quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Meu encontro com um campo de refugiados

A poucos quilômetros ao norte de Amã, o mundo chora o drama dos mais sofridos exemplares de seus habitantes. Ali fica o maior campo de refugiados do mundo, onde 150 mil sírios esperam o fim de uma guerra civil que já dura sete anos. O fim da guerra, contudo, é uma esperança vazia. O campo, concebido como uma estrutura temporária, evolui para uma grande, permanente e desordenada cidade, a quarta maior da Jordânia. As casas não possuem paredes de concreto, não há tubulação de água, o fornecimento de energia é apenas pontual, não há ruas ou vias pavimentadas. Os refugiados tiveram seus lares despedaçados e, se antes da guerra já tinham pouco, agora não possuem mais nada.

Saem em busca da libertação, mas encontram uma vida de cárcere. O campo é completamente cercado, sempre com altas grades e arame farpado no topo. Por motivos que não se compreende bem (o governo jordaniano afirma que por "segurança"), os refugiados são impedidos de deixar o local até que alguém decida algum destino para eles. Embora alguns burlem as regras, ninguém consegue ter uma renda própria ou determinar o próprio rumo de suas vidas; dependem totalmente de ajuda humanitária. O que acontece com os sírios é uma verdadeira diáspora dos nossos tempos, e muitos países, como a própria Jordânia, penam em receber ou ocupar todos esses miseráveis indivíduos, que vivem no completo marasmo, sonhando com dias melhores. 

O que se vê ao percorrer o perímetro do campo é a mais triste imagem da vida humana. Caminhões-pipa enchem reservatórios d'água, e, sem uma rede de encanamento, os refugiados devem buscar sua água no intenso calor do deserto. Por não haver ruas, automóveis não transitam dentro do campo, e muitos precisam caminhar longas distâncias para ter acesso a um bem tão essencial quanto a água. Alguns mais sortudos dispõem de bicicletas para locomoção, como um jovem garoto que tenta vender na beira da estrada colchões que recebe de doações. Esta, a propósito, é uma prática bastante comum: refugiados buscam converter as esmolas que recebem em mercadorias. Os campos verdes ficam mais largos conforme se deixa a Jordânia em direção à Síria, e, quem consegue, a despeito das proibições, deixa o vilarejo para trabalhar em fazendas da região. Os refugiados vivem em tendas de estrutura metálica, que podem ser erguidas com muita facilidade. Isso permite que o complexo aumente rapidamente de tamanho, sem que, no entanto, a infraestrutura melhore no mesmo ritmo. Famílias, quando não separadas pela guerra, dividem banheiros e cozinha. Apesar da grande atuação das Nações Unidas e de diversas ONGs, mal existe o mínimo para se viver. Para onde se olha, há dor, caos e desespero.

Muitas são as emoções que movem o nosso coração quando estamos diante da insuficiência. Suficiente é a qualidade do mínimo necessário para a vida humana, um limite acima do qual podemos nos concentrar em qualquer outra coisa além da nossa própria sobrevivência. Quando vemos situações de insuficiência, sentimos caridade pelo sofrimento alheio, ao passo que passamos a temer o desamparo e a desolação. Não é fácil ser observador da insuficiência: lidamos com sensações que podem ser nobres ou caprichosas, enquanto nos resta tentar nos colocar no lugar dos que levam uma vida escassa. A guerra rouba a humanidade das pessoas, as reduz a organismos buscando se adaptar - viver, afinal, é se adaptar. Onde existe fome, miséria e escassez, existe uma guerra que pode explicar todas essas mazelas. O homem passa a seguir regras sobrenaturais, alheias inclusive às Leis da Selva, em que, salvo em raras exceções, indivíduos da mesma espécie não matam seus iguais. Não há pena ou dor em matar, a bondade é condenada: que poder teriam os homens para concederem a si próprios uma qualidade tão divina quanto a bondade?

Essa tenebrosa guerra um dia deve acabar. Mas o que acontecerá com todos esses refugiados quando esse sonhado dia chegar? Como recomeçar a vida quando sua nação está devastada e suas raízes já não existem mais? Como deixar um lugar sabendo que, se algo der errado, não poderá voltar? Como encontrar uma direção quando não se tem lar, renda, estudo ou, mesmo, família? O que a nossa experiência na Terra diz é que todos se tornarão náufragos à deriva em um oceano incapaz de lhes fornecer uma vida digna e suficiente. O campo de refugiados provavelmente se transformará em um gueto, de onde a pobreza será transmitida de geração em geração, como já acontece com descendentes de refugiados palestinos na Jordânia.

A guerra pode parecer distante, mas é causada e fomentada por seres humanos como nós, educados para a ganância e ensinados a ter amor pelo poder. O mundo é regido pelo princípio orwelliano de que guerra é paz, isto é, de que somente a guerra pode trazer a paz, em um paradoxo que torna os dois conceitos indistinguíveis. Enquanto a guerra civil síria continuar com tanta indefinição, com tantas forças buscando ocupar o vazio de poder deixado pelo conflito, a miséria irá seguir se perpetuando em segundo plano até que, um dia, toda essa corrosão da vida humana será irreversível.










sábado, 14 de julho de 2018

O Grande Deserto do Mundo

O quinto pilar do Islamismo, o da peregrinação, diz que todo fiel deve ir à Meca pelo menos uma vez em vida. A história das viagens começa por aí, em tempos tão longínquos quanto os anos 600: os muçulmanos viajavam não apenas por sobrevivência ou para se enriquecerem com o comércio em terras distantes, mas por pura espiritualidade. Os árabes são, de fato, um povo fadado ao movimento. Quem não se movimenta pensará que o mundo é todo um grande deserto. Ainda que se movimentem, precisam andar muito para deixar a imensidão de paisagens desérticas que se alongam pelo cordão tropical desde o Saara até as fronteiras finais da Ásia Central.

Por outro lado, é igualmente importante que nos movamos até o Oriente Médio. Caso contrário, poderemos pensar que essa região é caótica, que vive em estado permanente de guerra, que a população é grosseira, que pessoas se explodem. Será difícil pensar em árabes sem pensar em terrorismo e destruição, seremos contra sua imigração, defenderemos o fechamento de nossas fronteiras. Julgaremos ser impossível andar em segurança ou em paz nas ruas.

A diversidade do mundo é uma mão que bate e que afaga. Aceitá-la significa receber sabedoria, mudar as lentes com as quais enxergamos o mundo. Negá-la significa nos fecharmos entre os nossos iguais, atribuir aos outros qualidades que os tornam inferiores. Assim como um corpo quente troca calor com um corpo frio pelo simples fato de existir uma diferença de temperatura entre eles, a diversidade é o motor de minhas viagens; existindo diferenças, existe um motivo para me deslocar de um lugar ao outro. Anseio desenhar um mapa-múndi sem fronteiras, em que todas as diferenças serão compreendidas e toleradas.

Bem no meio do mundo sem fronteiras existe um grande deserto onde habita o povo árabe. Esse povo conseguiu preencher o vazio do mundo com vida e existência. É nesse deserto que mito, fé e grandes seres humanos se misturaram em uma única força que gerou nossa humanidade. Com efeito, é muita presunção dizer que, em um mundo tão diverso, nossa força geradora vem exclusivamente do Oriente Médio. Ainda assim, a contribuição daqui é muito densa: de um único mito criacionista, três grandes religiões expandiram suas respectivas fés para todas as esquinas do mundo e, assim, influenciaram desde nossa noção de moral à nossa interpretação para o sentido da vida. Entendemos como a religião é vital para aliviar a dura realidade do deserto. Afinal, por que outro motivo o Paraíso seria descrito como um imenso jardim, de clima ameno, sem mortes e com abundância de recursos?

Desertos não delimitam fronteiras, por isso é tão difícil compreender essa região, assim como é difícil compreender o que significa ser árabe. As bordas predominantemente retilíneas dos países e a imensa paisagem desértica que parece nunca ter fim escondem particularidades e contradições. De perto, é possível ver como é muito difícil definir grupos humanos como restritos a determinado território ou a um mesmo grupo étnico. Árabes podem compartilhar um ancestral próximo e comum com algum dos profetas dos textos sagrados, ou podem ser considerados todos os que falam o idioma árabe. Existe ainda uma grande sobreposição entre o mundo árabe e o mundo islâmico, religião que prevaleceu entre esse povo. Como um grão de areia que se move entre um e outro lado da fronteira, a mobilidade também esculpe a paisagem da região.


Eu fui à Jordânia e, a despeito de uma experiência traumática no Egito e de algumas ideias preconcebidas, juntas a um ano morando na Europa, consegui entender melhor esse povo. Passei a enxergar os árabes como todos aqueles fortes seres humanos de muita fé e cultura enraizada, habitantes do grande deserto do mundo, que defendem sua cultura e religião como ninguém, ao passo que lutam para serem compreendidos pelos outros povos. Um povo que sofre constantes ameaças externas e que busca estabelecer seu lugar no mundo. Um povo que se move para se afastar de adversidades naturais e políticas, mas que pena em resolver seus longos e estáticos conflitos internos. O povo árabe, por fim, é um grande desafio ao nosso prazer pela diversidade. Até que ponto podemos relativizar tanto fundamentalismo religioso e conservadorismo de modo a aceitar uma cultura que nos é essencialmente diferente?

Se, de fato, fundamentalismo religioso e regimes totalitários existem no mundo árabe, a Jordânia foi um contraexemplo que  prontamente me impressionou. Como um dos países do Levante, limitado a oeste por Palestina e Israel e a norte pela Síria, regiões de longo histórico de conflitos, a Jordânia consegue se manter bastante pacífica. A capital Amã é uma cidade de população educada, ruas organizadas e renda média e alta. A liberdade religiosa existe, há um considerável número de cristãos. Muitas mulheres andam sem cobrir os cabelos, e as que cobrem todo o rosto são extremamente raras - provavelmente, estrangeiras de alguma das outras muitas nações árabes. Quando o sol forte baixa, as ruas são preenchidas por clima de animação e relaxamento, ficam cheias e podemos nos sentir seguros a qualquer momento. A população é solícita, gostam de saber sobre nós, é fácil obter informações em inglês. Os temerosos vendedores de lembrancinhas com incríveis habilidades de negócio nos abordam, mas sem assédio, respeitando nosso espaço e nossas decisões.

A população é extremamente religiosa. A religiosidade cria um vínculo forte entre o homem e a terra, faz aflorar um anseio por fartura e uma necessidade de humildade. Essa humildade é intrínseca a um povo habituado viver em regiões desérticas, em que o plantio e a criação de animais é tão difícil que muitas vezes obriga ao povo a necessidade do nomadismo. A fartura existe pelas mesmas razões, provém da inventividade necessária a todos que, de maneira determinística, vivem em lugares inóspitos. A paisagem cor de terra, com pouco verde, contrasta com luxuosíssimos e coloridos artigos de decoração, tecidos, tapetes e mosaicos. Os momentos de refeição são quando fartura e humildade se encontram. Minha passagem pela Jordânia foi em período de Ramadã, em que os muçulmanos jejuam voluntariamente como uma renovação da fé e vivência profunda de irmandade e dos valores da vida familiar. Eles valorizam muito o estar junto, e o fazem em grandes banquetes, com abundância de comida. Enquanto houver luz do dia, eles se privam de comer. Quando o sol se põe, as famílias já estão reunidas para celebrar os valores mais simples da vida, ao passo que a comida é reposta tantas vezes quanto necessário pela madrugada adentro.

É um imenso aprendizado. Mesmo os momentos de lazer e de celebração expõem diferenças entre nós e eles. Em uma sociedade que não consome álcool, são motivos muito mais íntimos e profundos que fazem as pessoas se reunirem em volta de uma mesa. Em comum, contudo, entre nós, eles e todos os demais seres humanos, está o amor pelo Sol, que nasce para todos e em todos os lugares do mundo, fazendo flores desabrocharem, nos protegendo da escuridão. Em comum está o fato de querermos chegar a lugares onde o Sol nasce mais belo para nós. Assim como os árabes dos quais descendo foram para o Brasil por motivos de perseguição religiosa, muitos árabes saem em busca de melhor educação e melhores condições de vida e trabalho. Muitos deles conheci na Europa, hora em universidades de ponta, hora marginalizados nas ruas. Muitos deixam os desertos do mundo árabe, mas continuam vivendo no deserto do preconceito e da intolerância nos lugares para onde emigram. São pessoas como nós, buscando simplesmente seu lugar ao Sol. Cabe a nós recebê-los, compreendê-los e aceitá-los. No fundo o que diferencia a cultura árabe-islâmica da cristã-ocidental é a interpretação que fazemos das escrituras sagradas. O que de grande valor a Jordânia me ensinou é que, sem abdicar de nossa fé, é possível interpretar tais escrituras de maneiras mais inclusivas e tolerantes, sem que precisemos seguir uma cartilha de conduta em todas as pequenas tarefas de nossas vidas, sem que nenhum direito seja reprimido por causa de qualquer tipo de discriminação. Isso já acontece pelo menos em partes do mundo árabe.

Peguei a estrada e logo comecei a ver uma cultura tão diferente com ainda mais proximidade. De fato se anda muito sem deixar os desertos. Populações de beduínos, que para mim eram personagens folclóricos de um passado tribal, são mais presentes do que a cabeça de um brasileiro que quase não vê manifestações culturais dos gentios de sua terra pode pensar. São seres incríveis, praticantes do nomadismo, conhecedores dos segredos e mistérios do deserto. Vivem em grandes grupos, em tendas, sobrevivem em lugares inimagináveis, criando cabras, camelos e usando a terra até esgotá-la. Então se mudam, encontram novos pedaços de terra, vêm vida onde ninguém mais vê.

Amã
Tendas de beduínos






Ver vida nessa região não é tarefa fácil. O rio Jordão fertiliza o solo, mas vai ficando cada vez mais salgado à medida que corre para a jusante, até desaguar no Mar Morto, que recebe esse nome justamente pela falta de vida. A água é tão salgada que impede a presença de vida marinha: apenas seres mais primitivos como algas e bactérias vivem ali. A elevadíssima salinidade torna a água densa a ponto que se pode flutuar sem esforço algum. No entanto, o sal em atrito com a pele impõe um limite de tempo no qual é agradável boiar nas águas. Na porção sul do mar, mineradoras exploram o potássio dos sais para serem amplamente utilizados como fertilizante. O rio Jordão também traça parte da fronteira entre Jordânia e Israel. Em função dos conflitos árabes-israelenses e pela proximidade da Palestina, a fronteira é fortemente militarizada. Na estrada vemos diversos postos de observação israelenses, nos quais, segundo o nosso guia, os militares têm autorização para atirar em quem tentar atravessar.

Quem nunca for ao Oriente Médio talvez também nunca desassocie a cultura árabe da cultura muçulmana. Antes da islamização do mundo árabe, essa região foi de cultura helênica, o que nos faz sentir de certa maneira mais próximos a uma cultura que a distância nos é tão diferente. A herança arquitetônica está presente em Amã, nos anfiteatros encravados no meio da cidade, em templos para Zeus e em magníficos sítios arqueológicos como Jerash. Alexandre, O Grande cooptou ao Império Romano o incrível povo Nabateu, ancestral dos árabes. Esse povo elegeu como sua capital a preciosa Petra, uma ponte entre civilizações da Antiguidade. Uma grande cidade desperta de dentro das rochas. Como em um conto de aventura, em que se deve percorrer um perigoso caminho, cheio de armadilhas, para alcançar um tesouro, a entrada de Petra é marcada por um longo e estreito caminho espremido entre dois paredões. Essa rota, que recebe o nome de Siq, é uma extensa falha geológica em forma de fenda, servindo como porta de entrada para o tesouro de Petra. Tesouro aqui não é uma alegoria, mas o nome do mais imponente edifício do complexo: de tanta beleza, fazia sentido para os antigos beduínos que existisse um riquíssimo tesouro escondido no topo do templo. 

Então, de um estreito sendeiro que perfura uma enorme rocha, surge o Tesouro, uma grande cidade perdida e depois o Monastério. O fascínio de lugares como estes está no susto, na surpresa que causam aos nossos sentidos. O momento de chegada é um golpe que tomamos sem estar preparados. É a beleza que não pode ser descrita, mas que anseia por ser vista. O pasmo chega com um pico de prazer. É como se Petra tivesse selecionado os melhores dentre todos os homens para estar ali, naquele momento, diante dela, para poder contemplá-la. Ser selecionado por ela, porém, exige que precisemos sofrer tal susto, o susto de se comprovar com os sentidos a beleza de um lugar fabuloso. Como é possível uma cidade forjada de dentro das pedras, à base de marretadas? São verdadeiras esculturas em escala ampliada. Poucos lugares no mundo causam esse tipo de assombro.

Siq

Tesouro

Monastério

O calor do deserto queima a pele e drena rapidamente toda a água do corpo. Em um longo dia de caminhada em Petra se pode ter melhor ideia do quão forte é a população que vive nessa região. Em tempo de Ramadã, o guia que nos acompanhou por algumas horas, assim como tantos outros que vivem do turismo na cidade, espantosamente recusava-se a beber água. Mais ao final da luz do dia, quando o jejum já acumula muitas horas, é como se uma epidemia subitamente pairasse sobre a população, que passa a ter olhar distante, rosto pálido, expressão confusa. Entrávamos em lojas e víamos vendedores dormindo em tapetes, minimizando seu consumo de energia. Outros realmente deliravam de tanta fome. Comprei uma lembrancinha com um que mal conseguia erguer a cabeça. Ainda, muitas crianças, poupadas do jejum, tocavam, com muita habilidade, as vendas da família.

As vestimentas árabes são uma adaptação a esse tipo de vida. A túnica que cobre todo o corpo protege a pele do Sol, é folgada para arejar o corpo durante o dia e longa para proteger do frio da noite. O turbante que cobre a cabeça protege o rosto das tempestades de areia, o couro cabeludo da insolação e, se usado junto com um cajado, pode servir como pequena cabana de descanso. O traje tipicamente beduíno foi ressignificado pela cultura muçulmana, que estabeleceu algumas regras sobre seu uso: um fiel não deve expor partes íntimas de seu corpo. O conceito de parte íntima, contudo, é amplo, sobretudo para as mulheres, que, segundo a religião, devem cobrir o corpo inteiro, exceto as mãos e o rosto.

Desse modo, a paisagem molda o homem ao instigar nele a necessidade de sobrevivência, enquanto o homem, ser do mundo, atribui significados à natureza e, portanto, à sua própria existência. Diante de tanto deserto, tanta aridez e de ambientes de sobrevivência tão difícil, passamos a entender porque os árabes são tão afeitos à religião e porque muitas vezes é tão difícil para eles compreender a diversidade do mundo. Assim como os muçulmanos embarcam em perigosas jornadas à Meca para renovar sua fé, viajar ao Oriente Médio é um momento de renovação de tudo o que compreendemos sobre o povo árabe e a fé muçulmana. Preconceitos são destruídos ao vermos o princípio vital do povo árabe, ao vê-los vivendo no lugar onde foram gerados. A fronteira cultural existe: é difícil para um ocidental compreender a cultura árabe, assim como é difícil para um árabe, de cultura tão arraigada, se abrir para o que lhe é diferente. Verdade é que conviver com as diferenças nos faz atingir níveis mais altos de sabedoria. Para tal, precisamos nos mover em todas as direções. 




sábado, 26 de maio de 2018

Liverpool e o direito ao mito

Existem caminhos que já nascem lendários. É o caso da estrada de ferro entre Manchester e Liverpool, a mais antiga do mundo a fazer o trajeto entre duas cidades. Os bens de consumo das indústrias de Manchester iam para o porto de Liverpool, que, por sua vez, recebia matérias primas e as enviava para as indústrias de Manchester. Uma revolução tecnológica tornava as distâncias mais curtas e as comunicações mais rápidas. As transformações que aconteceram sobre o trajeto desses trilhos foram tão profundas que criaram um ponto de separação na linha do tempo da humanidade, marcando o início da era industrial, do capitalismo moderno, do incremento de riqueza, das concentrações urbanas. Isto é, foi aqui que o mundo, para nós, ocidentais, começou a ficar parecido com o que vemos hoje.

A viagem que começou lendária entre as estações de Manchester Victoria e Liverpool Lime Street permaneceu lendária durante toda a minha estadia em Liverpool. Como principal porto da principal potência imperialista global, Liverpool se tornou um ponto de confluência de tudo o que existia no mundo. Seu papel crucial no comércio transatlântico permitia a chegada de produtos, mercadorias e pessoas, mas também fez a cidade se tornar alvo de fortes bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, a humanidade é uma força muito poderosa: mesmo em cenários terríveis - como o de uma destruição pós guerra - ela é capaz de se recriar e ressurgir do nada, ainda mais em lugares de inovação e criatividade, como Liverpool.

Os anos de guerra não foram nada prósperos. As perdas populacionais criaram uma lacuna entre a infância e a velhice. Instintivamente, para reverter um quadro humano desfavorável, a sociedade passou a ter mais filhos. As gerações que nasceram durante e após a Segunda Guerra Mundial eram parte, de fato, de uma explosão demográfica. Eram os baby boomers, filhos da grande guerra, que ansiavam por uma nova cultura jovem e que iriam romper com diversos valores políticos, religiosos, culturais e comportamentais das gerações anteriores.



Um novo ambiente revolucionário surgia no mundo, e Liverpool seria um dos polos de disseminação de novas ideias e valores. O lugar que mostrou ao mundo as diversas inovações técnicas da era das revoluções industriais e que inaugurou uma nova forma de se organizar a sociedade, agora faria o rock n' roll chegar a todos os cantos do planeta. A facilidade com que a cultura dos Estados Unidos, que emergia como maior potência global, chegava a Liverpool em razão de uma grande proximidade cultural e de laços de troca, fez nascer nos jovens britânicos um imenso interesse por esse novo gênero musical, rebelde por definição.

O rock, com suas origens na música negra americana - do Jazz, Blues e Boogie Woogie - já nasceu quebrando uma barreira racial que era explícita nos Estados Unidos. No passado, o comércio de escravos enriqueceu muitos mercadores de Liverpool. Estima-se que 1,5 milhão de escravos africanos saíram daqui para a América. Quando os britânicos perceberam que a produção industrial era um melhor negócio e que demandava a existência de um amplo mercado consumidor, além de oferecer bem menos riscos que o comercio de escravos, passaram a fazer uma campanha pela abolição da escravidão. Assim como no cenário europeu pós-guerra, a humanidade também aflorou em um povo que sofreu os mais cruéis tipos de repressão: a cultura negra que ressurgiu na América pelos que foram forçadamente deslocados da África voltava para a Europa sob a alcunha do rock n' roll.

Despontou em Liverpool um incrível cenário musical. Dentre todos os grupos jovens que faziam seu próprio som, a princípio com instrumentos tão arcaicos quanto uma tábua de passar roupa, surgiria um que daria um novo significado ao modo de se fazer música: os Beatles. Como profetas de mente completamente inventiva, eles lançariam o embrião de quase todos os movimentos jovens que iriam surgir desde então e, em efeito cadeia, influenciariam a cultura pop até os dias atuais. Os homens passaram a deixar os cabelos crescer, as mulheres a usar minissaias. Os Beatles foram os primeiros a usar a dissonância no rock, incorporar efeitos sonoros, usar a microfonia. Foram os primeiros a mesclar música erudita e popular, a usar gravações reversas, o double tracking, variações de velocidade e compasso em uma mesma música. Trouxeram instrumentos inusitados como a sitar indiana e instrumentos de processamento eletrônico como o mellotrom. Foram um dos responsáveis pela popularização da cultural oriental no ocidente. Transformaram capas de discos em obras de arte. Lançaram os preceitos para novos subgêneros do rock como o psicodélico, progressivo, punk e heavy metal.

A obra tão extensa e de tanta qualidade, produzida no curto intervalo de tempo de apenas uma década, permite que os Beatles se coloquem no nível das lendas. Todos nós temos direito ao mito, o direito de atribuir um significado maior à nossa existência. Se não podemos viver para sempre, podemos deixar algo que irá, algo que transcenda a nossa breve passagem pela Terra. As lendas estão acima da condição humana, elas ficam para que exista um sentido completo entre as venturas do passado e do presente; para nos lembrar, eventualmente, de que somos capazes de realizar grandes feitos em vida. A mística dos homens que viram lendas reside justamente no ponto em que, uma vez lenda, jamais o deixarão de ser. Não há arma de fogo que assassine lendas. Não há câncer que tire a vida de lendas. Elas vivem na identificação de cada um de nós.

Os Beatles deixaram uma vasta, universal e de fácil compreensão mensagem de paz e amor. Por isso estar em Liverpool é uma experiência religiosa. Lá podemos ver o quão humana, ou seja, o quão parecida conosco uma lenda pode ser. Visitamos locais de nascimento, locais de encontros que mudaram o mundo, cenários que viraram música e poesia. É lá que um grupo de rapazes, por meio de seus discos, fez o mundo mais diverso, inclusivo e tolerante. O meu momento mais lendário dessa viagem aconteceu na casa do Paul, onde pude tocar Let It Be no piano da sala onde morou a família McCartney. A música é à memória de Mother Mary, mãe de Paul, vítima de câncer de mama.

Se, por fim, os mitos servem como espelhos para nós, é bom também lembrar que por trás das pessoas adoradas também existe muita dor, angústia e contradições da condição humana. Dos quatro rapazes, um foi abandonado pelos dois pais e teve uma infância solitária. Dois viram seus pais se separarem na infância. Dois perderam a mãe na adolescência. Um teve tanta doença durante a infância que em diversas ocasiões não pôde sequer frequentar a escola. Um ouviu de professores que jamais seria alguém na vida. Todos os quatro eram filhos da classe trabalhadora e viviam nos subúrbios de Liverpool.



sexta-feira, 4 de maio de 2018

As Regras do Jogo

Nas veias da América Latina correm inúmeras contradições. As riquezas geraram anões e gigantes. O homem, tido como cordial, é produto de migrações forçadas, genocídios, crimes étnicos. A violência é naturalizada e se manifesta nas entrelinhas das relações humanas. Che disse que, se este continente fosse um homem, seria um anão de cabeça grande, pança inchada e braços curtos. 

Certa vez decidi refazer de carro o percurso da antiga rede de estradas indígenas chamada de Peabiru. O Peabiru não era um simples sendeiro no meio da mata, mas uma rede de estradas bem demarcadas que percorria 1200 quilômetros. A trilha seguia pelas nascentes do Rio Iguaçu até seu desague no Rio Paraná. Atravessado o Paraná, o Peabiru conduzia até o Rio Paraguai, onde hoje se localiza Assunção. Eram caminhos largos, que passavam por campos planos repletos de araucárias. De Assunção, por meio da navegação do Rio Pilcomayo, era possível chegar a Potosi, onde existia a lendária serra de prata, motivo de cobiça dos colonizadores europeus. Era lá onde eu queria chegar.

O Peabiru é um grande exemplar do que havia na América antes da conquista. Uma extensa rede de comunicação entre diferentes povos permitia que um tupi do litoral brasileiro tivesse conhecimento sobre os picos de gelo eterno da cordilheira dos Andes, assim como sobre a magnífica civilização que ali habitava.

Depois de alcançar Foz do Iguaçu, descobri no Paraguai um país de poucos e pobres. Lá fiquei encurralado, impedido de seguir meu caminho até Potosi. O Paraguai hoje é um dos mais sofridos e maltratados países do continente, mas no passado desenvolveu uma política autárquica e protecionista de desenvolvimento, completamente diferente de seus vizinhos. Espremido entre os dois gigantes locais, Brasil e Argentina, sem saída para o mar, o país não fez completamente parte do modelo agrário-exportador que permeou a típica relação entre as colônias americanas e as metrópoles europeias. Diversificou os gêneros agrícolas, buscou a autossuficiência investindo em educação e industrialização; cronistas da época diziam que não existia no país uma criança que não soubesse ler e escrever. O projeto desenvolvimentista do Paraguai, contudo, dependia da ampliação do comércio externo, ao passo que o trânsito de mercadorias do país estava sujeito às arbitrariedades de Brasil e Argentina.

Fez-se a Guerra do Paraguai e, com ela, toda uma nação se foi. Patrocinados pela Inglaterra, a Tríplice Aliança composta por Argentina, Brasil e Uruguai deu cabo das pretensões paraguaias. Grande parte da população adulta masculina sucumbiu no conflito. A guerra chegou ao absurdo ponto em que crianças paraguaias, alistadas para a guerra, usavam barbas postiças em uma tentativa de intimidar as tropas inimigas. 

O passado sangrento tem consequências, ainda, no presente. Assim, uma série de desventuras marcou minha passagem pelo Paraguai, desde a entrada via Ponte da Amizade até a chegada em Assunção. Como resultado de uma profunda estagnação econômica desde a guerra, o país embarcou no submundo do contrabando, pirataria e corrupção. A corrupção no Paraguai não é exclusiva dos detentores de grande poder. Logo eu descobriria isso da pior forma. Uma placa escrita em espanhol e guarani me dava as boas vindas após uma lenta travessia pela Ponte da Amizade, onde mercadorias contrabandeadas circulavam sem nenhuma fiscalização. Segui caminho até Assunção. Logo nos primeiros 30 quilômetros de estrada, um policial nos para. Olha bem para o interior do carro, pergunta se temos alguma câmera ligada. Então cobra uma multa por estarmos trafegando com lanterna acessa, em vez de farol baixo.

Não demorou muito até que fôssemos parados novamente. Dessa vez o policial alegou ter recebido uma informação de que trafegávamos acima do limite de velocidade e nos cobrou nova multa. Não aceitamos facilmente essa cobrança. Argumentávamos que não excedemos o limitey e que, inclusive, diversos carros nos ultrapassavam. O policial um pouco mais tenso, em tom de ameaça, aconselhava-nos resolver a questão ali logo antes que ele precisasse chamar seu superior.

Como discutir com alguém que deixa a mão encostada em um revolver preso na cintura enquanto nos fita com olhar ameaçador? E se, ainda, este homem tem a prerrogativa legal do uso da força? E se, para piorar, você é um estrangeiro, no interior de um país miserável, sem ter a quem recorrer? Assim foi minha recepção no Paraguai.

Ainda assim, quanto mais percorremos a América Latina, mais somos invadidos pela sensação de se estar em casa. Passamos a ver no rosto dos outros, o nosso. Depois de duas abordagens policiais e alguns guaranis - moeda local - a menos no bolso, ainda fomos parados uma terceira vez. Agora, sabendo melhor as regras do jogo, pudemos seguir viagem sem prejuízos até Assunção.

A língua também cumpre um papel importante para nos fazer sentir em casa. Se existe um lugar no mundo onde o Portunhol é, de fato, uma língua corrente, esse lugar é o Paraguai, onde as fronteiras entre as Américas portuguesa e espanhola durante muitos anos não eram claras. Um aspecto peculiar da proximidade linguística está na palavra propina. Quando os policiais nos pediam propina, usavam a palavra com o significado espanhol, que significa algo como gorjeta. Nós, brasileiros, a entendemos como suborno. Mesmo intercambiando o significado de um falso cognato, a comunicação segue com duas possíveis e corretas interpretações de uma única palavra.

Se me perguntarem se o dinheiro que dei aos policiais era gorjeta ou suborno, eu fico com o primeiro significado. Nosso bolso, claro, é um órgão sensível, não gostamos de perder dinheiro injustamente. No entanto, nunca saberemos se o policial que leva um dinheiro a mais para casa no final de um dia de trabalho está com estômago cheio, ou se seus pequenos filhos terão fraldas para usar até o fim do mês.

Nessa imensa e infama contradição que é a América Latina, a injustiça social está escancarada na face de todos, dos que têm e dos que não têm. Todos têm seu papel e sua parcela de culpa nas diversas manifestações de corrupção em pequena escala que se dá nos mais variados tipos de relação humana. É muito fácil de ver o momento em que uma suposta malandragem, ou mesmo maldade, mau caratismo ou má fé dos policiais se transforma em desespero. No regresso para o Brasil, fomos abordados, pela quarta vez, por um policial na estrada. Ele pediu para revistar o carro e, sem motivos explícitos para nos multar, passou a pedir artigos do nosso porta-malas como regalos para sua filha.


O que me fez regressar ao Brasil, porém, foi uma última desventura no Paraguai, que me impediu de seguir viagem até Potosi. Iria cruzar bem cedo a fronteira entre Paraguai e Argentina via Rio Paraguai. Enquanto esperava a primeira balsa do dia, abri um mapa da América do Sul para estudar as rotas até Salta. Um grupo de estivadores me viu com o mapa e, cheios de curiosidade, se aglomeraram em volta de mim de um modo que até me assustou; parecia uma emboscada. Eles me olharam com um estranhamento que eu jamais havia experimentado em minha vida. Perguntei se eles sabiam me dizer o melhor caminho até Salta. Um deles tentou olhar o mapa, mas, sem saber nenhuma resposta, disse que ali eram todos burros, com essa exata terminologia.

Todos tomavam o tererê, mate de ervas amplamente consumido no Paraguai. É semelhante ao chimarrão gaúcho, porém é bebido frio. Os paraguaios levam seus garrafões para todos os lugares, e muitos são decorados com escudos de times de futebol. Foi o ponto que encontramos para estabelecer uma conversa. Enquanto eu experimentava sua bebida típica nacional, falamos bastante sobre futebol, o lubrificante social, amado em toda a América Latina por todas as classes sociais.

Ao cruzar o Rio Paraguai em uma balsa em direção à Clorinda, já na Argentina, fomos barrados na fronteira. O carro não poderia entrar na Argentina sem o seguro Carta Verde, necessário para o trânsito nos países do Mercosul. Como eu cheguei até ali, pelo Paraguai, sem esse seguro, à mercê de um monte de policiais corruptos, jamais saberei. Fato era que esse seguro só podia ser obtido no Brasil. Atravessamos a fronteira algumas vezes: tentamos obtê-lo em uma seguradora em território argentino, na aduana paraguaia e pela internet, mas nada. Os estivadores ofereceram ajuda como podiam: um deles nos transladou tantas vezes quanto necessário entre as margens do Rio Paraguai em sua balsa, de nome Che Jasmin I, a troco de poucos guaranis. Outro nos acompanhou até encontrarmos algum ponto de acesso à internet, o que não foi tarefa fácil entre todos aqueles aparelhos celulares atrasados em mais de uma década. Fomos forçados a fazer o caminho de volta de Assunção até Foz do Iguaçu, precisando passar novamente pela série de postos policiais. Deixei uma lágrima de decepção no Rio Paraguai e seguimos viagem.

De volta ao Brasil, não havia mais fôlego para chegar a Potosi. Entre araucárias que abraçam o mundo e ruínas das missões jesuítas, talvez a menos trágica experiência colonizadora na América, encontrei conforto antes de voltar para casa. Antes de deixar o Paraguai, porém, ainda tive tempo de visitar restos da frota de navios usados pelo país na guerra contra a Tríplice Aliança. Diante disso tudo me ocorreu que, possivelmente, nem os policiais, tampouco os burros do porto, tivessem conhecimento sobre a guerra que destruiu tudo aquilo, sobre a tragédia que arruinou seu país.