A pêndula
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:— Outra de menos...— Outra de menos...— Outra de menos...— Outra de menos...O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
"O sangue amarelou... Tonho, tu conhece a tua obrigação"
A metáfora construída, de modo brilhante, por Machado de Assis, norteia a releitura cinematográfica de Walter Salles do romance albanês "Abril despedaçado". Estamos em 1910, no sertão brasileiro. Envolvidos em seculares disputas territoriais, duas famílias, Breves e Ferreiras, matam, metodicamente, uns aos outros ao longo de gerações por questões de honra. Tonho é o filho do meio da família Breves. Seu irmão mais velho fora assassinado pela família rival, e o patriarca o impele a vingar a morte do membro da família. Seguindo a tradição, o pai pendura a camisa ensanguentada de seu finado filho ao ar livre, até que ela ficasse amarelada, quando a hora da vingança estaria indicada.
"É a minha história, do meu irmão e de uma camisa no vento"
Nesse cenário, surge o menino mais novo, que é contrário a perpetuação da vingança. Tonho, diante da reação do pequeno irmão, passa a questionar a tradição. Sabe que, se matar um membro da família rival, ele será o próximo na mortífera linha de sucessão. As raízes patriarcais de ordem e disciplina rurais fazem com que Tonho dirija-se até a propriedade rival e tire a vida de um Ferreira. Mais uma morte matada no sertão, por onde aves-bala sempre voam desocupadas. Não tardaria para que as filhas-bala começassem a voar também.
No funeral da mais recente vítima da violência sertaneja, Tonho faz um pedido de trégua ao pai Ferreira. Em nome da tradição, da dignidade e da honra, o patriarca, já cego, divide a vida de Tonho em duas: a primeira seriam os vinte anos por ele já vividos; a segunda, a convivência com o espectro da morte, em que o tempo seria contando de modo regressivo - enquanto o relógio progredia, mais de sua vida era descontada. A camisa do finado foi estendida. Até a próxima lua cheia, ela já estaria amarelada. No braço de Tonho foi posta uma fita preta, indicando que ele seria a próxima vítima.
A modernização conservadora e excludente do Brasil no período ameaçava a economia da família Breves. A produção de açúcar por meio da força animada, com a bolandeira (carro de bois), era preterida pelas novas usinas a vapor. O progresso agravava a vida do sertanejo, e a impunidade oriunda da ausência estatal não regulava as disputas territoriais. A cidade, localizada no meio do nada, acima do chão e debaixo do sol, chamava-se Riacho das Almas. O riacho, contudo, havia secado; só restaram as almas.
Construído de modo muito poético, o tema universal, pensado, originalmente, nas montanhas da Albânia, foi transposto e aculturado, com muitos simbolismos, para o sertão brasileiro. A bolandeira e suas engrenagens funcionam como um relógio marcando o tempo; a aproximação da morte. O balanço, por sua vez, como um metrônomo, um pêndulo. A bolandeira possui uma múltipla função na obra: além de lembrar a morte, simboliza a repetição, a indolência, o autoritarismo paterno, a tristeza, a obrigação do labor, a insistência em ações retrógradas, o previsível, a impossibilidade da coexistência com novas ideias. O filme também é repleto de linguagem não verbal, com o silêncio e a escuridão marcando a constante presença da morte.
"Nessa história de olho por olho, todo mundo ficou cego"
Construído de modo muito poético, o tema universal, pensado, originalmente, nas montanhas da Albânia, foi transposto e aculturado, com muitos simbolismos, para o sertão brasileiro. A bolandeira e suas engrenagens funcionam como um relógio marcando o tempo; a aproximação da morte. O balanço, por sua vez, como um metrônomo, um pêndulo. A bolandeira possui uma múltipla função na obra: além de lembrar a morte, simboliza a repetição, a indolência, o autoritarismo paterno, a tristeza, a obrigação do labor, a insistência em ações retrógradas, o previsível, a impossibilidade da coexistência com novas ideias. O filme também é repleto de linguagem não verbal, com o silêncio e a escuridão marcando a constante presença da morte.
O encontro com dois forasteiros artistas de um circo itinerário dita o tom existencial de "Abril despedaçado". Eles passam pela remota região de Riacho das Almas e pedem informação para o anônimo filho mais novo da família Breves. Chamado apenas de Menino, o garoto recebe um livro dos artistas Clara e Salustiano e, embora analfabeto, passou a criar diversas histórias, por meio das figuras, que fugiam da agressiva realidade da seca. Dentre as personagens principais em suas fantasias, havia uma sereia e outros seres marinhos. A sereia era a imagem de Clara, que provocou a admiração dos dois irmãos e mais tarde despertaria o amor em Tonho. Tonho e Menino, seu irmão mais novo, desafiando as ordens do pai, vão até a cidade ver a apresentação da dupla. Salustiano batiza o Menino e o chama de Pacu. O ideal de humanização do mar fez com que o menino passasse a ter nome de peixe. Com a morte já decretada, Tonho passa a tomar consciência de sua existência: desrespeita o castigo do pai; deixa de ser modelado pelo meio e começa a se tornar sujeito de suas próprias ações. Ele sai para viajar com os artistas e expande seus horizontes - é quando descobre o amor. Numa cena muito delicada, a simbologia da roda assume uma dimensão positiva: sob os estímulos de Clara, Tonho gira a sua própria roda e se sente muito feliz.
Tonho vive a fantasia de seu irmão Pacu. Chegada a hora da vingança, o cego, vítima da política 'olho por olho', comete um erro. A chuva cai. Na escuridão da Caatinga, o Ferreira da vez deixa seus óculos caírem e acerta o tiro em Pacu: cobrou o sangue errado. Tonho segue caminhando. O pai ordena, em vão, que ele retorne. A mulher sofre com a morte. Deixe ele ir! Acabou, homem! A estrada se bifurca. Tonho prossegue rumo ao mar.
Marco no cinema existencial brasileiro, o filme dialoga com notáveis obras que tematizam a seca. Vidas Secas nos mostra a cachorra Baleia, a mais lúcida membra da família de Fabiano, também com um nome que faz referência ao mar. Em Morte e vida severina, Severino queria criar sua própria existência no litoral. Retornando a Vidas Secas, vê-se a dificuldade das personagens com a fala, a utilização de sons guturais, filhos da família sem nome, chamados de "meninos". No mesmo patamar de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, Walter Salles compôs uma obra essencial para a compreensão cultural da seca no Brasil. As almas despedaçadas presavam mais a honra do que valores humanos; apenas a valorização da própria existência possibilitaria novas histórias, fantasias, amores, descobertas e sonhos realizados.
"Agora tu já sabe minha história, mas eu continuo sem me lembrar da outra... uma sereia, um sapo... diacho! veio buscar a sereia... não, não era isso... caralho! a sereia que foi buscar... é isso, acho que tô lembrando! Um dia a sereia veio buscar o menino para viver mais ela, e ele gostou. Ela virou o menino em peixe e levou ele para viver embaixo do mar. No mar ninguém morria e tinha lugar para todo mundo... no mar eles viviam tão felizes! Tão felizes que não conseguiam parar de dar risada"
Pacu
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