Montanhas, serras e chapadas nos guiaram durante boa parte do percurso até Ponte Alta do Tocantis. Quanto mais adentro no interior brasileiro, maiores as distâncias, menores os sinais de vida humana, e mais preservada a natureza. Emas, lagartos, aranhas e mais uma imensa variedade de aves do Cerrado surgiram no trajeto. Infelizmente, a quantidade de pequenos mamíferos mortos na estrada era alta. As plantações de soja tardaram, mas apareceram, já perto de Palmas. O Cerrado aberto de Goiás começa a dar lugar a plantações mais fechadas: os babaçus indicam a transição para o domínio amazônico. Cruzamos o limite da Amazônia Legal. Entrando em Tocantins, as estradas recaem bastante de nível em relação a Goiás. Seguimos pela Rodovia Coluna Prestes, nomeada em homenagem ao movimento encabeçado por Luis Carlos Prestes, que percorreu cerca de 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil, conspirando contra a República das Oligarquias. Prestes, pelo visto muito cultuado em Tocantins, passou por aqui antes de seguir para o nordeste.
Aqui se trafega por quilômetros sem cruzar com carros na estrada ou com indivíduos nas bordas da rodovia. Há muita pobreza, porém pouca miséria. A seca não aflige Tocantins. Pelo contrário, chove diariamente, a ponto de os moradores chamarem o verão, período das chuvas, de inverno. Todas as casas por que passei, ainda que rústicas - feitas adobe e pau-a-pique -, dispunham de energia elétrica e, frequentemente, de antenas de TV a cabo e sistema de telefonia. Programas do governo federal são exaltados, como o "luz para todos" e a distribuição de ônibus escolares pelo MEC - não é difícil encontrá-los pelo estado. No Jalapão, destino final, todos deslumbram o advento do turismo. Ainda pouco desenvolvido, muito se discute em como torná-lo o meio do progresso para tão remota localidade, situada próximo à tríplice fronteira entre Tocantins, Piauí e Maranhão.
O interior brasileiro se desenvolve. O meu mapa de 2008 estava bastante defasado: estradas de terra já haviam sido asfaltadas, de modo que até Ponte Alta percorri por apenas 20 km em chão, em um terreno que já estava sendo preparado para receber asfalto. Ponte Alta, ponto de partida para o deserto do Jalapão, é uma relativamente grande cidade; a maior da região, com cerca de sete mil habitantes. O turismo, ainda que timidamente, já demonstra seus poderes de transformação. Algumas pequenas agências oferecem algumas modalidades de passeio pelo Jalapão, e a cidade funciona, basicamente, pela prestação de serviços turísticos. Se bem administrada, é possível que Ponte Alta se torne uma cidade como Bonito-MS, ou Porto Seguro-BA, que há cerca de duas décadas atrás atraia apenas os mais descolados dos aventureiros, e, hoje, são renomados e luxuosos destinos. Por enquanto, o Jalapão se mantem desconhecido pela grande maioria da classe média brasileira: em 2013, recebeu apenas 15 mil visitantes. A estranheza do local intimida e excita, a viagem atinge uma diferente atmosfera sensorial.
O deserto do Jalapão não é, em sua essência, um deserto. Seria no sentido de isolamento, distanciamento; área selvagem e, embora bonita, pouco amistosa. A região, contudo, não apresenta características morfoclimáticas extremas. Pelo contrário, a natureza é exuberante e diversificada: córregos, rios, chapadas, serras, cachoeiras, grutas, dunas e fervedouros compõem a paisagem. Além disso, a fauna e flora são ricas e preservadas com eficientes fiscalizações e campanhas de proteção ambiental. Acredita-se que, o que chamamos hoje de deserto, já foi um mar primitivo, que se afastou e deixou biodiversidade e belas montanhas em formatos excêntricos pelo caminho. Por todos os lados, as formações rochosas nos lembram pirâmides, templos e castelos da Antiguidade. Antes de se tornar parque estadual, era uma área fora da lei, a mercê de caçadores e contrabandistas. Ainda hoje, mesmo em menores proporções, há quem compartilhe da mentalidade "faroeste": na pousada de Ponte Alta, comentava-se sobre uma caçada de onça. É importante lembrar que, sobretudo em áreas com o turismo em exponencia, animais valem mais vivos do que mortos. A propósito, os animais silvestres se encontram em um ambiente quase que todo em estado natural. Desse modo, não adaptados à presença humana, são raros de serem avistados. Durante a estadia, passei apenas por emas e uma pequena raposa. Onças, capivaras, lobos-guará, veados e tamanduás são também alguns dos habitantes da região.
Assim, incia-se a jornada pelo Jalapão. O ambiente exige o uso de veículos tracionados nas quatro rodas, e, para isso, contratamos um jipeiro para uma expedição de três dias. A cidade suporte chamava-se Mateiros, nome de uma espécie de veado que foi, durante muito tempo, principal alvo de caçadores. No destino anterior, Chapada dos Veadeiros, o sítio recebeu esse nome em função dos cães que eram utilizados para caçar veados, os "veadeiros". Vale destacar que em nenhuma das localidades vi alguma sombra do animal. 170 km em terra separavam Ponte Alta de Mateiros. No primeiro dia, percorremos todos esses quilômetros encontrando apenas um carro na estrada e alguns pequenos povoados mumbuca, descendentes de escravos que habitam o parque, no caminho. A estrutura do local não permite que almocemos em estruturas ao longo do percurso, já que restaurantes não existem por ali. Levamos na bagagem uma artesanal farofa com carne seca, moída com a força braçal de nosso jipeiro guia. Para cruzar o deserto, nos fizemos do mesmo alimento dos antigos tropeiros, que, em lombos de mula, desbravavam os sertões para trocar mercadorias. A farofa, desidratada, resiste por dias sem que seja necessário nenhum tipo de cuidado.
Bem alimentados, pudemos conhecer as belezas que o Jalapão nos oferece. A primeira parada foi em uma mística gruta, na qual água escorre eternamente por suas paredes, formando belas imagens desenhadas, de modo muito delicado, pela natureza. Lá costuma-se fazer desejos e deixar uma pedra apoiada nas paredes. Depois passamos pelas belíssimas e famosas dunas. Se desertos possuem oásis, as dunas são resquícios de deserto em um imenso oásis. Formadas pelos sedimentos que caem das montanhas, um imenso bloco de areia se constrói no meio da selva. Um pequeno córrego margeia as dunas, em uma bela imagem. Caminhando sobre elas, sentindo o silêncio da natureza, as pegadas denunciam a impossibilidade de se seguir linhas retas. Por alguns instantes, você se sente desnorteado. Ótimo local para meditações, onde costuma-se admirar o pôr-do-sol, tido pelos nativos da região como o mais bonito do Brasil. Mais uma vez, as chuvas inibiram o aclamado pôr-do-sol. No segundo dia, passeamos pelos famosos fervedouros da região, nascentes de rios que fazem a água brotar do subsolo. Pisar ali é uma deliciosa sensação: ao mesmo tempo que nossa perna afunda na areia movediça até os joelhos, a pressão nos joga para cima, de modo que parecemos estar flutuando. Nesse dia, também presenciei uma rara e belíssima cena, da qual nunca irei me esquecer: após mergulhar em uma cachoeira com água cristalina, fui surpreendido com uma revoada de ao menos uma dúzia de araras-canindé, registrada pela minha câmera fotográfica. Deitado na rede, o responsável pelo local imaginava a construção de um restaurante ali, em que famílias inteiras de turistas pudessem passar o dia.
O parque estadual do Jalapão é habitado por comunidades quilombolas, chamados de "Mumbucas". Existe uma cidadezinha organizada, que dispõem de igreja e de uma escola. Diversas outras casinhas ficam espalhadas pelo parque. No sertão do século XXI, os jumentos foram substituídos por motocicletas. A integração das comunidades é feita pelo veículo de duas rodas. No segundo dia de expedição, um pequeno povoado nos serviu almoço, preparado em fogão caseiro. Era uma família, que assim como as demais famílias do parque, cuidava das atrações turísticas e cobrava dez reais a visitação. Era composta pelos pais e por seus sete filhos, cuidava de um dos diversos fervedouros e era uma das poucas a preparar almoço para os visitantes. Na cidade mumbuca, todos eram extremamente religiosos: quando chegamos, acontecia um coral gospel ao ar livre. Lá de longe vinha Dona Laura, uma senhorinha, velha parteira e anciã da comunidade. Um carro vindo de Mateiros trazia medicamentos para ela. Na genealogia da comunidade, exposta em uma loja de capim dourado, ela tinha lugar de destaque, a ponto de o governo de Tocantins homenageá-la com uma gravura - também exposta por ali - com um poema que contava a sua história. O capim dourado, retirado dos buritis, é um patrimônio da região e da comunidade mumbuca. Colhido religiosamente todo o ano, é usado para fazer artesanatos que, pela cor, lembram muito produtos feitos com ouro. Importante elemento cultural, já foi exportado para todo o Brasil e contribui para o desenvolvimento sustentável, social e econômico da região.
Em Mateiros, alguns poucos forasteiros são responsáveis pelo turismo local. Os donos de pousadas não saem do eixo Rio-São Paulo. Logo na entrada da cidade, havia uma enorme pousada em construção pela mesma família dona da mais badalada lanchonete de Mateiros, chamada "O carioca". Na pousada em que fiquei, o dono era paulista e vivia ali havia já 15 anos. Estava totalmente adaptado à vida interiorana e trouxe também toda a sua família. A cidade, que poderia ser um distrito de Ponte Alta, é um ambiente bem simples, porém limpo e arrumado. Na praça, galinhas andam livremente. A noite, crianças brincam com suas cabras de estimação, puxadas em colheiras como cachorros. Dona Rosa era a lendária cozinheira e chefe de, senão o único, um dos poucos restaurantes da cidade, que leva o seu nome. Mais velha que o estado de Tocantins, a senhora ainda se dizia goiana. Muito simpática, a partir das 19h, preparava pratos sob aviso prévio e prosava com todos os seus clientes. Fazia-nos sentirmos em ambiente familiar. Seus filhos ajudavam no serviço, e, na ausência deles, pedia para que os próprios clientes fossem até a geladeira da cozinha pegar bebidas. Viveu nas grandes cidades brasileiras e contava histórias de suas vastas experiências. Contou, sorridente, que foi à Ipanema, mas não se tornou a Garota de Ipanema. Já nos chamava de "cariocas" e agia como se nos conhecesse há tempos. Quando o assunto chegou ao fatídico ano de 1994, lembrou-se da morte de Ayrton Senna, estendeu-se à morte dos Mamonas Assassinas e, por fim, comentou do recente caso de Michael Schumacher. Seu semblante mudou e ela passava a repetir que "cada um vai de um jeito". Analisou que, como Schumacher, diferentemente de Senna, não morreu nas pistas de corrida, morreria agora, vítima de um acidente de Snowboard. A morte, segundo Dona Rosa, estaria guardada para cada um. No dia seguinte, durante janta, ela afirmou que uma tia sua havia morrido naquele mesmo dia. Conversando alegremente, como de costume, fazia constantes pausas em sua fala para lembrar-nos que estávamos rindo, mas que era necessário estar consciente de que a morte assola todo mundo. Quando perguntei sobre sua estadia no Rio de Janeiro, ela me respondeu que chorava todo dia, querendo voltar. Sua vida aparentava ter sido muito dura. Problemas da classe média não devem ser, de fato problemas, quando comparados à vida do sertanejo.
Saímos no último dia com uma galinha caipira preparada por Dona Rosa na bagagem. No cemitério da cidade, coveiros cavavam o que seria, provavelmente, a sepultura de sua tia. Faríamos o caminho de volta a Ponte Alta, percorrendo mais alguns atrativos do Jalapão. De manhã cedo, fizemos uma curta, mas puxada caminhada 200 metros acima, para ver, do alto, a imensidão do deserto e os chapadões. Depois, passamos por um complexo de construções que pertenceu a um grande traficante de drogas colombiano na década de 80. A estrutura era impressionante. Como na época a fiscalização era falha e omissa, ele se estabeleceu ali durante muitos anos. Montou, inclusive, uma pista de pouso para aviões. Paramos para almoçar em uma construção que funcionava como um hotel, repleta de dormitórios. O chefe do tráfico construiu uma mansão para si. Estrategicamente, se instalou perto de uma enorme cachoeira, em que não se podia sequer se banhar.
Chegamos cedo em Ponte Alta, onde tínhamos deixado nosso carro. A família e amigos do jipeiro faziam um churrasco no local. Após a despedida, pegamos o carro em direção ao Rio.
Aqui se trafega por quilômetros sem cruzar com carros na estrada ou com indivíduos nas bordas da rodovia. Há muita pobreza, porém pouca miséria. A seca não aflige Tocantins. Pelo contrário, chove diariamente, a ponto de os moradores chamarem o verão, período das chuvas, de inverno. Todas as casas por que passei, ainda que rústicas - feitas adobe e pau-a-pique -, dispunham de energia elétrica e, frequentemente, de antenas de TV a cabo e sistema de telefonia. Programas do governo federal são exaltados, como o "luz para todos" e a distribuição de ônibus escolares pelo MEC - não é difícil encontrá-los pelo estado. No Jalapão, destino final, todos deslumbram o advento do turismo. Ainda pouco desenvolvido, muito se discute em como torná-lo o meio do progresso para tão remota localidade, situada próximo à tríplice fronteira entre Tocantins, Piauí e Maranhão.
O interior brasileiro se desenvolve. O meu mapa de 2008 estava bastante defasado: estradas de terra já haviam sido asfaltadas, de modo que até Ponte Alta percorri por apenas 20 km em chão, em um terreno que já estava sendo preparado para receber asfalto. Ponte Alta, ponto de partida para o deserto do Jalapão, é uma relativamente grande cidade; a maior da região, com cerca de sete mil habitantes. O turismo, ainda que timidamente, já demonstra seus poderes de transformação. Algumas pequenas agências oferecem algumas modalidades de passeio pelo Jalapão, e a cidade funciona, basicamente, pela prestação de serviços turísticos. Se bem administrada, é possível que Ponte Alta se torne uma cidade como Bonito-MS, ou Porto Seguro-BA, que há cerca de duas décadas atrás atraia apenas os mais descolados dos aventureiros, e, hoje, são renomados e luxuosos destinos. Por enquanto, o Jalapão se mantem desconhecido pela grande maioria da classe média brasileira: em 2013, recebeu apenas 15 mil visitantes. A estranheza do local intimida e excita, a viagem atinge uma diferente atmosfera sensorial.
O deserto do Jalapão não é, em sua essência, um deserto. Seria no sentido de isolamento, distanciamento; área selvagem e, embora bonita, pouco amistosa. A região, contudo, não apresenta características morfoclimáticas extremas. Pelo contrário, a natureza é exuberante e diversificada: córregos, rios, chapadas, serras, cachoeiras, grutas, dunas e fervedouros compõem a paisagem. Além disso, a fauna e flora são ricas e preservadas com eficientes fiscalizações e campanhas de proteção ambiental. Acredita-se que, o que chamamos hoje de deserto, já foi um mar primitivo, que se afastou e deixou biodiversidade e belas montanhas em formatos excêntricos pelo caminho. Por todos os lados, as formações rochosas nos lembram pirâmides, templos e castelos da Antiguidade. Antes de se tornar parque estadual, era uma área fora da lei, a mercê de caçadores e contrabandistas. Ainda hoje, mesmo em menores proporções, há quem compartilhe da mentalidade "faroeste": na pousada de Ponte Alta, comentava-se sobre uma caçada de onça. É importante lembrar que, sobretudo em áreas com o turismo em exponencia, animais valem mais vivos do que mortos. A propósito, os animais silvestres se encontram em um ambiente quase que todo em estado natural. Desse modo, não adaptados à presença humana, são raros de serem avistados. Durante a estadia, passei apenas por emas e uma pequena raposa. Onças, capivaras, lobos-guará, veados e tamanduás são também alguns dos habitantes da região.
Assim, incia-se a jornada pelo Jalapão. O ambiente exige o uso de veículos tracionados nas quatro rodas, e, para isso, contratamos um jipeiro para uma expedição de três dias. A cidade suporte chamava-se Mateiros, nome de uma espécie de veado que foi, durante muito tempo, principal alvo de caçadores. No destino anterior, Chapada dos Veadeiros, o sítio recebeu esse nome em função dos cães que eram utilizados para caçar veados, os "veadeiros". Vale destacar que em nenhuma das localidades vi alguma sombra do animal. 170 km em terra separavam Ponte Alta de Mateiros. No primeiro dia, percorremos todos esses quilômetros encontrando apenas um carro na estrada e alguns pequenos povoados mumbuca, descendentes de escravos que habitam o parque, no caminho. A estrutura do local não permite que almocemos em estruturas ao longo do percurso, já que restaurantes não existem por ali. Levamos na bagagem uma artesanal farofa com carne seca, moída com a força braçal de nosso jipeiro guia. Para cruzar o deserto, nos fizemos do mesmo alimento dos antigos tropeiros, que, em lombos de mula, desbravavam os sertões para trocar mercadorias. A farofa, desidratada, resiste por dias sem que seja necessário nenhum tipo de cuidado.
Bem alimentados, pudemos conhecer as belezas que o Jalapão nos oferece. A primeira parada foi em uma mística gruta, na qual água escorre eternamente por suas paredes, formando belas imagens desenhadas, de modo muito delicado, pela natureza. Lá costuma-se fazer desejos e deixar uma pedra apoiada nas paredes. Depois passamos pelas belíssimas e famosas dunas. Se desertos possuem oásis, as dunas são resquícios de deserto em um imenso oásis. Formadas pelos sedimentos que caem das montanhas, um imenso bloco de areia se constrói no meio da selva. Um pequeno córrego margeia as dunas, em uma bela imagem. Caminhando sobre elas, sentindo o silêncio da natureza, as pegadas denunciam a impossibilidade de se seguir linhas retas. Por alguns instantes, você se sente desnorteado. Ótimo local para meditações, onde costuma-se admirar o pôr-do-sol, tido pelos nativos da região como o mais bonito do Brasil. Mais uma vez, as chuvas inibiram o aclamado pôr-do-sol. No segundo dia, passeamos pelos famosos fervedouros da região, nascentes de rios que fazem a água brotar do subsolo. Pisar ali é uma deliciosa sensação: ao mesmo tempo que nossa perna afunda na areia movediça até os joelhos, a pressão nos joga para cima, de modo que parecemos estar flutuando. Nesse dia, também presenciei uma rara e belíssima cena, da qual nunca irei me esquecer: após mergulhar em uma cachoeira com água cristalina, fui surpreendido com uma revoada de ao menos uma dúzia de araras-canindé, registrada pela minha câmera fotográfica. Deitado na rede, o responsável pelo local imaginava a construção de um restaurante ali, em que famílias inteiras de turistas pudessem passar o dia.
O parque estadual do Jalapão é habitado por comunidades quilombolas, chamados de "Mumbucas". Existe uma cidadezinha organizada, que dispõem de igreja e de uma escola. Diversas outras casinhas ficam espalhadas pelo parque. No sertão do século XXI, os jumentos foram substituídos por motocicletas. A integração das comunidades é feita pelo veículo de duas rodas. No segundo dia de expedição, um pequeno povoado nos serviu almoço, preparado em fogão caseiro. Era uma família, que assim como as demais famílias do parque, cuidava das atrações turísticas e cobrava dez reais a visitação. Era composta pelos pais e por seus sete filhos, cuidava de um dos diversos fervedouros e era uma das poucas a preparar almoço para os visitantes. Na cidade mumbuca, todos eram extremamente religiosos: quando chegamos, acontecia um coral gospel ao ar livre. Lá de longe vinha Dona Laura, uma senhorinha, velha parteira e anciã da comunidade. Um carro vindo de Mateiros trazia medicamentos para ela. Na genealogia da comunidade, exposta em uma loja de capim dourado, ela tinha lugar de destaque, a ponto de o governo de Tocantins homenageá-la com uma gravura - também exposta por ali - com um poema que contava a sua história. O capim dourado, retirado dos buritis, é um patrimônio da região e da comunidade mumbuca. Colhido religiosamente todo o ano, é usado para fazer artesanatos que, pela cor, lembram muito produtos feitos com ouro. Importante elemento cultural, já foi exportado para todo o Brasil e contribui para o desenvolvimento sustentável, social e econômico da região.
Em Mateiros, alguns poucos forasteiros são responsáveis pelo turismo local. Os donos de pousadas não saem do eixo Rio-São Paulo. Logo na entrada da cidade, havia uma enorme pousada em construção pela mesma família dona da mais badalada lanchonete de Mateiros, chamada "O carioca". Na pousada em que fiquei, o dono era paulista e vivia ali havia já 15 anos. Estava totalmente adaptado à vida interiorana e trouxe também toda a sua família. A cidade, que poderia ser um distrito de Ponte Alta, é um ambiente bem simples, porém limpo e arrumado. Na praça, galinhas andam livremente. A noite, crianças brincam com suas cabras de estimação, puxadas em colheiras como cachorros. Dona Rosa era a lendária cozinheira e chefe de, senão o único, um dos poucos restaurantes da cidade, que leva o seu nome. Mais velha que o estado de Tocantins, a senhora ainda se dizia goiana. Muito simpática, a partir das 19h, preparava pratos sob aviso prévio e prosava com todos os seus clientes. Fazia-nos sentirmos em ambiente familiar. Seus filhos ajudavam no serviço, e, na ausência deles, pedia para que os próprios clientes fossem até a geladeira da cozinha pegar bebidas. Viveu nas grandes cidades brasileiras e contava histórias de suas vastas experiências. Contou, sorridente, que foi à Ipanema, mas não se tornou a Garota de Ipanema. Já nos chamava de "cariocas" e agia como se nos conhecesse há tempos. Quando o assunto chegou ao fatídico ano de 1994, lembrou-se da morte de Ayrton Senna, estendeu-se à morte dos Mamonas Assassinas e, por fim, comentou do recente caso de Michael Schumacher. Seu semblante mudou e ela passava a repetir que "cada um vai de um jeito". Analisou que, como Schumacher, diferentemente de Senna, não morreu nas pistas de corrida, morreria agora, vítima de um acidente de Snowboard. A morte, segundo Dona Rosa, estaria guardada para cada um. No dia seguinte, durante janta, ela afirmou que uma tia sua havia morrido naquele mesmo dia. Conversando alegremente, como de costume, fazia constantes pausas em sua fala para lembrar-nos que estávamos rindo, mas que era necessário estar consciente de que a morte assola todo mundo. Quando perguntei sobre sua estadia no Rio de Janeiro, ela me respondeu que chorava todo dia, querendo voltar. Sua vida aparentava ter sido muito dura. Problemas da classe média não devem ser, de fato problemas, quando comparados à vida do sertanejo.
Saímos no último dia com uma galinha caipira preparada por Dona Rosa na bagagem. No cemitério da cidade, coveiros cavavam o que seria, provavelmente, a sepultura de sua tia. Faríamos o caminho de volta a Ponte Alta, percorrendo mais alguns atrativos do Jalapão. De manhã cedo, fizemos uma curta, mas puxada caminhada 200 metros acima, para ver, do alto, a imensidão do deserto e os chapadões. Depois, passamos por um complexo de construções que pertenceu a um grande traficante de drogas colombiano na década de 80. A estrutura era impressionante. Como na época a fiscalização era falha e omissa, ele se estabeleceu ali durante muitos anos. Montou, inclusive, uma pista de pouso para aviões. Paramos para almoçar em uma construção que funcionava como um hotel, repleta de dormitórios. O chefe do tráfico construiu uma mansão para si. Estrategicamente, se instalou perto de uma enorme cachoeira, em que não se podia sequer se banhar.
Chegamos cedo em Ponte Alta, onde tínhamos deixado nosso carro. A família e amigos do jipeiro faziam um churrasco no local. Após a despedida, pegamos o carro em direção ao Rio.
Balanço final
Seguindo o método de não dirigir a noite, saímos de Ponte Alta e dormimos em uma pequenina cidade na fronteira entre Goiás e Tocantins. Nos dois dias seguintes, conseguimos chegar ao Rio. Pretendíamos seguir pelo Piauí e voltar pelo Nordeste, mas a precariedade das estradas, a falta de infraestrutura, a ausência de tração nas quatro rodas e o desgaste até então não nos permitiu. Seguimos, assim, pela rodovia Belém-Brasília, passamos por Goiânia e seguimos pelas ótimas estradas do estado de São Paulo,as melhores do país, onde a viagem fluiu. No total percorremos quase 5000 km e seis unidades da federação.
Vimos o desenvolvimento do interior, com o ponto de partida em Brasília. O problema logístico das grandes cidades interioranas, como a própria Brasília e Goiânia, que ainda não desenvolveram muito bem a mentalidade dos transportes coletivos. Exemplo de organização e preservação ambiental na Chapada dos Veadeiros. Por outro lado, turismo ainda pouco explorado em Tocantins. A expectativa do turismo como meio de desenvolvimento para a remota região do Jalapão. Culturas quilombolas sobrevivendo sustentavelmente e mantendo as tradições. Estradas cada vez mais precárias conforme nos afastamos dos centros consumidores. Luz e energia elétrica para todos. A dura vida do sertanejo.
Vimos o país que não tem fim. Andamos dias inteiros e conhecemos apenas uma pequeníssima fração do Brasil. Estradas parecem que vão de lugar nenhum a lugar nenhum. A um pequeno passo da Amazônia e do sertão nordestino, imagina-se ambientes ainda mais selvagens e mais desertos. Aumenta-se o desejo de viajar, de conhecer ainda mais regiões; de desbravar todos os Brasis.
Travessia. ∞
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