domingo, 27 de dezembro de 2020

A Rota da Luz em uma bicicleta

"O barco está mais seguro quando está no porto; mas não foi para isto que foram construídos os barcos"
Paulo Coelho 

Uma forte tempestade na véspera me fazia colocar em dúvida se a viagem de bicicleta, que eu há tanto tempo planejara, tornar-se-ia realidade na manhã seguinte. A pergunta "e se a quantidade de lama tornar o caminho intransitável para minha bicicleta?" se juntava a muitas outras que eu há meses me fazia. Como reparar minha bicicleta caso ela quebrasse? Quais ferramentas levar? Quais equipamentos? Deveria levar um par de pedais a mais? Teria eu condições físicas para percorrer a Rota da Luz?

A Rota da Luz é um caminho alternativo que liga a Grande São Paulo ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte, evitando os perigos da Rodovia Presidente Dutra. Em seus mais de 200 km de extensão, desde Mogi das Cruzes até Aparecida, o caminho cruza um total de nove cidades, incluindo ainda Guararema, Santa Branca, Paraibuna, Redenção da Serra, Taubaté, Pindamonhangaba e Roseira. Tratando-se de um caminho entre a região mais populosa do Brasil e o maior templo católico do mundo fora do Vaticano, esta é uma das mais emblemáticas rotas de peregrinação do Brasil, e motivo de minha nova aventura.

Há algo entre os peregrinos que sempre me encantou. Eles compartilham um tipo de amor movido por fé que só eles parecem sentir. Eles perseguem a felicidade grandiosa, excitante, distante, longe da vida ordinária. Sem praticar nenhuma religião, queria ter meu coração tocado por aquilo que tocou o coração de Bach quando ele compôs a Paixão Segundo São Mateus, ou aquilo que tocou o coração de Michelangelo quando ele pintou os tetos da Capela Sistina. O que toca o coração de um pagador de promessas, que atribui a realização de seus desejos mais profundos a uma divindade e, como forma de agradecimento, parte, muitas vezes sem preparo ou recursos, para uma exaustiva romaria? Estava disposto a eu mesmo me tornar um peregrino.

Em uma rota de peregrinação, e na própria vida, a sabedoria só tem valor se puder ajudar o homem a vencer algum obstáculo. Eu me preparava para a viagem, estudando o roteiro, mecânica e reparos básicos de bicicleta, comprava roupas adequadas, alforje, ferramentas, lia relatos. Imaginava todas as situações que podiam dar errado e buscava me preparar para elas. Sabia bem as distâncias entre cidades (qualquer problema, todos os caminhos levam a São Paulo). Contra o que não havia muita prevenção, deixaria por conta da incansável fé. Haveria de encontrar pessoas no caminho, não estaria sozinho, haveria de ter medida para tudo.

Dom Quixote pensou por quatro dias em que nome daria ao seu cavalo Rocinante, tamanha a importância de um cavalo para um cavaleiro. Meu veículo estava escolhido, mas, diferentemente do Rocinante, nunca fora batizado. A jornada seria em uma bicicleta Caloi 400 de 21 velocidades e quadro de alumínio. Pendurei uma bolsa no guidão, no bagageiro, um alforje. Embaixo do selim, coloquei  uma bolsa para ferramentas. Incluí um suporte para garrafas e luzes traseiras e dianteiras. Revesti a parte interna dos pneus com fita anti furo. Levei a bicicleta para revisão. Incluí na bagagem duas câmaras de ar reserva, chaves allen, chaves fixas, alicate, chaves de fenda, remendo, uma bomba de ar de mão e uma chave extratora de corrente. 

O percurso seria feito em três dias. No primeiro, pedalaria de Mogi das Cruzes até Paraibuna, totalizando 90 km. No segundo dia, de Paraibuna a Taubaté, 65 km. No último, restariam 50 km até Aparecida, para depois retornar para São Paulo de ônibus. A saída seria em um sábado dia 10 de outubro, e a chegada segunda-feira dia 12, a tempo de acompanhar os festejos do dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Seria também a minha primeira cicloviagem. Antes, eu já havia participado do Pedal Anchieta, a descida da rodovia Anchieta/Imigrantes entre São Paulo e Santos. Dessa vez, contudo, o desafio era um tanto maior. Não me preparei muito fisicamente. Nos dois fins de semana antes da partida, fiz duas longas pedaladas pela acidentada São Paulo, e senti que aguentaria chegar a Aparecida. Estava disposto a explorar e descobrir meus limites pedalando. 

A tempestade não dava sinais de que iria diminuir. Fui a uma farmácia, fiz as últimas compras da viagem. Fechei as malas, aprontei a bicicleta. Levei o mínimo possível: uma camiseta para cada dia, uma capa de chuva, bermuda de ciclismo, um pequeno kit de primeiros socorros. Celular estava carregado, bateria reserva também, os mapas baixados. Águas na geladeira, aguardando a hora de partir, comidinhas para a trilha guardadas. A viagem precisava acontecer, não contava com a possibilidade de adiamento. Entre trabalho e estudos, cada vez encontro menos tempo para fugas que, no fim, são o que me motivam a seguir realizando todas as minhas outras atividades. Estava decidido a acordar de madrugada e ir até a estação Estudantes, em Mogi das Cruzes, ponto de partida da Rota da Luz. Lá eu decidiria se conseguiria prosseguir ou não. 

Estação da Luz, São Paulo

Acordei 5h da manhã. Para minha felicidade, a chuva cessara. Às 6h já estava na bela estação da Luz, em São Paulo, embarcando no trem para Mogi das Cruzes. Os vagões vazios permitiram acomodar confortavelmente a bicicleta. Quando cheguei em Mogi despertei a curiosidade de dois seguranças da estação, que me perguntavam sobre o caminho. Ofereceram um mapa da rota e indicaram onde havia o primeiro QR code da Rota da Luz - há vários no caminho, que podem ser escaneados com uma câmera de celular, e servem como atestado de conclusão da rota; um certificado pode ser retirado em Aparecida. Tomei um café da manhã reforçado por ali e comecei propriamente a trilha. Dali até o fim, não mais seria ameaçado pela chuva. Ela não apareceu mais.

A viagem começa como um agradável passeio. Saindo de Mogi, anda-se um bom trecho em asfalto, acompanhando uma antiga linha de trem, até a estação Sabaúna. De lá, predomina-se estrada de terra até a estação Luis Carlos, uma linda vila ferroviária revitalizada. O caminho mostrou-se muito bem sinalizado, e dispensei logo o uso de GPS. Timidamente, cruzava com alguns ciclistas no caminho e muito poucos caminhantes. Eu habituava meu corpo à jornada que me propus completar. A cada pedalada, observava o que acontecia com o meu corpo, como os músculos da minha coxa se contraíam e descontraíam, como minha respiração seguia o ritmo do pedal, como o suor escorria desde a minha testa e pingava sobre minhas pernas. Esse trecho é predominantemente descendente, entretanto, passando a estação Luis Carlos, havia a primeira longa subida, até o núcleo urbano de Guararema, que não consegui completar pedalando. Desci da bicicleta e terminei a ladeira puxando-a com as mãos, procedimento que se tornou essencial em muitas das subidas no trajeto.


Vila Ferroviária Luis Carlos, Guararema

A retidão é um ideal. Na natureza ela é improvável. O caminho o tempo todo se alterna entre descidas e subidas, em um equilíbrio perfeito. A descida é a recompensa da subida. A subida, a restauração da descida. A existência de uma justifica a outra. Sem a ladeira, não há conquista. Aguardar a próxima descida me fazia suportar as subidas. 

A motivação para seguir e completar o percurso não vinha apenas de meu interior. Habitantes das regiões por onde a rota passa criavam postos de acolhimento para os peregrinos, oferecendo água, café ou algum doce. Havia quem espontaneamente percorresse a rota com carro, oferecendo água e banana. Nunca vi tanta solidariedade entre os caminhantes, ou entre os caminhantes e a população local. Invariavelmente, um torcia pelo outro. Se eu passava por esses apoiadores sem reabastecer minha água ou pegar alguma comida, em todas as ocasiões tinha minha alma energizada com tantos incentivos e desejos para que eu completasse a rota em segurança. 

Não demorou até que eu pedalasse pelas margens do Rio Paraíba do Sul, o mais importante da história religiosa brasileira. Em 1717, durante uma pesca milagrosa em suas águas barrentas, apareceu a imagem de uma santa negra. Naquele ano, o Conde de Assumar havia sido nomeado governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro durante os prósperos anos da corrida do ouro. Chegou de Portugal e logo formou uma comitiva para uma longa jornada entre Santos e Vila Rica, atual Ouro Preto. Na sua passagem por Guaratinguetá, um banquete em sua homenagem foi organizado e diversos pescadores foram incumbidos de pescar a maior quantidade de peixes possível. Três deles - João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso -, ao lançar suas redes, pescaram a imagem enegrecida de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal, depois rebatizada como Nossa Senhora Aparecida. Existem indícios de que os pescadores eram homens escravizados. Além do fato de, nessa época, a atividade de pesca ser realizada por escravos, três homens de nome João, Domingos e Felipe aparecem no testamento de um rico fazendeiro da região. A santa negra logo se ligaria à história da escravidão a partir do milagre envolvendo o escravo Zacarias: preso e acorrentado por seu feitor, pediu para rezar diante da imagem da santa de Aparecida. Autorizado, ao se ajoelhar, suas correntes desapareceram milagrosamente. Hoje, Nossa Senhora Aparecida é a padroeira do Brasil, país no mundo com maior população negra fora da África.       

O almoço do primeiro dia foi em Santa Branca, um lindo exemplar de uma cidadezinha interiorana, com uma igreja bem alta e uma pracinha com coreto. De Santa Branca a Paraibuna foram mais 36 km. Cheguei a Paraibuna já anoitecendo, após pedalar um total de 90 km, com altimetria acumulada de 1730 m. Nas ruas estreitas da cidade, enquanto procurava o hotel que eu já havia reservado, recebi novos incentivos e desejos de 'Deus abençoe'. Durante o trajeto, fiquei com a sensação de não ter encontrado muitos peregrinos, mas fui contrariado chegando a Paraibuna, para onde muitos convergem. Eu reparava em seus trajes e no que levavam. Fiquei especialmente fascinado com um solitário senhor de sandálias, mancando, portando apenas um cajado e uma pequena mochila. Quis saber qual a história por trás de um homem que faz o caminho daquele jeito.

Santa Branca

Curso do Rio Paraíba do Sul

Amanhecer em Paraibuna

Acordei bem cedo para o segundo dia. Não me sentia muito dolorido. Eu tinha massageado bastante minhas pernas antes de dormir. O que mais me doía era montar e desmontar da bicicleta. O melhor a se fazer era sentar, pedalar e continuar pedalando. No entanto, o trecho entre Paraibuna e Taubaté era o mais desafiador da viagem; muitas vezes precisei descer e carregar a bicicleta com as mãos. Nessas ocasiões, em vez de sentir dor nas pernas, sentia na lombar, por andar curvado, carregando o peso da bicicleta com a bagagem. Paraibuna está a 635 m acima do nível do mar, e Taubaté, a 580 m. Entre as duas cidades, já em Redenção da Serra, existe, todavia, um morro popularmente conhecido como "Morro do Batman", devido ao seu perfil altimétrico: é uma elevação sobressaliente, cujo cume (960 m) é composto por dois picos locais, como duas letras "V" invertidas lado a lado. A altimetria acumulada do dia seria de 2010 m.

De Paraibuna a Redenção da Serra o trajeto é uma subida progressiva, de ladeiras que parecem sem fim. Para conseguir completar o trecho em um dia sob a luz do sol, inevitavelmente chega-se ao Morro do Batman por volta das 12h, no sol mais forte do dia. O núcleo urbano de Redenção da Serra fica a um desvio da Rota da Luz, e decidi passar direto, já que, embora minha alma conservava-se pronta para a batalha seguinte, até ansiando por ela, meu corpo, após mais de 120 km, começava a fraquejar. Uns peregrinos no caminho haviam comentado sobre um restaurante no topo do morro, e decidi que almoçaria lá. Eu ansiava por completar o Morro do Batman como um faminto anseia por comida.

Comecei a subida, com serenidade, reconhecendo os limites de meu corpo e de minha bicicleta. Pedalava um pouco, caminhava um pouco, parava quando sentia fadiga. Comia uma barrinha de cereal, bebia água, ainda estava gelada. Peguei o meu celular e ia acompanhando o quanto faltava para concluir a subida. A ideia de saber que aquilo teria fim me ajudava a prosseguir. Meu corpo ia ficando cada vez mais cansado, a carga do primeiro dia chegara com atraso. Para expor diferentes partes do meu corpo à dor, eu também passei a variar o modo como eu carregava a bicicleta com a mão. Ora a punha do meu lado esquerda, ora do direito, ora em minha frente, empurrando-a pelo selim com as duas mãos. Importante para mim era não parar. 

Segui e passei pela primeira grande ladeira, um descampado de terra, de baixo do sol e sem sombras para me proteger. Em seguida havia outra imensa e íngreme subida pavimentada, dessa vez com mais sombras. Puxei um ar e fui. Já tinha subido uma boa parte do morro. Segundo o GPS, o fim parecia breve, ao passo que eu bebia água com frequência cada vez maior. Ainda havia subida no entanto. Por menor que fossem, eram, àquela altura, muito desgastantes. Em um determinado momento, quando buscava forças para seguir subindo, um senhor, na porteira de sua casa, na beirada da estrada, aguardava a passagem de peregrinos com um galão de água. Das minhas três garrafas, me restava um terço de uma. Aceitei a água do gentil senhor, que desceu com frescor e acolhimento emocionantes. A sede era tamanha, igual foi o prazer em satisfazê-la. O senhor disse que o fim da subida estava próximo, e logo seria apenas descida até Taubaté. Concluí a subida.

No topo do morro, realizei um verdadeiro banquete no restaurante da Dona Cida, famosa entre os que percorrem a Rota da Luz. Era um pequeno vilarejo, distante, perdido no topo da serra, pertencente ao município de Redenção. A simpática senhora servia feijoada à vontade. Sem cerimônia, convidava os recém chegados para montar o prato diretamente em seu fogão. Ali tive uma longa pausa para almoço, essencial para recuperar as energias da subida. Entre muita conversa, ela alertava para os perigos da descida do morro do Batman com tanta veemência, que passei a temer a descida que eu tanto aguardara. Ela repetia, como um mantra, "bicicleta não é fusca", "não pense que você está de fusca". Perguntava se eu havia encontrado peregrinos na subida, querendo saber se mantinha a comida aquecida. 

Dona Cida estava preocupada com a minha saída e começou a me apressar para que eu não chegasse de noite a Taubaté. Explicou que, antes da descida, havia ainda dois trechos de subida. A descida começava após uma curva, em um ponto culminante, com uma cruz de madeira. Naquele ponto, a analogia com o calvário de Cristo era  inevitável. A subida foi difícil, agora eu estava excitado com a descida. A matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Deixei-me ser levado pela gravidade morro abaixo, o vento tocando o rosto, as mãos firmes no freio. Antes de o sol se pôr, cheguei a Taubaté.

Peregrinos a caminho do Morro do Batman

Vilarejo em Redenção da Serra

Vista da represa do Rio Paraitinga

Início da subida do Morro do Batman

Chegada a Taubaté

O último dia, passada a tormenta, estava guardado para ser o mais tranquilo. Saí de Taubaté e segui por uma estrada rural até atravessar a Dutra. Ali, via um fluxo alto de peregrinos trafegando pelo acostamento da rodovia, e novamente alguns pontos de apoio. Sem entrar na rodovia, o caminho até Aparecida foi inteiramente no asfalto, relativamente plano. Pedalar novamente no asfalto, depois de tanta terra, trouxe um andamento melhor para a viagem. O corpo, é verdade, estava dolorido, mas ia bem. O problema agora era lidar com a inquietação da alma, que ansiava pela chegada, mas sabia que ainda havia 50 km a serem percorridos no dia. 

Como já estava em uma estrada secundária, placas de trânsito hora ou outra informavam o quanto faltava para chegar a Aparecida. Ia acompanhando, vislumbrando o momento da chegada. Quanto mais perto chegava, maior quantidade de peregrinos eu encontrava. Alguns paravam uma van na estrada e seguiam a pé, para ter a sensação de caminhar até a basílica. Cheguei à placa que marcava o limite entre Roseira e Aparecida. Sabia que estava perto, mas custava a chegar. Entrei na cidade, mas ainda não parecia perto da basílica. Estava diante de uma ladeira. Segui por ela com a minha bicicleta. Em um ponto suficientemente alto, avistei pela primeira vez o Santuário. Senti-me interiormente satisfeito por chegar àquele raro ideal das existências pálidas que move os peregrinos. Eu havia me tornado um, vivido como um.

Em Aparecida, senti uma vertigem por ver tanta gente depois de dias contemplativos pedalando em estradas desertas. Estava tonto e exausto. Pedindo informações, consegui chegar ao centro de apoio aos peregrinos. Fui muito bem recebido. Ofereceram água, disseram-me onde eu poderia tomar um banho. Recebi, finalmente, meu certificado de conclusão da Rota da Luz, talvez o certificado simbolicamente mais importante que eu já tenha recebido. No fim da tarde, embarquei em um ônibus de volta para São Paulo, refazendo em cerca de 3h, o caminho que eu levei três dias para percorrer em uma bicicleta.

Encontrei, nessa vida de peregrino, muita solidariedade e gratidão em meu caminho. O extraordinário está na história, fé e ambições espirituais de pessoas comuns, os peregrinos, não em rituais mágicos e misteriosos. Quem vai a Aparecida vai pela simplicidade de um agradecimento, por isso deixo aqui os meus: agradeço por ter saúde, a base de tudo, que me permitiu pedalar mais de 200 km em três dias, e completar a Rota da Luz em segurança; agradeço todas as pessoas que participaram de meu caminho, na andança, torcendo por mim, nos hotéis e restaurantes, oferecendo ajuda e fornecendo informações valiosas; agradeço todos os peregrinos desconhecidos que fizeram a rota antes de mim. Vocês descobriram e ajudaram a construir esse precioso caminho; por fim, agradeço a sorte de ter tempo, recursos e conhecimento à disposição para planejar e poder concretizar essa viagem. 


Chegada a Aparecida do Norte e fim da Rota da Luz

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Uma noite no Copan

O Copan é um edifício que, de tão grande, tem um CEP próprio e população maior do que 457 municípios brasileiros. É um perfeito arquétipo para São Paulo, uma teia muito complexa para se entender, mas tentamos: no meio do centro velho - em plena Avenida Ipiranga -, onde residem os elementos que a sociedade tenta esconder, se faz beleza nas duras esquinas de concreto. Quando encarada frente a frente, São Paulo encanta, surpreende, com um improvável prédio em formato de ‘S’ em meio a uma malha urbana cartesiana e cinzenta. Como pode uma multidão caber dentro de um único prédio? Aqui as coisas simplesmente cabem.

Do alto do Copan, enquanto observava a magnitude do que é São Paulo, vi que muitas paixões cabem dentro de um único quartinho. Passei uma noite no 23º andar do Bloco B e me veio a resposta do porquê de eu ter escolhido São Paulo como meu novo lar. Aqui viajamos sem sair dos limites da cidade. Não me sinto estrangeiro, mesmo não sendo paulistano. Talvez, pela primeira vez, tive a sensação de pertencer a um lugar específico. De certa maneira, vejo parte da minha infância e adolescência como uma contagem regressiva até o dia em que me mudei para cá. Todo mundo está vindo de algum lugar, correndo atrás de um sonho e disposto a defender a vida que a cidade nos oferece. 

O Copan surgiu de um sonho comunista de Oscar Niemeyer. O arquiteto projetou uma habitação social, com opções de comércio, serviços e lazer, onde todas as classes sociais poderiam coexistir. Espalhados por seis blocos, os apartamentos vão desde pequenas kitnets a amplos espaços de 200 m². A galeria no andar térreo é uma gentileza urbana; são vias que se fundem à rua e acolhem o homem comum, trazendo-o para si, como veias que trazem o sangue para o coração. Se São Paulo é o corpo, o Copan é um coração pulsante.

No passado, São Paulo, a capital da solidão, era uma terra de aventureiros. Pobre e isolada, reunia indígenas, jesuítas eruditos e europeus desolados. Estar ali significava ter vencido a impressionante Serra do Mar, que, entre Santos e São Paulo, revela-se na forma de um grande paredão escarpado. No planalto paulista acontecia a experiência mais autêntica possível de Brasil na época, onde portugueses viviam como índios, e seus filhos iriam explorar as entranhas desse país. São Paulo desde então virou uma terra dos sonhos, de natureza sofrida, lugar de quem quer construir, com o próprio suor, a riqueza que não lhe foi concedida pela natureza.

Durante a noite no Copan, observava cada ponto de luz na cidade tentando dimensionar a quantidade de relações e interações possíveis entre cada pessoa. Era um número impossível de ser processado por qualquer cérebro humano. O interfone de meu apartamento tocou e saí pelo prédio para buscar o jantar que havia pedido por delivery. A caminhada pelos corredores estava tão longa que pude reparar que, provavelmente, mesmo que eu morasse a vida inteira no Copan, jamais seria possível conhecer todos os meus vizinhos distribuídos em 1160 apartamentos. Em cada um dos apartamentos existe uma infinidade de possíveis afetos, gostos, histórias de vida e narrativas que jamais conhecerei. Diante de minha pequenez como indivíduo nesse emaranhado de gente, nessa infindável selva de pedra num ponto do planeta, relaxei minha mente. Experimentei, então, o mais incrível tipo de libertação que podia viver naquele momento: em lugares como esse, ninguém toma conta da vida de ninguém. Aqui eu posso ser o que eu quiser ser.









quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A Rota da Resistência (versão cordel)


Vou contar em um cordel
A grande aventura humana
De pessoas que lutaram
Contra a dor que aqui emana
Nos pedaços mais remotos
Dessa terra americana.

Escrevo agora em versos
O que antes era prosa
De histórias já narradas
Por palavras mais formosas
Romance, filme, novela
Até história milagrosa.

O que aqui eu vou contar
É toda minha vivência
Das areias de Aracaju
À origem da sapiência
No interior do Piauí
Eis a minha confidência.

Não é só experiência
Também é literatura
Tenho base em documentos
E escrevo com ternura
Meu relato assim começa
Com essa grande abertura.

*

Na capital sergipana
Um pouco de tudo eu vi
A orla cheia de folclores
Que cidade descobri
Caranguejo virou prato
Minha boca enrijeci.

Desejei ser sertanejo
Quando cheguei ao mercado 
Chapéu de palha na mão
E o estilingue pendurado
Como o rapaz que sonhou
Estar na obra de Lobato.

Viver na realidade
O que via na ficção
Uma vida de aventuras
Onde além do sertão?
Aqui seca e miséria
Viram fé e redenção.

Falei com um cordelista
Daquele lá da raiz
Sem nem me conhecer
Me tornei seu aprendiz
Ele disse pra mim sorrindo:
- O sertão é meu país!

Tem nome de jogador
Sobrenome de burguês
Ronaldo Dória é o nome
Do poeta com fluidez
Cordelista conhecido
Que me fez o seu freguês.

Eu queria levar dois
Mas era muita opção
Tinha Lula e Marielle,
Maria Bonita e Lampião
Velho Chico e as maravilhas
São as coisas do sertão.

Aprendi que no Nordeste
O saber é popular
A linguagem do cordel
O povo quer escutar
Onde há muito analfabeto
As letras fazem brilhar. 

Muitos aqui me disseram
Que a vida melhorou
Filho de analfabeto
Já consegue ser doutô
Na terra que tem vaqueiros
Também tem é professor.

*

Dirigi o meu carrinho
Para dentro dessa terra
As estradas bem cuidadas
Todas quase em linha reta
Indo sempre a Oeste
Vendo o Sol atrás da serra.

Semiárido não é árido
Muito verde há no Nordeste
Quem acha que é tudo morto
Não é gente que se preste
Além do sertão existe
Zona da Mata e Agreste.

Ali corre um rio enorme
Entre lenda e misticismo,
Guerras e revoluções,
Bandidagem e heroísmo,
Das Gerais até o Nordeste
É o tal belo São Francisco.

Água que corre entre pedras
O Xingó me deu um verso
Minha alma foi lavada
Com meu corpo submerso
No pedaço mais fantástico
Do rio com que converso.

Logo pertinho dali
Na cidade de Piranhas
Tinha a grota de Angico
Que marcou o fim das façanhas
Do bando de Lampião,
Foi a última das campanhas.

O cangaço atacava
A volante perseguia
Nas margens do São Francisco
Para ambos uma relíquia
Aliviavam a tensão
Era a grande estrela-guia.

No sertão todos perguntam:
É herói ou é bandido?
Se o cangaço era ruim
O Estado estava perdido
Como deixa o próprio povo
Na miséria reprendido?

Morte vida severina
Assim é a via sertaneja
Sem como se defender
E vencidos na peleja
O bando foi degolado,
As cabeças na bandeja.

*

Seguindo pelo sertão
Já somava três estados
Paulo Afonso, Jeremoabo
Canudos era logo ao lado
Tudo dentro da Bahia
Meu coração fora flechado.

Caiu do céu em Bendegó
Uma pedra incandescente
Trazendo a profecia
Do homem benevolente
Que os pobres libertaria
Nessa terra contundente.

Só na Bahia podia
Ter um santo guerrilheiro
Beato da rebeldia
Falo de um tal Conselheiro
Sua história vou contar
Pois quis ser seu companheiro.

O sertão era esquecido
Pelo estado nacional
A própria Igreja Católica
Não era nada cordial
Uma grande seca houve
O jeito era ir pro arraial.

Lá o pobre sertanejo
Tinha cuidado e trabalho
Praticava sua fé,
Era um perfeito agasalho
Recebido em Canudos,
Ostentava um relicário.

A fama do Conselheiro
A muitos incomodou
Foi tachado de Anti-Cristo,
Monarquista, impostor
As tropas foram chamadas
Pra acabar com o detrator.

Um grande crime ocorreu
Numa briga de irmãos
O pobre da capital
Matou o pobre do Sertão
Quem descende do conflito
Da favela é população.

No parque lá de Canudos
É o cenário da batalha
Sobre a qual contou Euclides
Como um filme na pantalha
Onde residem os corpos
Descansando sem mortalha.

Hoje todo o mundo sabe
O sertanejo é um forte
Foram três expedições
Que fracassaram sem sorte
A quarta foi um massacre,
Lutaram até a morte.

*

Nessa terra de encanto
A beleza está no ar
Fui atrás do Conselheiro
Mas foi só me descuidar
Que me peguei observando
A Arara-azul-de-lear.

Conheci o Seu Lourinho
Que decifra a natureza
E apresenta ao viajante
Mostrando toda a riqueza,
As veredas e caminhos
Sempre com muita destreza.

Dono de um olho afiado
Conhece a espécie mais rara
Uma bela arara azul
Distinta das outras araras
Só existe em Canudos
Meu mundo ficou odara.

*

Se tem adversidade
Meu carrinho fraquejou
Foi em Caldeirão da Serra
Que o pneu traseiro estourou
Seu Abel foi o mecânico
Que sua graça ofertou.

Lembro bem de cada nome
Gosto de lembrar dos rostos
Deixo amigos no caminho
Todos de muito bom gosto
Nordestino é gente boa
Como de antemão suposto.

Em Petrolina eu olhava
Para a irmã Juazeiro
Qual das duas é mais linda?
Igual o Gonzaga sanfoneiro
A pergunta que eu fazia
Sem responder por inteiro.

*

Agora preste atenção
Não é fácil acreditar
Há cem mil anos atrás
Um oceano a cruzar
Muito antes do Cabral
O Brasil ia começar.

Foi em tim-tim por tim-tim
Que cheguei a São Raimundo
Berço de um passado antigo
Revelado para o mundo
Ali nós percebemos:
A vida passa num segundo.

No Piauí brotou o homem
O primeiro americano
Que descobriu os sertões,
A floresta desbravando
Entrou na mata fechada
Pra virar homem humano.

Primeiro surgiu a pedra
E nela surgiu a arte
Que o humano já fazia
Pra não morrer da verdade
Ninguém quer ser esquecido
Todos buscam a eternidade.

Sim o mar virou sertão
Caatinga foi oceano
Deixou sal e grãos de areia
Em estado soberano
Que narram a bela história
Do antigo homem profano.

Esses seres ensinaram
Como viver na Caatinga
Ao estranho europeu
Que veio de terra gringa
Assim nasceu o sertanejo
No agito dessa ginga.

Nas entranhas desse solo
Há um legado exuberante
Um museu que conta a vida
Do início ao fim abrange
Obra de Niède Guidon,
Pesquisadora andante.

No coração do Piauí
Nossa cultura resiste
O conhecimento nasce
Até mesmo em terra triste
Ao ler minha aventura
Grandes feitos descobriste.

*

Agora queria pular
Melhor manter em segredo
Dirigindo na estrada
Minha mão tremeu de medo
Preferia nem contar
Mas vou seguir o meu enredo

Achei que seria rendido
Quando vi aqueles vaqueiros
As roupas todas de couro
Pareciam cangaceiros
Minha mão fez um aceno
Que bom, eram cavalheiros.

Nessa mesma estradinha
A única de chão batido
Vi surgirem carnaúbas
Deixaram o sertão retido
Era quase Amazônia
Num contraste tão florido.

*

Eu segui os peregrinos
No trajeto do padrinho
Terminei em Juazeiro
Juazeiro do santinho
Bem no sul do Ceará
O mais sagrado caminho.

Uma puta cidadona
Surgiu ali na região
Tudo por causa de Cícero,
Padroeiro do Sertão
Homem santo poderoso
Temido até por Lampião.

Nos becos, ruas e praças
Os fiéis disputam espaço
Para ver os artefatos
É um grande estardalhaço
O caminho do Padim
Mesmo eu também refaço.

O problema é a ambição
Muitos botaram defeito
Amigo de coronel,
Foi deputado e prefeito
Deu ruim lá no Vaticano
Assim deixei Juazeiro.

*

Se você leitor duvida
Do que leu nesse cordel
Sinto muito caro amigo
Eu retiro meu chapéu
Tenho provas bem verídicas
Não façamos escarcéu.

Se você quer uma dica
Essa agora é cortesia
Vá embora pro sertão
Pode ser em romaria
Pois foi assim que atingi
As alturas da poesia.

***















sábado, 4 de janeiro de 2020

América Central e o paradoxo de Galeano

"Entre as moscas sanguinárias
a Fruteira desembarca
despejando o café e os frutos
nos seus barcos que transportarão
como bandejas o tesouro
das nossas terras submersas."
                                                    
                                                 Pablo Neruda

De volta ao istmo central de minha terra, me voltam, também, as lembranças das palavras de Eduardo Galeano na definitiva obra As veias abertas da América Latina. Nesta terra, é importante não nascer importante: colônias ricas tiveram todas as suas riquezas drenadas para a acumulação capitalista europeia; colônias pobres, de terras pouco generosas, apresentaram maior paz e prosperidade. É muito difícil saber para onde o mundo caminha, mas a América nos forneceu diferentes caminhos para lidar com os desafios do mundo. Hoje, podemos observá-los e, sobretudo, imaginar um destino melhor para este povo e esta terra.

Quando li pela primeira vez As veias abertas da América Latina, estava trilhando os caminhos do Monte Roraima. Nessa ocasião, me chamou a atenção o modo como o desenvolvimento deixou alguns náufragos pelo caminho. As populações indígenas do Brasil e da Venezuela, geograficamente isoladas dos principais centros de seus respectivos países, separadas por fronteiras nacionais que nada tinham a ver com eles, buscavam compreender qual seu papel nesse novo mundo que lhes foi proposto após a colonização. Já na pequena e tenaz Cuba, retomei a leitura do livro para compreender melhor a Cuba pré-revolucionária, em que a monocultura do açúcar criava relações de dependência econômica e desigualdade social entre as oligarquias açucareiras e o grosso da população camponesa. 

Dessa vez, novamente viajando pela doce cintura da América, como cunhou Pablo Neruda, passei por Costa Rica e Panamá. Dois países muito próximos, mas com significantes diferenças entre si. O caminho que trouxe o passado até o presente foi uma linha reta, mas o futuro é repleto de bifurcações. A Costa Rica hoje anda rumo ao futuro por rotas largas e bem sinalizadas. O Panamá, por sua vez, após um longo histórico de ingerência norte-americana, está, finalmente, assentando as bases de seu próprio caminho.


Costa Rica


Em 1949, a Costa Rica optou seguir por um caminho ainda desconhecido no mundo, o caminho da paz: extinguiu completamente seu exército e adotou, em sua constituição, a neutralidade política. Enquanto seus vizinhos viveram - e ainda vivem - terríveis conflitos armados e instabilidade política, a Costa Rica encontrou um caminho para seu próprio desenvolvimento sustentável e independente. Diversificou sua economia, deixou de ser uma república de bananas e optou pelo ambientalismo, bem antes de isso ser pauta dentre os chefes de estado de todo o mundo. Hoje o país tem 30% de seu território protegido como reserva natural, quase a totalidade de sua energia gerada por fontes renováveis e, dentre todas as nações do mundo, é a que está mais próxima de se tornar neutra em carbono.

Em um continente tão contraditório quanto a América, essa relativa prosperidade costarriquenha tem, em sua gênese, a escassez de recursos naturais e humanos. Localizada nas periferias das mais impressionantes civilizações pré-colombianas - os maias, ao norte, e os incas, ao sul -, a Costa Rica, antes da conquista, era pouco habitada por povos indígenas. O nome Costa Rica, a propósito, é uma trágica ironia: foi dado por Cristóvão Colombo, que relatou ter visto, ali, vastas quantidades de ouro dentre os nativos, imaginando se tratar de uma região riquíssima. Tal riqueza não foi comprovada pela experiência colonizadora: os espanhóis não somente não encontraram nenhuma Eldorado na região, como padeceram, em massa, das doenças tropicais. Além disso, encontraram poucos nativos para escravizar e lhes apresentar a região, o que fez a Costa Rica ser considerada a mais pobre e miserável colônia espanhola em toda a América. 

Assim, longe da cobiça europeia, a Costa Rica se desenvolveu a seu próprio modo, com base na agricultura de subsistência e, posteriormente, na exportação de café. Aos poucos, os europeus foram povoando o país, os indígenas, que já eram poucos, foram desaparecendo, e desse modo nasceu uma sociedade igualitária, democrática, sem classe oprimida e essencialmente branca, em pleno cordão tropical do planeta. 




A Costa Rica é diferente, singular na América Latina. A primeira impressão do país engana, vem da feiura de sua capital San José. Sem um passado colonial marcante, também não há as grandes e imponentes catedrais, edificações ou mesmo as tão características e belas praças de armas, comuns em toda a América espanhola. Os engarrafamentos e quantidade de carros nos fazem pensar que se trata de mais uma grande e caótica capital latino-americana, a segunda mais recente no continente, atrás apenas de Brasília. No entanto, nas entrelinhas de um aglomerado urbano sem muitos encantos, está uma cidade segura, com enormes parques, um centro empresarial pulsante e com atividades econômicas diversificadas. 

Localizada na meseta intervulcânica do Vale Central, as montanhas que envolvem a capital, muitas das quais com vulcões ativos, servem como um convite para que nos desloquemos para o interior do país. A Costa Rica nos convence a explorá-la. O melhor a se fazer é entrar em um carro; sentir na ponta dos dedos a emoção de se perder pelas estradas do país, estreitas, sinuosas, íngremes e lentas. Somos levados por seus caminhos e presenteados com paisagens incríveis que, a despeito das pequenas dimensões do país, são altamente mutáveis e diversas. Sentimos a liberdade de se poder ir quando e como quiser, de se dobrar esta ou aquela esquina, de se usar o tempo como bem entendermos. 

No interior, vemos uma terra misteriosa, como se de repente descobríssemos uma terra distante, fértil, mas indisponível para a exploração estrangeira. Antes, trata-se de uma paisagem original, cuja intervenção humana se dá com muito respeito e adoração. Os ticos, como são conhecidos os costarriquenhos pelo uso de diminutivos com essa terminação, que têm em sua origem um hiato cultural entre os povos nativos e os europeus, transcenderam o apreço pelo meio ambiente ao nível de um elemento vital para sua identidade patriótica. Existe uma expressão que simboliza tudo isso, Pura Vida, uma versão tropical do Carpe Diem. É amplamente usada como uma saudação, para desejar boas energias, mas é, sobretudo, uma filosofia com muitos significados e que não carece de maiores explicações. É a simplicidade e a boa relação com a natureza que norteiam a cultura costarriquenha, e o conceito de Pura Vida está no cerne do que a nação quer deixar como sua contribuição para o conhecimento da humanidade.    

A natureza, por sua vez, faz questão de mostrar a força que emana de suas profundezas para se afirmar como motivo de veneração e respeito. O país é repleto de vulcões, e o mais impressionante deles, o Arenal, é um verdadeiro inquieto monstro geológico. O cone de pedra que brotou do interior do planeta esteve adormecido por 400 anos até que uma violenta explosão em 1968 destruiu três vilarejos próximos. Até 2010, o vulcão expelia, quase que diariamente, cinzas, gases e partículas sólidas. Desde então, ele dorme tranquilo novamente. As encostas  do cone possuem marcas do escoamento de lavas do passado. Os caminhos que nos levam até próximo à base do vulcão são acompanhados por rochas vulcânicas enegrecidas e recentes, que mostram toda a magnitude da força que o Arenal pode atingir.

Por todo o país se pode encontrar belíssimos parques nacionais e uma vasta vida selvagem. Nas estradas, é comum situações em que um congestionamento de carros se forma para que um bicho-preguiça ou uma família de quatis possa atravessar a pista com segurança. Ao chegar a uma ponte alta sobre um rio, comecei a reduzir a velocidade do carro, até que parei e estacionei. Turistas se aglomeravam nas beiradas da ponte, guardas de trânsito tentavam organizar o tráfego. Quando desci do carro e me juntei ao alvoroço, descobri que estavam todos observando o banho de sol de ao menos uma dúzia de enormes crocodilos.

Cenas assim são mais comuns do que se imagina nas estradas costarriquenhas. Em um país tão comprometido com a preservação do meio ambiente, a ideia não é abrir grandes rodovias, que possam, ocasionalmente, causar isolamento de populações da mesma espécie ou morte de vida selvagem por atropelamento. Pelo contrário, as estradas, se pavimentadas, são cheias de curva e de difícil direção, mas necessárias para se conhecer um país tão pequeno como naturalmente diverso.











Uma das formas possíveis de prosperidade econômica na porção americana ao sul do Rio Bravo era a combinação entre café e ferrovia. Na Costa Rica, os pequenos agricultores se beneficiaram do gosto europeu pelo café e passaram a lucrar muito com as exportações. A partir de 1870, o general Tomás Guardia, com apoio dos barões do café, iniciou a construção da Ferrovia Atlântica, prodigiosa obra que conectou o planalto ao novo porto caribenho de Limón. Até então, para escoar a produção, o café era transportado em carro de boi até o porto de Puntarenas, no Oceano Pacífico, de onde era levado até a Colômbia. Então, bordejando a América do Sul, o café ia até o Oceano Atlântico, onde se conectava às rotas comerciais marítimas europeias. O empreendimento foi realizado pelo empresário nova-iorquino Minor Cooper Keith. A construção da ferrovia, no entanto, mostrou-se extraordinariamente desafiadora devido ao terreno acidentado, selva espessa, chuvas torrenciais e ocorrência de malária, febre amarela, disenteria e outras doenças tropicais. Com dificuldades de cumprir a dívida da obra, o governo costa-riquenho cedeu ao empresário 800 mil acres de terra na planície do Caribe, além de conceder a operação da ferrovia por 99 anos. Nessa terra, Keith começou a plantar e exportar bananas, o que logo se tornou sua principal unidade de negócio. Assim nasceu a poderosa United Fruit Company.

Finalizei minha passagem pela Costa Rica na melancólica estação de trem de San José. Antes símbolo do progresso, do domínio do homem sobre a natureza, hoje o sistema ferroviário costa-riquenho é precário. Quando não há embarque ou desembarque de passageiros, a estação fica deserta e sem vida, envolta por um denso silêncio. Sobre esses trilhos, iniciou-se um dos capítulos mais duros da América Latina, em que a United Fruit Company inaugurou um segundo período de colonização, controlando portos, ferrovias, interferindo em governos e, sobretudo, drenando a riqueza latino-americana para os Estados Unidos. Com a comercialização de bananas, os Estados Unidos iam consolidando seu império transnacional e adquirindo cada vez mais poder sobre os países da América Central.

Panamá


Da Costa Rica cheguei ao Panamá, país que nasceu com a incumbência de unir dois oceanos, dois mundos distintos. Como canalizador de um fluxo global de pessoas e mercadorias, o Panamá é um importante centro logístico por onde já havia passado em duas outras ocasiões, mas nunca adentrado. Dessa vez, finalmente parei para uma estadia de cinco dias na capital. A Cidade do Panamá é uma metrópole cosmopolita e dinâmica, mas, tendo sido uma colônia importante no passado, convive, hoje, com muitos contrastes e uma brutal desigualdade social. Os arranha-céus são talvez os mais belos e modernos da América Latina; são vistosos e mostram ao mundo o papel de metrópole global que a cidade quer exercer. O centro histórico, o Casco Viejo, é digno das glórias do passado, quando  o país era ponto de parada de quase todo ouro e prata vindos do Peru. Ao lado do Casco Viejo, contudo, a região central da cidade é suja, degradada e informal. Nos muitos cortiços e sobrados, os moradores mais pobres conseguem ver, no horizonte, os belos prédios e a riqueza que vem do Canal do Panamá.






Inaugurado em 1914, o Canal do Panamá é um dos grandes feitos da humanidade. Incrível como, com alguns conceitos de Física básica, dois oceanos desnivelados foram conectados, criando um novo horizonte de possibilidades no continente americano. Um conjunto de esclusas e comportas permite que a água, por pressão hidrostática, passe do lado mais elevado para o mais baixo. Quando o nível da coluna d'água se iguala, os navios vão atravessando, em etapas, o continente, até desembocarem no outro oceano. Antes, o único jeito de se passar do Oceano Atlântico ao Pacífico era pelo extremo sul da América do Sul, na Terra do Fogo, via estreito de Magalhães ou cabo Horn, uma das regiões de mais difícil navegação do planeta.

Tal feito de engenharia beneficiou um país muito mais do que os outros: os Estados Unidos, que agora tinham um caminho rápido e fácil que ligava as costas leste e oeste de seu território. Era o que faltava ao longo plano expansionista estadunidense, que primeiro alcançou o Oceano Pacífico, depois a região polar, até expandir seus tentáculos em direção à América Central. O Destino Manifesto chegava ao seu auge com o canal do Panamá, construído e gerido por anos pelos Estados Unidos. Em meados de 1880, quando o Panamá fazia parte da Grã-Colômbia de Simón Bolívar, houve a primeira tentativa de construção do canal com capital majoritariamente francês. Os franceses, contudo, dada a dificuldade e a alta taxa de mortalidade no empreendimento, desistiram da obra. Os Estados Unidos, não obtendo sucesso nas negociações com a Colômbia para a continuidade do projeto, passaram a financiar movimentos separatistas no Panamá. Em 3 de outubro de 1903, o Panamá proclamou independência da Colômbia, e quinze dias depois, foi firmado um tratado que concedia aos Estados Unidos o uso, controle e ocupação perpétua da Zona do Canal, conferindo ao Panamá a condição, na prática, de protetorado americano.

Hoje o Panamá lida com um passado cujos caminhos não foram traçados pelos panamenhos; vive a sua primeira independência de fato. A sede administrativa do canal foi montada, pelos Estados Unidos, no topo de uma colina, à semelhança de um Monte Olimpo, morada dos deuses, com eloquentes referências renascentistas, em que a razão humana deveria reinar sobre o mundo. Logo ao lado, o "bairro americano" foi uma região onde os estadunidenses que trabalhavam no canal se autossegregavam dos latinos panamenhos em suas belas casas com jardins que pareciam retiradas dos subúrbios americanos. Em 1977, os dois países assinaram um tratado de transição da administração do canal, até que em 1999 o governo do Panamá assumiu o controle de vez.

Com grande parte da riqueza do canal agora permanecendo no Panamá, o país se reinventou em direção ao multiculturalismo, globalismo e diversidade. Diferentemente da Costa Rica, a cultura nativa panamenha é muito presente no país. A etnia Guna preenche as ruas da capital com o colorido das molas, arte têxtil que compõe sobretudo a vestimenta feminina. A maioria dos gunas vive em três comarcas politicamente autônomas dentro do Estado do Panamá, onde preservam suas tradições e desenvolvem atividades econômicas como o turismo. Até 2010, o povo era referido como "Kuna", mas uma reforma ortográfica alterou a grafia para "Guna". Em meio aos esforços para se estabelecer uma gramática guna, um idioma de fato, não um dialeto ou variante, definiu-se o uso de apenas 15 letras do alfabeto latino, ficando o "K" de fora. Essa mudança faz parte de um conjunto de medidas para se criar uma educação bilíngue no país.

O colorido da Cidade do Panamá não se dá somente pelas molas, mas também pelos diablos rojos, antigos ônibus escolares americanos adquiridos em segunda mão para realizar o transporte público coletivo da cidade. Contrabalanceando o concreto dos arranha-céus, os diabos vermelhos, todos customizados com uma arte cheia de cores, inevitavelmente se tornaram um símbolo do país. Não podia passar pelo Panamá sem ter a experiência de andar em um deles: após passar pela sede administrativa do canal, embarquei em um ônibus qualquer, indo para qualquer lugar. O preço é muito barato, alguns centavos de dólar, moeda praticada no país. Por dentro, é nítida a falta de manutenção e o estado precário dos bancos; é o transporte das camadas populares, ameaçado de extinção com o desenvolvimento econômico experienciado pela cidade. Dentro do ônibus, quase todos eram indígenas, de estatura mais baixa, o que se adequava aos banquinhos apertados que outrora levavam crianças para a escola. O ônibus começou a se afastar da cidade: atravessou a Ponte das Américas, que por muito tempo foi a única passagem terrestre entre as porções norte e sul do país, separadas pelo canal. Ali existe um mirante em homenagem aos 150 anos da cultura chinesa no Panamá. Seguiu mais um pouco e rapidamente a grande metrópole global de prédios enormes deu lugar a barracos e a moradias precárias. Estava em uma estrada e desci em uma parada perto de um grande posto, de onde seria fácil arranjar transporte de volta para o núcleo urbano. Aos poucos me foi revelado um país pobre, rural e indígena em seu interior, que dessa vez não tive a oportunidade de conhecer.

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Quanto mais do mundo eu vivo, mais eu entendo o quanto o mundo é complexo. A América é lar da nação mais poderosa do mundo, mas também das mais pobres e desiguais. Tem país de negro, país de branco, país miscigenado, país indígena, país comunista, país sustentável, país com a maior obra de engenharia do século, vulcão, floresta tropical, dois oceanos. Longe de conhecermos o melhor caminho a seguir em um futuro que é inexoravelmente incerto, podemos ver, na América, diversas experiências civilizatórias que deram certo, ou não.