismo, ainda que timidamente, já demonstra seus poderes de transformação. Algumas pequenas agências oferecem algumas modalidades de passeio pelo Jalapão, e a cidade funciona, basicamente, pela prestação de serviços turísticos. Se bem administrada, é possível que Ponte Alta se torne uma cidade como Bonito-MS, ou Porto Seguro-BA, que há cerca de duas décadas atrás atraia apenas os mais descolados dos aventureiros, e, hoje, são renomados e luxuosos destinos. Por enquanto, o Jalapão se mantem desconhecido pela grande maioria da classe média brasileira: em 2013, recebeu apenas 15 mil visitantes. A estranheza do local intimida e excita, a viagem atinge uma diferente atmosfera sensorial.

O deserto do Jalapão não é, em sua essência, um deserto. Seria no sentido de isolamento, distanciamento; área selvagem e, embora bonita, pouco amistosa. A região, contudo, não apresenta características morfoclimáticas extremas. Pelo contrário, a natureza é exuberante e diversificada: córregos, rios, chapadas, serras, cachoeiras, grutas, dunas e fervedouros compõem a paisagem. Além disso, a fauna e flora são ricas e preservadas com eficientes fiscalizações e campanhas de proteção ambiental. Acredita-se que, o que chamamos hoje de deserto, já foi um mar primitivo, que se afastou e deixou biodiversidade e belas montanhas em formatos excêntricos pelo caminho. Por todos os lados, as formações rochosas nos lembram pirâmides, templos e castelos da Antiguidade. Antes de se tornar parque estadual, era uma área fora da lei, a mercê de caçadores e contrabandistas. Ainda hoje, mesmo em menores proporções, há quem compartilhe da mentalidade "faroeste": na pousada de Ponte Alta, comentava-se sobre uma caçada de onça. É importante lembrar que, sobretudo em áreas com o turismo em exponencia, animais valem mais vivos do que mortos. A propósito, os animais silvestres se encontram em um ambiente quase que todo em estado natural. Desse modo, não adaptados à presença humana, são raros de serem avistados. Durante a estadia, passei apenas por emas e uma pequena raposa. Onças, capivaras, lobos-guará, veados e tamanduás são também alguns dos habitantes da região.


Assim, incia-se a jornada pelo Jalapão. O ambiente exige o uso de veículos tracionados nas quatro rodas, e, para isso, contratamos um jipeiro para uma expedição de três dias. A cidade suporte chamava-se Mateiros, nome de uma espécie de veado que foi, durante muito tempo, principal alvo de caçadores. No destino anterior, Chapada dos Veadeiros, o sítio recebeu esse nome em função dos cães que eram utilizados para caçar veados, os "veadeiros". Vale destacar que em nenhuma das localidades vi alguma sombra do animal. 170 km em terra separavam Ponte Alta de Mateiros. No primeiro dia, percorremos todos esses quilômetros encontrando apenas um carro na estrada e alguns pequenos povoados mumbuca, descendentes de escravos que habitam o parque, no caminho. A estrutura do local não permite que almocemos em estruturas ao longo do percurso, já que restaurantes não existem por ali. Levamos na bagagem uma artesanal farofa com carne seca, moída com a força braçal de nosso jipeiro guia. Para cruzar o deserto, nos fizemos do mesmo alimento dos antigos tropeiros, que, em lombos de mula, desbravavam os sertões para trocar mercadorias. A farofa, desidratada, resiste por dias sem que seja necessário nenhum tipo de cuidado.

Bem alimentados, pudemos conhecer as belezas que o Jalapão nos oferece. A primeira parada foi em uma mística gruta, na qual água escorre eternamente por suas paredes, formando belas imagens desenhadas, de modo muito delicado, pela natureza. Lá costuma-se fazer desejos e deixar uma pedra apoiada nas paredes. Depois passamos pelas belíssimas e famosas dunas. Se desertos possuem oásis, as dunas são resquícios de deserto em um imenso oásis. Formadas pelos sedimentos que caem das montanhas, um imenso bloco de areia se constrói no meio da selva. Um pequeno córrego margeia as dunas, em uma bela imagem. Caminhando sobre elas, sentindo o silêncio da natureza, as pegadas denunciam a impossibilidade de se seguir linhas retas. Por alguns instantes, você se sente desnorteado. Ótimo local para meditações, onde costuma-se admirar o pôr-do-sol, tido pelos nativos da região como o mais bonito do Brasil. Mais uma vez, as chuvas inibiram o aclamado pôr-do-sol. No segundo dia, passeamos pelos famosos fervedouros da região, nascentes de rios que fazem a água brotar do subsolo. Pisar ali é uma deliciosa sensação: ao mesmo tempo que nossa perna afunda na areia movediça até os joelhos, a pressão nos joga para cima, de modo que parecemos estar flutuando. Nesse dia, também presenciei uma rara e belíssima cena, da qual nunca irei me esquecer: após mergulhar em uma cachoeira com água cristalina, fui surpreendido com uma revoada de  ao menos uma dúzia de araras-canindé, registrada pela minha câmera fotográfica. Deitado na rede, o responsável pelo local imaginava a construção de um restaurante ali, em que famílias inteiras de turistas pudessem passar o dia.  



O parque estadual do Jalapão é habitado por comunidades quilombolas, chamados de "Mumbucas". Existe uma cidadezinha organizada, que dispõem de igreja e de uma escola. Diversas outras casinhas ficam espalhadas pelo parque. No sertão do século XXI, os jumentos foram substituídos por motocicletas. A integração das comunidades é feita pelo veículo de duas rodas. No segundo dia de expedição, um pequeno povoado nos serviu almoço, preparado em fogão caseiro. Era uma família, que assim como as demais famílias do parque, cuidava das atrações turísticas e cobrava dez reais a visitação. Era composta pelos pais e por seus sete filhos, cuidava de um dos diversos fervedouros e era uma das poucas a preparar almoço para os visitantes. Na cidade mumbuca, todos eram extremamente religiosos: quando chegamos, acontecia um coral gospel ao ar livre. Lá de longe vinha Dona Laura, uma senhorinha, velha parteira e anciã da comunidade. Um carro vindo de Mateiros trazia medicamentos para ela. Na genealogia da comunidade, exposta em uma loja de capim dourado, ela tinha lugar de destaque, a ponto de o governo de Tocantins homenageá-la com uma gravura - também exposta por ali - com um poema que contava a sua história. O capim dourado, retirado dos buritis, é um patrimônio da região e da comunidade mumbuca. Colhido religiosamente todo o ano, é usado para fazer artesanatos que, pela cor, lembram muito produtos feitos com ouro. Importante elemento cultural, já foi exportado para todo o Brasil e contribui para o desenvolvimento sustentável, social e econômico da região.



Em Mateiros, alguns poucos forasteiros são responsáveis pelo turismo local. Os donos de pousadas não saem do eixo Rio-São Paulo. Logo na entrada da cidade, havia uma enorme pousada em construção pela mesma família dona da mais badalada lanchonete de Mateiros, chamada "O carioca". Na pousada em que fiquei, o dono era paulista e vivia ali havia já 15 anos. Estava totalmente adaptado à vida interiorana e trouxe também toda a sua família. A cidade, que poderia ser um distrito de Ponte Alta, é um ambiente bem simples, porém limpo e arrumado. Na praça, galinhas andam livremente. A noite, crianças brincam com suas cabras de estimação, puxadas em colheiras como cachorros. Dona Rosa era a lendária cozinheira e chefe de, senão o único, um dos poucos restaurantes da cidade, que leva o seu nome. Mais velha que o estado de Tocantins, a senhora ainda se dizia goiana. Muito simpática, a partir das 19h, preparava pratos sob aviso prévio e prosava com todos os seus clientes. Fazia-nos sentirmos em ambiente familiar. Seus filhos ajudavam no serviço, e, na ausência deles, pedia para que os próprios clientes fossem até a geladeira da cozinha pegar bebidas. Viveu nas grandes cidades brasileiras e contava histórias de suas vastas experiências. Contou, sorridente, que foi à Ipanema, mas não se tornou a Garota de Ipanema. Já nos chamava de "cariocas" e agia como se nos conhecesse há tempos. Quando o assunto chegou ao fatídico ano de 1994, lembrou-se da morte de Ayrton Senna, estendeu-se à morte dos Mamonas Assassinas e, por fim, comentou do recente caso de Michael Schumacher. Seu semblante mudou e ela passava a repetir que "cada um vai de um jeito". Analisou que, como Schumacher, diferentemente de Senna, não morreu nas pistas de corrida, morreria agora, vítima de um acidente de Snowboard. A morte, segundo Dona Rosa, estaria guardada para cada um. No dia seguinte, durante janta, ela afirmou que uma tia sua havia morrido naquele mesmo dia. Conversando alegremente, como de costume, fazia constantes pausas em sua fala para lembrar-nos que estávamos rindo, mas que era necessário estar consciente de que a morte assola todo mundo. Quando perguntei sobre sua estadia no Rio de Janeiro, ela me respondeu que chorava todo dia, querendo voltar. Sua vida aparentava ter sido muito dura. Problemas da classe média não devem ser, de fato problemas, quando comparados à vida do sertanejo.

Saímos no último dia com uma galinha caipira preparada por Dona Rosa na bagagem. No cemitério da cidade, coveiros cavavam o que seria, provavelmente, a sepultura de sua tia. Faríamos o caminho de volta a Ponte Alta, percorrendo mais alguns atrativos do Jalapão. De manhã cedo, fizemos uma curta, mas puxada caminhada 200 metros acima, para ver, do alto, a imensidão do deserto e os chapadões. Depois, passamos por um complexo de construções que pertenceu a um grande traficante de drogas colombiano na década de 80. A estrutura era impressionante. Como na época a fiscalização era falha e omissa, ele se estabeleceu ali durante muitos anos. Montou, inclusive, uma pista de pouso para aviões. Paramos para almoçar em uma construção que funcionava como um hotel, repleta de dormitórios. O chefe do tráfico construiu uma mansão para si. Estrategicamente, se instalou perto de uma enorme cachoeira, em que não se podia sequer se banhar.

Chegamos cedo em Ponte Alta, onde tínhamos deixado nosso carro. A família e amigos do jipeiro faziam um churrasco no local. Após a despedida, pegamos o carro em direção ao Rio.

Balanço final 


Seguindo o método de não dirigir a noite, saímos de Ponte Alta e dormimos em uma pequenina cidade na fronteira entre Goiás e Tocantins. Nos dois dias seguintes, conseguimos chegar ao Rio. Pretendíamos seguir pelo Piauí e voltar pelo Nordeste, mas a precariedade das estradas, a falta de infraestrutura, a ausência de tração nas quatro rodas e o desgaste até então não nos permitiu. Seguimos, assim, pela rodovia Belém-Brasília, passamos por Goiânia e seguimos pelas ótimas estradas do estado de São Paulo,as melhores do país, onde a viagem fluiu. No total percorremos quase 5000 km e seis unidades da federação. 

Vimos o desenvolvimento do interior, com o ponto de partida em Brasília. O problema logístico das grandes cidades interioranas, como a própria Brasília e Goiânia, que ainda não desenvolveram muito bem a mentalidade dos transportes coletivos. Exemplo de organização e preservação ambiental na Chapada dos Veadeiros. Por outro lado, turismo ainda pouco explorado em Tocantins. A expectativa do turismo como meio de desenvolvimento para a remota região do Jalapão. Culturas quilombolas sobrevivendo sustentavelmente e mantendo as tradições. Estradas cada vez mais precárias conforme nos afastamos dos centros consumidores. Luz e energia elétrica para todos. A dura vida do sertanejo.

Vimos o país que não tem fim. Andamos dias inteiros e conhecemos apenas uma pequeníssima fração do Brasil. Estradas parecem que vão de lugar nenhum a lugar nenhum. A um pequeno passo da Amazônia e do sertão nordestino, imagina-se ambientes ainda mais selvagens e mais desertos. Aumenta-se o desejo de viajar, de conhecer ainda mais regiões; de desbravar todos os Brasis.  


Travessia. ∞