domingo, 23 de fevereiro de 2014

"Jesus estava certo, mas seus discípulos eram grossos e ordinários"

Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: "Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?" Jesus respondeu: "Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete.
Mateus 18:21-22
"O cristianismo vai desaparecer e encolher. Eu não preciso discutir isso, eu estou certo e eu vou provar. Nós somos mais populares que Jesus agora. Eu não sei qual será o primeiro - o rock 'n' roll ou o cristianismo. Jesus estava certo, mas seus discípulos eram grossos e ordinários. É a distorção deles que estraga tudo para mim."
John Lennon 
Eis que estou em Santos! Perdido pela rua Ana Costa, procuro conforto em uma livraria. Chamada de Realejo, era também uma editora, que vendia seus próprios livros. Um grande negócio. Pedi um café, peguei um livro para ler e logo a dona da loja se aproximou. Seu marido, livreiro, sentado com um jornal em mãos próximo a porta de entrada, trabalhava como chefe e ilustrador da editora. Ele era um dos pilares de uma parceira com a Carta Capital, em que o colunista Vitor Knijnik mantem um seção chamada de Blogs do além. Com muito humor, Knijnik psicografa mensagens de falecidos ícones da ciência, política, arte e cultura popular. Aproveita, também, para fazer suas irreverentes críticas sociais.
"Christ, you know it ain't easy
You know how hard it can be
The way things are going
They're gonna crucify me"
"Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor"
"Sim, eu acredito que Deus é como uma usina de força, que ele é um poder supremo, que não é nem bom nem ruim, nem de direita nem de esquerda, nem branco nem preto, Ele simplesmente é"
"Não sou antideus, nem anticristo, nem antireligião. Se tivesse dito que a televisão era mais popular do que Jesus, ninguém teria ligado. Eu só usei o termo 'Beatles' para exemplificar, porque é mais fácil para mim. Meu comentário se referia ao que acontece na Inglaterra. Lá somos mais influentes para os jovens do que a religião. Não era minha intenção ofender, mas é um fato. Não quis comparar Jesus Cristo a uma pessoa, nem nada do tipo. Fui mal interpretado".
No caso, o personagem John Lennon ironiza a negativa repercussão de sua declaração quanto ao fato de os Beatles serem mais famosos do que Jesus Cristo. Em 1966, quando os quatro garotos de Liverpool já se sentiam esgotados pelos purgantes anos da beatlemania, um pequeno trecho de uma entrevista em uma publicação inglesa, intitulada "Como vive um Beatle?", reproduziu-se de modo a marcar a história do rock, dos Beatles e dos anos 60. Em meio àquele caos, Lennon analisou a importância do rock, da cultura pop, para a juventude, julgando-a maior do que a da religião naquele momento. Utilizou-se dos termos "Beatles" e "Jesus Cristo" com valores metonímicos para a sua argumentação. Foi o estopim para causar a fúria de devotos católicos estadunidenses.


Pastores organizaram queima de discos. Iniciaram movimentos para boicotar a banda inglesa. As rádios deixaram de tocar suas músicas. A Igreja passou a chamar John, Paul, George e Ringo de satânicos. Os Beatles passaram a ser hostilizados. Temendo, sobretudo por suas integridades físicas, pararam de se apresentar ao vivo. John, com sua habitual língua afiada, fez um pedido público de desculpas, sem retirar o que disse. Avisou que sua mensagem deveria ser mais universal e generalista e que não era contrário à religião ou à figura de Jesus. A Igreja Católica, contrariando um de seus próprios preceitos, após anos de repugnância aos Beatles, perdoou-os apenas em 2009, quando se comemorava 40 anos do lançamento do álbum branco ('The Beatles - White album). Ringo Starr, um dos beatles ainda vivos, não gostou da posição da Igreja, alegando que ela teria assuntos mais importantes com que se preocupar. Ainda nesse ano, o jornal Daily Telegraph apurou que a palavra Beatles foi mais pesquisada do que Jesus no Google. Claro que, nas circunstâncias da polêmica, também houve diversas manifestações de apoio a banda. O lema principal era "John, eu rezo para você!"


Nos anos que se seguiram à polêmica declaração, a banda emplacou grandes sucessos. Ainda em 1966, lançaram o álbum Revolver, que trazia inovações inéditas na história da música, como guitarras revertidas e o sincretismo entre o pop ocidental e a música indiana. No ano seguinte, Sargent Pepper's se consagrou como o álbum de rock mais revolucionário de todos os tempos. A genialidade dos Beatles, como reforçada na própria carta de perdão do Vaticano, transpôs todas as controvérsias. Segundo a publicação, a declaração se tornou insignificante perante a grandiosidade da banda. Item valioso nos mercados negros de países em que a banda foi banida, suas músicas continuaram causando admiração universal. Um exemplo em outro contexto foi quando Fidel Castro, como presidente de Cuba após a revolução, proibiu os Beatles no país por os julgar um símbolo imperialista. Ele percebeu seu equívoco, sobretudo com músicas da carreira solo de Lennon, como Imagine e Working Class Hero, e logo corrigiu seu erro histórico, criando uma praça em Havanna em homenagem à memória do artista.

Em 1980, John foi assassinado por seu próprio fã, seu próprio seguidor. Uma traição equiparável a de Judas. No fim, o que construiu foi quase uma religião; uma entidade muito forte, unida pelo bom gosto musical e pelas mensagens de amor e paz universal das letras de suas músicas. O legado que John, junto aos Beatles, deixou resiste ao tempo e, talvez, assim como o cristianismo, poderá perdurar por milênios, marcando o início de uma nova era.    

Segue o "Blog do John Lennon", publicado na Carta Capital e na coletânea "Blogs do além". Quanto à nova polêmica proposta pelo autor, Imagine é, de fato, mais famosa que Ave-Maria.    

A outra face
Não sei se vocês sabem que o jornal da Santa Sé L’Osservatore Romano informou que a Igreja Católica me perdoou por ter declarado que os Beatles eram mais populares do que Jesus Cristo. O artigo me absolve dizendo que “A declaração de John Lennon, que provocou tanta indignação nos Estados Unidos, depois de todos estes anos soa como uma bravata de um jovem proletário inglês às voltas com um sucesso inesperado”. O texto ainda saúda os 40 anos do álbum branco: “O fato é que 38 anos após o rompimento, as canções de John Lennon e Paul McCartney mostraram uma extraordinária resistência à passagem do tempo, tornando-se uma fonte de inspiração para mais de uma geração de músicos pop”, afirmou o jornal. Primeiro, quero dizer que estou preocupado com a repercussão negativa que isso pode ter sobre as vendas do álbum branco. As conseqüências podem ser piores do que as provocadas pela crise global. Mas o aspecto comercial não é o mais importante. O perdão me comoveu sinceramente. Vi que eu sou um cara de sorte. O Galileu Galilei, por exemplo, com todo o prestígio de um dos maiores cientistas da humanidade, teve que esperar mais de três séculos para ser absolvido pela Igreja Católica. Não imaginava que isso fosse possível – e olhe que eu já imaginei cada coisa difícil de acontecer. Fiz até uma canção sobre isso. Aliás, eu poderia dizer que essa canção é mais famosa que Ave-Maria, mas não vou dar essa declaração. Chega de polêmica. Bom, como ia dizendo, meu coração se encheu de alegria. Por instantes, pensei até que o sonho não tinha acabado. Tive instintos de fazer uma nova canção. Depois, refleti bem e entendi que o melhor era vir aqui e retribuir o gesto. Não sou candidato a santo, apesar de que muitos queiram me ver como tal. Mas creio que minha obrigação é ser ainda mais generoso do que foram comigo. Portanto, perdoarei mais que uma simples declaração. Perdoarei atos e conseqüências. Vamos à lista:
Eu perdoo as cruzadas. A inquisição. Perdoo por terem queimado vivo Giordano Bruno, por terem perseguido Galileu. Levo na boa o genocídio dos índios nas Américas. Perdoo pela omissão sobre os horrores do holocausto na II Guerra, mesmo tendo conhecimento sobre o mesmo.
Quanto ao encobrimento dos abusos dos padres pedófilos, contra a proibição dos casamentos entre homossexuais, contra os métodos contraceptivos (principalmente a camisinha) e suas conseqüências na geração desigualdade, pobreza e doenças e as músicas do Padre Marcelo, eu só me manifestarei quando o L’Osservatore Romano elogiar o Sargent Pepper.

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