sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Um guia de viagem pelo Acre (2/2)

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Xapuri: o berço de Chico Mendes (ou Crônica de uma morte anunciada)

Minhas expectativas ao chegar em Xapuri eram muito altas. Berço da luta seringalista e local de nascimento e morte de Chico Mendes, Xapuri tem sua própria mitologia. A cidade é pequena, com menos de 20 mil habitantes, mas gerou uma verdadeira liderança capaz de inspirar a luta ambientalista em todo o mundo. Nas semanas que antecederam minha viagem, quando busco leituras sobre os locais que irei visitar, quase não encontrava informações sobre Xapuri. Essa visita à cidade acabou se tornando uma jornada individual de descoberta e reconstrução do legado de Chico Mendes.

Aluguei um carro em Rio Branco e fui dirigindo à Xapuri pela BR-317 (estrada do Pacífico). Havia trechos muito esburacados, mas ainda assim foi possível manter uma velocidade média de 80 km/h. Eu percorreria essa estrada até o seu fim, em Assis Brasil, o que confirmaria algumas de minhas impressões iniciais: o cenário é de pouco movimento, poucos caminhões, indicando trocas comerciais mornas com o Pacífico via Acre, e muita fazenda. Diferentemente de minha passagem pela BR-364, no entanto, o campo de visão era mais amplo e era fácil identificar a linha da fronteira agrícola; o horizonte era traçado por florestas. 

Ao nos aproximarmos de Xapuri, temos uma saudação de boas vindas muito calorosas. A estrada de acesso à cidade se chama "Estrada da Borracha". Como um belo portal, logo quando acessamos essa estrada somos envoltos por um túnel de seringueiras, com muitas dessa árvore símbolo de todo um povo plantadas nas margens. A copa das árvores de ambas margens se entrelaçam fechando o teto do túnel. A seringueira é sobretudo uma bela árvore, que pode atingir alturas de 30 metros, tem caule alaranjado e folhas verdes escuras - uma bonita combinação de cores. Seguindo pela estrada, é perceptível o cuidado que já foi empenhado ali. Passamos pela placa de "bem-vindos", logo depois por uma fábrica de preservativo, estrategicamente posicionada para aproveitar o látex e a mão de obra da região, e um corpo de bombeiros cuja arquitetura da sede é uma homenagem à tradicional habitação seringueira.

A cidade é aconchegante e acolhedora. Também banhada pelo Rio Acre, como Rio Branco, grandiosidade aflora dessa cidade interiorana. As ruas contam com árvores delicadamente podadas em formato cúbico. Margeando o rio está um prédio histórico que quase passa despercebido, o edifício da intendência boliviana, conquistado pelo exército de Plácido Castro em um dos episódios mais decisivos da Revolução Acreana. Em local privilegiado perto da praça principal fica um prédio da sede do PT (Partido dos Trabalhadores), todo pintado de vermelho. Do outro lado da rua fica o prédio da antiga prefeitura, que ao menos costumava ser um museu - estava fechado pela pandemia da Covid-19. Descendo um pouco, chega-se a praça da igreja, que homenageia São Sebastião. O calçamento da região mais histórica é feito com tijolos. No dia em que cheguei, um domingo, estava acontecendo uma quermesse com um bingo beneficente em praça pública, cujo prêmio era uma bezerra. Na mesma praça fica a histórica sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. 

Rapidamente, na primeira caminhada exploratória em Xapuri deu para entender o que havia de diferente nesse lugar para tornar o movimento seringalista e ambientalista tão fortes. Foi uma conjunção de organização político-partidária, com consciência de classe e emergência de um líder carismático do povo. Chico Mendes entendia que as lutas social e ambiental só eram completas quando caminhando juntas. No Acre dos anos 1980, não era difícil entender o conflito de classes, e de qual lado você pertencia. Os povos seringueiros tradicionais dependiam da floresta intacta para extrair sua riqueza. Os fazendeiros, beneficiados pela política de desmatamento da ditadura militar, almejavam a mesma terra para a prática da pecuária extensiva. Eram muito nítidas as implicações sociais de se ter largas porções de terra concentradas nas mãos de alguns fazendeiros, em plena Floresta Amazônica. O conflito de terras levou a vida de Chico Mendes, e ainda deixa vidas pelo caminho. Em uma farmácia, fui atendido por uma jovem mulher viúva, que recordava com saudades de seu marido vítima de disputas por terra.

Cheguei finalmente à casa de Chico Mendes, local onde ele viveu com sua esposa Ilzamar e foi assassinado por Darcy Alves em 1988. A casa é um exemplar lindo da estética acreana, pintada com tons pastel de azul e detalhes em rosa. O lugar tem seu simbolismo e é extremamente fotogênico. Um letreiro identifica ali como a casa de Chico Mendes, e não há mais nada. Não há uma placa explicativa, não há trabalho de preservação da memória, não há o nome de seus assassinos, tampouco a pena a qual foram submetidos. O estado do Acre sofreu em 2015 uma das piores enchentes de sua história, que interrompeu uma obra de restauro da casa. Ela foi reaberta em 2017, mas fechada no início de 2020 por causa da pandemia do Coronavírus. Único bem tombado como patrimônio cultural nacional no estado, sua preservação é obrigação pública. Não fosse isso, talvez a casa tivesse um pior destino de abandono. Não consegui descobrir para onde foi o acervo e objetos pessoais de Chico Mendes. Quando eu passei pela praça da igreja, notei que havia um centro de informações turísticas. Passei lá para fazer algumas perguntas, mas descobri que agora o centro de informações funciona como ponto de Táxi.

No dia antes de eu ir à Xapuri, abri meu computador para tentar encontrar um hotel para ficar. Pesquisando na internet, nas tradicionais plataformas de reserva, não encontrava lugar para me hospedar. Abri o Google Maps, pesquisei por hotel na área e encontrei a Pousada dos Chapurys. Faltava uma informação de contato. Abri o Google Street View e consegui finalmente ler um número de telefone pintado no muro da pousada. Telefonei e fui atendido por um senhor chamado João Mendes. Minha primeira reação foi perguntar se ele era parente de Chico Mendes. Ele disse que não, já emendando com sua voz grave um discurso de amor ao que Chico construiu, criticando que na cidade muita gente não reconhece sua luta ou sequer conhece sua história. Reservei duas noites e na manhã seguinte cheguei à pousada, localizada entre o centro e a praça da igreja.

João Mendes é um poço de sabedoria sobre Xapuri. Sem informação, sem museu, sem memorial na cidade, desfrutei de seu conhecimento para perguntar tudo o que eu desejava saber sobre a cidade. Ele é um bancário aposentado filiado ao PT desde 1986 e sempre transitou bem entre as lideranças políticas do Acre. Em um restaurante anexo a sua pousada, que administra com sua esposa Maria Nilce, exibe com orgulho fotografias da história da cidade e com personalidades políticas que já hospedou. Há foto com Marina Silva e de ex-governadores do Acre como os irmãos Jorge e Tião Viana. Nomes como o de Lula e Eduardo Suplicy, da alta cúpula do PT já passaram por ali também. João Mendes, já um senhor, não tem mais o apetite político de outrora, mas permanece fiel ao ideal de Chico Mendes. Em uma televisão no restaurante, assiste jogos de seu Botafogo e acompanha o noticiário. Eu perguntei a ele sobre sua foto com Marina Silva, e ele comentou com ares de tristeza que ela abandonou a causa. Consegui perceber seu desapontamento com o atual governador do Acre, bolsonarista, Gladson Cameli, de Cruzeiro do Sul. O governador, de um partido rival, tenta abafar a memória de Chico Mendes em Xapuri, historicamente associada ao PT, e que ainda conta com prefeito petista. 

Fato é que o atual governador tem altos índices de aprovação no estado e, caso consiga construir a ponte sobre o Rio Acre em Xapuri, conectando o centro da cidade ao bairro Sibéria (onde reside quase metade da população), pode ser o fim de um longo período de administrações de esquerda. Essa travessia hoje é administrada pelo governo estadual com balsas em estado ruim de conservação. Eu fiz uma visita ao bairro Sibéria de carro, passando pela balsa, e a experiência realmente é muito ruim. Em novembro, o nível do rio ainda é baixo, e para chegar à balsa, é necessário primeiro descer um enorme barranco, muito íngreme e não pavimentado. Quando a balsa chega ao outro lado, é necessário subir um barranco de igual declividade. Os carros costumam descer o barranco e entrar na balsa de ré, para, com a rotação da balsa em sua travessia no rio, saírem com o carro virado para frente no outro lado. Nesse processo precisei manobrar o carro na ladeira, com pouco espaço. Para subir, tive medo de faltar forças ao motor de meu carro. Para passar ali, o motorista deve ser consideravelmente habilidoso.


Seringal Cachoeira

A quarenta minutos de carro do núcleo de Xapuri, fica o Seringal Cachoeira, um dos lugares mais emblemáticos do Acre, território onde as disputas entre seringueiros e fazendeiros se acirraram. Local de nascimento de Chico e onde Darly Ribeiro tinha uma fazenda, antigos seringueiros, incluindo muitos familiares de Chico Mendes vivem ali. Se eu fosse escrever um glossário sobre o Acre, a palavra empate certamente estaria nele. Empates são manifestações de ativismo político em defesa da floresta pelos seringueiros. O termo carrega consigo a tática dessa manifestação: os ativistas se organizam pacificamente como uma corrente de pessoas com as mãos dadas em torno da área a ser devastada para impedir o seu desmatamento. O Seringal Cachoeira foi palco de empates históricos. Com uma pequena lista de nomes que João Mendes me recomendou procurar chegando lá, entrei no ramal de terra em direção ao seringal.

Em um momento diferente de nossa história recente, no ano de 2003 foi criada uma pousada ecológica no Seringal Cachoeira, administrada pelo governo do Acre. A ideia era criar uma estância turística em um lugar histórico, com interesse internacional, em que, por meio de trilhas culturais e vivências com seringueiros, o visitante pudesse conhecer sobre a luta seringalista, ao mesmo tempo que fornecia uma alternativa viável de exploração econômica de uma área de proteção ambiental. O turista tinha trilhas à disposição, podia alugar bicicleta, pedalinho, pescar e ainda fazer arvorismo nas enormes árvores amazônicas. Quando cheguei ali com o meu carro, parei no antigo estacionamento da pousada e o que vi me trouxe muita dor. A pousada estava em estado total de abandono, eram ruínas sendo invadidas e destruídas pela floresta. Algumas seringueiras ali ainda tinham os tradicionais potes de extração acoplados em seu caule, e eu, ingenuamente com meu canivete, tentava seguir as linhas traçadas pelos seringueiros para fazer a seiva jorrar. Sucateada pelo governo, sem investimentos, sem manutenção e largada durante a pandemia, a pousada passará à iniciativa privada. 

Depois de caminhar um pouco pela região da pousada, fui abordado por um morador que disse estar aguardando uns turistas. Não era eu, mas ele me ajudou com algumas informações sobre o lugar. Perguntei sobre os nomes que João Mendes me passou e ele disse que estavam por ali, dizendo para eu ir até o mercado do seringal. Caminhei até lá, depois de ter tirado algumas fotos, e comecei a conversar com todos que eu encontrava. Se foi coincidência ou se ele foi avisado pelo morador que aguardava os turistas, Tito Mendes, primo de primeiro grau de Chico Mendes apareceu com sua moto no mercado e eventualmente começamos a conversar. Ele me levou para um passeio por duas pequenas trilhas que restaram do complexo turístico: a trilha da Sumaúma e a trilha do seringueiro. 

Tive uma tarde muito agradável na companhia de Tito, que tinha um profundo conhecimento sobre a natureza e sobre a região. Ele trouxe equipamentos de extração de látex da seringa, como a cabrita, para fazer demonstrações. O seringueiro é antes de tudo um artista-cirurgião e a extração da seringa é uma poesia. As linhas são traçadas no ponto certo, seguindo uma direção de aproximadamente 30º. As linhas vão se conectando e formando caminhos para o escoamento da seiva. As listras criadas na casca da árvore, como afluentes de um rio, encaminham-se para uma via principal traçada longitudinalmente no tronco, para então cair em uma caneca de látex que os seringueiros afixam no caule. Quando a árvore é rasgada, ela primeiro fica vermelha, e depois esbranquiçada pelo látex, que flui pela sua superfície.

Segundo Tito, um seringueiro consegue extrair de 600 kg a 1000 kg de seringa por ano. Na alta do mercado, em um cenário muito pouco provável, paga-se R$10,00 por quilo de látex. Fazendo as contas, é um valor muito baixo para uma família viver por mês dependendo apenas da extração dessa matéria-prima. A castanheira é uma outra árvore que fornece um produto comercialmente valorizado. A questão ambiental insere-se nesse contexto: três dias após o seringueiro retirar todo o látex possível de uma árvore, ele pode repetir o procedimento. A árvore terá fabricado a seiva novamente, em um ciclo que só tem fim com a morte da árvore. No entanto, por pressão financeira e falta de incentivos, hoje os seringueiros aderiram também à pecuária e ao roçado.

***

Na obra de Gabriel Garcia Marquez, Crônicas de uma morte anunciada, os irmãos Pablo e Pedro Vicário vão calmamente a um açougue afiar suas facas e manifestam sua intenção em matar Santiago Nasser. O coronel, informado, após seu café da manhã, confisca a faca dos irmãos e os manda dormir, sem sequer investigar o assunto. A notícia do iminente assassinato se espalha rapidamente pela cidade, mas ninguém, por motivos diversos, alerta Santiago: uns acham que ele já deveria ter sido avisado, outros que não era problema seu, outros que os irmãos não teriam coragem de cometer um assassinato - havia ainda os que secretamente desejassem o fim da vida de Santiago Nasser. A obra do realismo fantástico brilhantemente narrada por Gabriel Garcia Marquez se assemelha muito à tragédia de Chico Mendes. 

Chico Mendes disse que seria assassinado até o dia 30 de dezembro de 1988. Foi morto oito dias antes, deixando uma lista de acusados, mandantes, cúmplices, que responsabilizava até o presidente da República. Essa lista pouco foi investigada pela justiça, que condenou Darci e Darly Alves, os responsáveis pelo tiro que matou Chico. Os dois hoje são fazendeiros, vivem no Acre e chegaram a comprar terras durante os anos em que fugiram da prisão entre 1993 e 1996. Chico Mendes vive hoje um segundo assassinato, o de apagamento da sua memória. Sua morte, que reverberou em todo o mundo, o colocou em um lugar de eternidade, preservado do desgaste e das vicissitudes do poder que seus aliados que continuaram sua luta viveram. Os governos do Acre e mesmo federal que se seguiram, muitos liderados por ex-companheiros de Chico, realizaram políticas de conciliação que atingiram bons resultados em preservação ambiental, mas nunca foram capazes de reduzir o desmatamento, que cresce desde o assassinato de Chico. Seu legado alcançou de fato a presidência da República na figura de Marina Silva, nascida em um seringal, líder de empates e ministra do meio ambiente de Lula. 

Xapuri conta uma bela história, capaz de narrar caminhos para o futuro, mas precisei de muito esforço para conhecê-la. Gostaria que o caminho tivesse sido mais fácil. Deixei a cidade com um lado frustrado por encontrar uma memória muito apagada sobre a vida de Chico Mendes. No meu último dia, quando deixava a cidade pela manhã rumo à Brasiléia,  lembrei que havia um cemitério na entrada da cidade e que Chico provavelmente estava enterrado lá. Desci do carro na porta do cemitério, e encontrei seu túmulo, apontado para fora do cemitério para que pudesse ser observado por quem passasse na rua. Havia apenas uma placa com fundo preto e letra brancas escrito "Chico Mendes vive!". Tirei uma foto e segui viagem.

Estrada do Pacífico em Xapuri
Estrada do Pacífico

Estrada da Borracha, Xapuri
Estrada da Borracha

Seringueiras no Seringla Cachoeira
Seringueiras plantadas no Seringal Cachoeira

Rio Acre em Xapuri
Rio Acre em Xapuri

Rua de Xapuri

Centro de Xapuri
Calçada de tijolos em Xapuri

Casa de Chico Mendes, Xapuri
Casa de Chico Mendes

Rua em Xapuri

Pousada dos Chapurys
Acervo particular de João Mendes na Pousada dos Chapurys

Túmulo de Chico Mendes, Xapuri
Túmulo de Chico Mendes no cemitério da cidade

Tito Mendes demonstrando a extração de seringa


Brasiléia e Assis Brasil: a vida em duas nações


Segui pela estrada do Pacífico para conhecer o Acre plurinacional, o que faz fronteira com duas nações estrangeiras: Bolívia e Peru. Além do desenvolvimento pela via ambiental e sustentável, o Acre acredita muito na proximidade com essas duas nações como um caminho de desenvolvimento econômico. O isolamento em relação ao Brasil sempre foi tido como um entrave para a economia acreana escoar sua produção. A ligação com o Pacífico foi firmada no início desse século com a construção da BR-317, chamada de Estrada do Pacífico, que após Xapuri passa por Epitaciolândia e Brasiléia, na fronteira com a cidade boliviana de Cobija, e termina em Assis Brasil, na fronteira peruana com Iñapari. Seguindo pelo Peru, a Estrada do Pacífico se divide em duas, uma em direção a Cusco, chegando ao porto de San Juan de Marcona. A outra, em direção ao Sul, atinge dois outros portos peruanos: porto de Matarani e porto de Ilo.

Celebrada, a estrada até hoje ainda não se justificou: oito anos após sua construção, a representatividade de exportações no PIB do Acre cresceu apenas 0,3 pontos percentuais. Além disso, conduzida pela Oderbrecht, a obra gerou uma crise política no Peru por suas irregularidades. Quatro ex-presidentes foram investigados por recebimento de propina da empreiteira, um deles atirou na própria cabeça antes de ser pego pela polícia. Minhas impressões das fronteiras podem estar contaminadas pela pandemia da Covid-19, que gerou uma recessão econômica no Brasil e reduziu muito o trânsito e poder aquisitivo das pessoas, além de provocar o fechamento de fronteiras por mais de um ano. Antes de embarcar para o Acre, uma de minhas preocupações era a possibilidade de atravessar as fronteiras terrestres. Encontrava informações ambíguas, sabia que na Bolívia a travessia estava acontecendo normalmente, mas no Peru estava fechada. Depois, durante a viagem, descobri que a travessia de barco pela fronteira peruana estava acontecendo. Se era oficialmente permitido ou não, não consegui descobrir; não encontrei, contudo, problemas para entrar em nenhum dos dois países fronteiriços. 

Cheguei primeiro a Brasiléia, que se chamou Brasília décadas antes da construção de nossa capital. A cidade tem um centro bonito e arrumado, ornado com palmeiras imperiais. É sobretudo uma cidade interiorana que depende muito da sua vizinha boliviana Cobija, para onde voltei minhas atenções. Ao visitante que chega, recomendo reservar um hotel com antecedência de alguns dias. Dada a proximidade com Rio Branco e os baixos preços da Bolívia, a cidade costuma encher aos fins de semana, apesar de uma estrutura hoteleira ainda pouco desenvolvida. Hospedei-me perto da fronteira e no mesmo dia que cheguei, após um bom almoço na Pousada da Floresta, fiz a travessia a pé na Ponte da Amizade sobre o Rio Acre, entrando na Bolívia. Depois de conhecer o Rio Acre em Rio Branco e Xapuri, conheci o trecho que traça o contorno da fronteira entre Brasil e Bolívia.

Na ponte da Amizade, também chamada de ponte Wilson Pinheiro, seringueiro precursor da causa seringalista nascido em Brasiléia, uma placa indica que você está entrando em Cobija, la perla del Acre. No lado brasileiro, não havia presença militar. No boliviano, havia uma fortificação com soldados trabalhando, mas sem fazerem controle de fronteira. Em ambos os lados havia uma bandeira das duas nações, juntas à bandeira peruana, e na Bolívia, juntava-se a elas a bela e colorida bandeira andina. Em Cobija, rapidamente fui sentindo a sensação de se estar na Bolívia, ora pelo idioma espanhol, pelas repartições públicas, construções em estilo hispânico e, principalmente, pela presença de algumas cholas bolivianas.  

A visita à Cobija diz muito sobre a sofrida história da Bolívia, país mais pobre do continente. Após andar por boa parte do estado do Acre, com inúmeras referências aos heróis da conquista, eu finalmente chegara a um lugar que conta uma versão diferente, a versão de quem perdeu a guerra. A cidade foi fundada pelo general José Manuel Pando Solares, que deu o nome ao estado (Pando) cuja capital é Cobija. Longe do altiplano, é o departamento menos povoado da Bolívia, mas que reinventou sua economia após o ciclo da borracha, criando a maior zona de livre comércio da Bolívia. Sendo uma cidade forjada no meio da Amazônia, cuja existência se justifica por uma política de Estado de povoamento do Acre, a cidade recebeu habitantes diversos e a população cresceu em ritmo muito acelerado com o comércio nos últimos trinta anos. É uma cidade bem urbanizada, com serviços, comércio, restaurantes e universidades (muitas de medicina, que atraem estudantes brasileiros).  

É a Marinha boliviana que cuida da fronteira com o Brasil. É curioso pensar como um país encravado, sem saída para o mar, possui uma marinha. Essa é uma questão central na política externa boliviana. A cidade foi fundada como Puerto Bahía, mas mudou seu nome por confundir navios estrangeiros com a Bahia do Brasil. Seu nome foi alterado para Cobija como uma homenagem ao antigo porto boliviano no Oceano Pacífico, perdido para o Chile na Guerra do Pacífico. A existência de uma marinha reforça como recuperar o acesso a águas marítimas é importante para a Bolívia. Em sua história, a Bolívia perdeu território para todos os países com que faz fronteira à exceção do Peru: Argentina, Paraguai, Chile e Brasil. Sem o Acre, resta à Bolívia celebrar os heróis da Batalha da Bahía, quando o exército de Plácido Castro tentou tomar a cidade para o Brasil, mas o território foi bravamente defendido pela Bolívia. Dessa batalha emergiu a figura de Nicolás Suárez Callaú, um barão da borracha, como um herói nacional boliviano, presente em ao menos três monumentos em Cobija. Ele bancou a guerra com recursos próprios e os soldados eram funcionários de seus empreendimentos.
 
Entrando em Cobija, à medida que observava os contrastes que sempre se evidenciam ao atravessar uma fronteira, ia entrando nas lojas de produtos eletrônicos. O comércio na cidade é muito pulsante, embora esvaziado pelo menor trânsito de pessoas em razão do coronavírus. É possível encontrar aparelhos celulares, diversos acessórios, eletrodomésticos, utensílios de casa por um preço bem mais em conta que no Brasil. Empresários brasileiros hoje preferem empreender na Bolívia pelos incentivos fiscais e muitos brasileiros atravessam a fronteira todo dia para trabalhar. Uma das principais diferenças que notei em relação ao Brasil é na quantidade de motos nas ruas. Elas vão se juntando, seus barulhos somados, que dão uma sensação de caos na cidade. Entrei em uma feira de rua para ver todos os vegetais e cereais maravilhosos da cultura andina, com todas aquelas variedades de milho. Fui caminhando da fronteira até o Parque Piñata, onde fica um belo monumento chamado as "três cabeças", em homagem aos heróis da Batalha da Bahía. É uma caminhada que, em um ritmo de poucas paradas, é feita em trinta minutos. Ali, muitos restaurantes vendem um prato de frango empanado, chamado simplesmente de Pollo, que faz muito sucesso. Àquela altura da viagem meu estômago já sofria com a mudança em minha alimentação e não tive a oportunidade de experimentar. No Parque da Piñata, chamei um mototáxi que me levou de volta para a fronteira com o Brasil. Enquanto passava de moto por aquelas ruas, com o vento de ares novos tocando o meu rosto, estava com vontade de seguir para dentro da Bolívia. Eu estava muito feliz com aquele dia de passeio por um novo país.

Depois de Brasiléia segui para Assis Brasil. Mais distante, mais isolada, consegue ser bem mais pacata que a já pequena Brasiléia. A cidade recebeu o nome do embaixador Assis Brasil, importante nas questões diplomáticas envolvendo o Acre. A passagem seria mais curta, de apenas um dia, suficiente para conhecer o lugar. A cidade tinha uma pequena rua principal com apenas um hotel. Fui atendido por um homem bêbado e sem camisa e resolvi ir conhecer um segundo hotel, mais distante, em uma comunidade. Cheguei ao Hotel Bela Vista e conheci mais um incrível personagem do Acre. O Sr. Arquimedes ganhava 5 reais por dia na extração de seringa e resolveu erguer, a próprio punho, o melhor hotel da cidade, com uma capacidade inventiva que justifica o nome de seu xará de Siracusa. Como "melhor hotel da cidade", entenda um lugar simples, mas limpo e com um atendimento muito bom do Sr. Arquimedes, que também toca um mercadinho ao lado do hotel com seu filho.

Fui direto para a fronteira com o Peru. Na verdade, Assis Brasil é uma cidade de tríplice fronteira com a Bolívia e o Peru. No entanto, não existe muito povoamento no lado boliviano da fronteira. O Rio Acre deixa de separar o Brasil da Bolívia e passa a separar o Brasil do Peru. Um pequeno rio chamado Yarebija traça a fronteira entre Peru e Bolívia, completando a fronteira triangular. A travessia entre Brasil e Peru pode ser feita de carro pela Ponte da Integração, que, contudo, estava fechada como medida de proteção contra o coronavírus. Menos de um mês antes de minha chegada, havia tido um protesto em favor da abertura da fronteira. Somente caminhões podiam passar ali, a maioria dos que vi eram peruanos ou até bolivianos. Pedestres podiam atravessar a fronteira a barco, e fui atrás do ponto de travessia. Estacionei o carro e passei a pé por uma pequena estrada de terra que chegava até a margem do Rio Acre. O fluxo de pessoas era grande, e saia um barco atrás do outro tão logo atingisse sua capacidade máxima. Pessoas passavam com malas e cheguei a ver um homem levando uma moto nas pequenas embarcações. A travessia custava 5 reais por pessoa. 

O fluxo de pessoas na fronteira parecia muito desordenado, organizado por um pequeno conglomerado de barqueiros. Nos dois lados da fronteira, taxistas - que no Peru também utilizavam tuk-tuks - aguardavam passageiros. A fronteira entre Brasil e Bolívia era totalmente desguarnecida de vigilância: crianças nadavam no Rio Acre e sem muito esforço, no nível das águas do mês de novembro, facilmente atravessariam a fronteira a nado. Fui navegando até Iñapari, dobrando a esquina entre os rios Acre e Yaberija. Chegando lá tomei um táxi até um ótimo restaurante peruano, onde pude comer um verdadeiro ceviche com lomo saltado e Inka Cola. Na saída do restaurante, quis andar até a Plaza de Armas, típica de qualquer cidade peruana que se preze. Errei o caminho e só fui notar que eu caminhava na direção errada quando atravessei a aduana peruana (sem que me pedissem nenhum documento). Voltei para corrigir o caminho e encontrei um cão pelado peruano, raça exótica do país, descansando sobre uma sombra na calçada, antes de chegar à Plaza de Armas. Até então, caminhava por uma rodovia, que fazia as vezes de avenida central de Iñapari, e o núcleo urbano da cidade era bem pequeno. O sol estava muito forte e eu não havia me preparado adequadamente para ele. A carequinha que cada vez mais se abre em minha cabeça com os efeitos implacáveis do tempo estava ardendo com o sol. A população se retirou à sombra e não tinha muito o que ver nas ruas. Fotografei a Plaza de Armas e tirei foto em um letreiro com o logo do Peru (o nome do país escrito com uma fonte estilizada, em que a letra P é composta por um espiral que evoca as linhas de Nazca). 

Em uma das esquinas da praça ficava uma pequena rodoviária, onde se podia tomar uma vã para cidades peruanas como Puerto Maldonado e Cusco, porta para as maravilhas peruanas, de um modo bem acessível. Não me informei, mas a julgar pela quantidade de vãs as saídas pareciam frequentes. Fica a dica para os que puderem combinar uma viagem ao Acre com uma visita ao sul do Peru. Para voltar ao pequeno barco e retornar ao Brasil, peguei um tuk-tuk para me divertir com esse meio de transporte alternativo que não encontramos no Brasil. No pequeno trecho de estrada de terra até a margem do rio, o veículo chacoalhava tanto que me provocou um moderado enjoo depois de ter me esbaldado com comida peruana e ter tomado muito sol na cabeça.

Centro de Brasiléia

Fronteira entre Brasil e Bolívia em Brasileia/Cobija
Fronteira entre Brasil e Bolívia em Brasiléia/Cobija

Rua em Cobija próxima à ponte da Amizade

Comércio de rua em Cobija

Monumento aos heróis da batalha da Bahía, Cobija
Monumento aos heróis da Batalha da Bahía

Fronteira Brasil Peru Assis Brasil
Barcos para atravessar a fronteira com o Peru em Assis Brasil

Chegada em Iñapari, no Peru

Plaza de Armas Iñapari Peru
Plaza de Armas de Iñapari

Ponte da Integração Brasil-Peru


Reservas Extrativistas: como um sonho de Chico Mendes virou realidade


Fechei a viagem em um lugar muito especial, a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Deixar a visita à reserva para o final não era o meu planejamento ideal para a viagem, mas fiquei feliz em poder conhecê-la depois de uma imersão tão profunda na história e cultura do Acre. Reservas extrativistas são um dos grandes legados de Chico Mendes, que propôs sua criação como uma espécie de reforma agrária amazônica durante o I Encontro Nacional de Seringueiros na Universidade de Brasília, em 1985. O modelo foi inspirado nas reservas indígenas, onde as terras são da União e o usufruto das comunidades. 

Meu interesse na Resex Chico Mendes surgiu cerca de um ano antes de minha viagem, quando li em algum lugar que uma tal trilha Chico Mendes havia sido eleita uma das mais interessantes do mundo. Como mais um sinal do apagamento de memória pelo qual o legado de Chico Mendes passa, a trilha, administrada pelo ICMBio, ficou sem receber visitas e sem cuidados básicos durante a pandemia, sendo tomada pela floresta em quase sua totalidade, de modo que se tornou impossível caminhar pelos seus 90 km. Na época de minha visita, fui informado de que o plano de retomada já estava sendo traçado, no entanto ficaria para depois da estação das chuvas. A trilha é uma iniciativa de ecoturismo coordenada com as comunidades: com duração prevista de cinco dias, cada noite é passada com uma diferente família dentro da reserva. Um guia local, tradicional habitante da reserva, a cada dia te acompanha até a família seguinte. Durante a pandemia, parece que muitas famílias perderam o interesse em receber caminhantes. Todavia, consegui o contato de Leila, filha do Seu Dimas, que vive na Resex e seu ponto era onde os caminhantes ficavam no primeiro dia de trilha. Muito simpática, ela organizou um pernoite para mim na Resex.

Eu estava em contato com a Leila por telefone, e ela me explicou como chegar até a pousada do Dimas. Disse em qual quilometragem da BR-317 eu deveria sair e quantos quilômetros em estrada de terra eu deveria percorrer a partir dali. A quilometragem marcada na BR, contudo, utilizava um sistema de contagem diferente do que me havia dito Leila. Também não havia sinalização precisa na estrada com algum ponto de referência. O ponto da Resex para onde eu ia ficava entre Assis Brasil e Brasiléia, e eu já estava em trajeto de retorno a Rio Branco; já havia passado por ali. Na ida eu notei como as placas indicando o caminho da trilha Chico Mendes estavam apagadas, quase ilegíveis, mas davam uma noção para onde eu precisava ir. Eu não tinha o ponto da pousada no mapa, mas não foi difícil encontrá-la. Bastou parar em uma pequena lanchonete na estrada, que sabiam me dizer exatamente para onde eu precisava ir. Seu Dimas é conhecido em um raio bem grande em relação a sua pousada. 

Logo quando cheguei, conheci Seu Dimas e sua esposa Maria. Seu Dimas entende bem a importância de uma Resex e faz questão que todos a conheçam. Ali é sua casa e de onde ele tira o seu sustento, pelo extrativismo ou pelo turismo. Ele já presidiu a Resex e anda com um livreto com o plano de utilização, que ele faz questão de que todos conheçam. Na pousada do Dimas, finalmente encontrei o que buscava, textos e mais textos sobre Chico Mendes. Eu viajei com o excelente livro de Zuenir Ventura, Crime e  Castigo, de jornalismo literário, que conta a história de Chico Mendes em três momentos: os dias seguintes ao seu assassinato, o julgamento de seus assassinos, e o seu legado quinze anos depois. Ele se tornou toda a minha base de conhecimento sobre Chico Mendes durante a viagem até ali, onde encontrei novos textos de museus, universidades e revistas.

Ambientalista e palestrante, Dimas sabe tudo sobre a Resex e sobre a natureza amazônica. Grande contador de histórias, a que mais gostei e aqui reproduzo é de quando ele recebeu seu diploma de técnico florestal, mesmo sem estudo formal: em um encontro com técnicos do ICMBio, acontecia uma discussão sobre a idade de uma árvore. Ele, após uma rápida observação no caule, afirmou com segurança a sua idade. Quando os técnicos buscaram nos documentos a datação da árvore, ficaram impressionados: Seu Dimas havia acertado com precisão. Assim, os técnicos o julgaram qualificado para receber a honraria de um diploma. 

O conhecimento de Seu Dimas realmente impressiona. Saí para duas caminhadas com ele pela Resex. Para onde ele olhava, mostrava conhecimentos muito específicos para plantas e seus usos, que daria um livro. Eram muitos nomes de árvores e eu não fiz anotações. Não conseguirei documentar muito de seu conhecimento, mas gravei nomes relacionados a duas experiências memoráveis. A primeira foram os ovos de jatobá. Caminhando pela floresta, ouvimos de repente uma movimentação de um animal que parecia grande. Era uma mãe jatobá, ave da região. Ela estava chocando seus ovos, quase prontos para nascer, e se assustou com a nossa presença, deixando sua prole indefesa próxima à trilha. Os ovos que ela chocava eram azuis, uma cor que destoava do marrom e verde da terra, troncos e plantas. Mais a frente, Seu Dimas demonstrou a extração de um óleo vegetal com propriedades, segundo ele, de curar os rins. Ele criava uma espécie de torneira que se conectava às veias da árvore, acoplada em uma garrafinha de plástico. Em cerca de dois dias, a garrafa ficava cheia e ele vinha coletar, deixando uma garrafa vazia em seu lugar. Chegando em sua casa, sentamos na mesa, feita com madeira de árvore que caiu naturalmente, assim como todos os seus móveis. Ele mostrou alguns óleos naturais de extração e eu, que após quinze dias de viagem sofria com uma diarreia, perguntei se havia algum que curasse o estômago. Seu Dimas me ofereceu vinho de jatobá (não é minha memória pregando peça, tem o jatobá pássaro e o jatobá árvore), que eu tomei a princípio um pouco desconfiado. Tinha um gosto forte, um tanto amargo, como um remédio, que de algum modo me remetia ao sabor de terra. Tomei o vinho - o nome provavelmente vem da cor avermelhada do líquido - e minha diarreia passou. Mais tarde, na janta, repeti a dose.

Caminhar na Amazônia tem seus desafios. As árvores altas fazem pouca luz chegar ao solo, dando uma tonalidade obscura à paisagem. A vegetação densa depois de um tempo deixa a vista um pouco cansada. Pessoas como eu, diferentemente de Dimas, leigos nas faculdades das plantas e do bioma amazônico, que não fazem distinção entre espécies, sentem-se perdidos e começam a achar tudo muito igual. O calor é forte, a umidade intensifica essa sensação. Começamos a suar muito e o suor demora a evaporar. Havia troncos caídos na trilha. Seu Dimas contava com certa indignação as recomendações dos funcionários do ICMBio que faziam treinamentos de ecoturismo para a população da Resex. Não era recomendado remover obstáculos naturais do caminho, pois os turistas gostam. Enquanto subia nos troncos para ultrapassar as árvores, Seu Dimas se desculpava, tal como um anfitrião que pede desculpas às visitas pela bagunça em sua casa.

Tamanha simbiose com a natureza fez a família de Seu Dimas construir um belo lar integrado ao meio ambiente. Ele construiu um açude, e o repouso dos visitantes são estruturas de madeira nas beiradas. Dormimos em rede olhando toda aquela natureza exuberante. Patos nadam ali, e vez ou outra fazem uns barulhos que dão um leve susto, quebrando o silêncio da floresta. Ele planta muitas variedades de sementes, utilizando o fruto da castanheira como vaso. Havia criação de galinhas também e pequenas oficinas para fazer farinha, por exemplo, ou para tratar o látex extraído pelas seringueiras. Nesse último caso, Seu Dimas mostrou moldes que usa para fazer sapatos e pequenas carteiras impermeáveis. Hoje, no entanto, a extração de látex está longe de ser sua atividade principal, e a oficina funciona mais como uma peça de museu a céu aberto. Vive do roçado de subsistência, recebe auxílio e aposentadoria do governo e complementa bem a sua renda com o turismo. Seu Dimas mostrava onde ficavam os limites da reserva e de seu território. Onde não era reserva, havia criação de gado. 

Como já sabia Chico Mendes, a existência de uma reserva, seja ambiental, como no caso da Serra do Divisor, extrativista, como a Chico Mendes ou indígena, como a Katukina, é o que impede o avanço do desmatamento. Quando encontrava momentos sozinho na Resex, me debruçava nas leituras sobre reservas extrativistas e sobre Chico Mendes. Alguns termos que eu ouvi muito no Acre começaram a fazer sentido quando comecei a ler o plano de utilização da reserva, sobretudo no que se refere à estrutura social e espacial de um seringal. Um seringal é composto por várias colocações. O nome correto do lugar onde Seu Dimas vive é colocação. Estradas que conectam diferentes colocações são chamadas de varadouro. Um ramal é uma estrada que vai para o exterior da reserva. Internamente no seringal, existem as estradas de seringa, com aproximadamente 150 árvores seringueiras cada uma. O plano de utilização da Resex Chico Mendes é bem preciso quanto à organização espacial. Cada família só pode ter uma colocação. Uma colocação tem no mínimo 200 hectares e duas estradas de seringa. Cada estrada deve ter no mínimo 100 árvores de seringa. É responsabilidade do extrativista zelar por suas estradas. Por ser de domínio público e ter seu uso concedido, é proibido o loteamento e venda de colocações. É também proibido derrubar seringueiras e castanheiras. Mesmo o modo como a seringueira é cortada para extração do látex é determinado no plano. O sistema de corte deve ser pela banda ou pelo terço. A madeira pode ser extraída para uso próprio e no interior da unidade para construção de barcos, móveis e instrumentos de trabalho, podendo ser comercializada apenas com um Plano de Manejo Florestal Sustentável. Além das atividades extrativistas, o morador pode realizar atividades complementares como agricultura, criação de pequenos animais e peixes, desde que não ocupem mais de 10% de seu território ou mais de 30 hectares. A criação de gado segue regras mais rigorosas, não podendo ocupar mais de 50% da área destinada às atividades complementares

A reserva extrativista mostra como Chico Mendes não ofereceu apenas ideias, mas soluções práticas para promover a sustentabilidade. A preservação da floresta depende muito do que Chico chamou de povos da floresta, aqueles que conseguem viver nela sem destruí-la. A ideia de reserva extrativista se proliferou pelo Brasil, existem hoje 96 unidades em todas as regiões, mais da metade na Amazônia, protegendo 5,8% do território. Para além da biografia de Chico que explorei em Xapuri, conheci melhor quais eram as encantadoras ideias do homem político, que se candidatou a deputado e prefeito e atuou na fundação de um partido político. Chico Mendes ganhou projeção política após o assassinato de Wilson Pinheiro em 1980, quando continua a luta seringalista como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Xapuri, cargo que assumiu até o fim de sua vida. Sem escolas nos seringais, foi alfabetizado aos 19 anos pelo militante comunista que havia deixado a Coluna Prestes e fixou residência em Xapuri, Euclides Távora. Sabendo do poder da educação, criou o Projeto Seringueiro e fundou a primeira escola em um seringal, que fica na área da Resex. O projeto guiou a política educacional no Acre nos anos 1990. No início, o público das escolas eram adultos, alfabetizados com a metodologia introduzida por Paulo Freire de palavra geradora. 

Extrativistas e indígenas não sentavam à mesma mesa antes da liderança de Chico Mendes. Quando os seringueiros começaram a povoar o Acre, como em qualquer experiência colonizadora no Brasil, os índios que viviam em territórios cobiçados pelos novos habitantes eram expulsos ou dizimados, caso oferecessem resistência, em eventos chamados de "correrias". Foi quando Chico Mendes e Ailton Krenak criaram a Aliança dos Povos da Floresta que extrativistas e indígenas se viram unidos por uma causa comum: resistir à política "integrar para não entregar" da ditadura militar, que estimulava a vinda de fazendeiros para a Amazônia. As forças foram se balanceando, principalmente quando a antropóloga Mary Allegretti, que desenvolvia sua tese no Acre, conheceu Chico Mendes e abriu suas portas no exterior. Chico denunciou na ONU o que acontecia no Brasil, ganhou diversos prêmios e um lugar na história. 

A luta iniciada por Wilson Pinheiro e amplificada por Chico Mendes ecoa em muitas outras figuras. Longe de estarmos vencendo, novos mártires nascem ano após ano. Segundo uma publicação que li na Resex, organizada pelo Sindicato dos Professores do DF e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, dados da Comissão Pastoral da Terra mostram que entre 1985 e 2017 houve 1904 casos de morte por conflitos no campo, apenas 8% julgados. Massacres ainda ocorrem a todo momento, mas felizmente existem muitas vozes ativas na luta. Chico mostrou, com exemplo e liderança, um caminho possível. Para além disso, trouxe para o grande público uma ideia que inspira a luta e a preservação do meio ambiente por meio da ação política. 









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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Um guia de viagem pelo Acre (1/2)

"Tenho esperança de continuar vivo. É vivo que a gente fortalece essa luta."
Chico Mendes

"Na Serra do Divisor tem o impressionante Moa, uma espécie de grande rio Paraná que desce para o Javari, desemboca no Solimões e, junto com águas que vêm da Colômbia, também alcança a Bacia Amazônica. Mais para cima de Cruzeiro do Sul, no médio Juruá, fica o território dos parentes Ashaninka. Uma vez subi com eles até a cabeceira do rio arrastando uma canoa, pois as águas estavam muito baixas, e tive a surpresa de encontrar lá em cima, no finzinho do Brasil, um quase igarapé com o nome de Tejo, e não pude deixar de pensar em Fernando Pessoa, que também cantou seu rio."

Ailton Krenak em Futuro ancestral 


Eu já estava quase no fim de minha viagem de 15 dias pelo Acre quando cheguei à Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Lá fui recebido pelo Seu Dimas, figura conhecida no Acre, que já presidiu a reserva e se auto denomina ambientalista. Ele, constantemente convidado para palestras, debates e para assumir cargos públicos, carrega com muito orgulho o plano de utilização da reserva, um livretinho com 76 artigos que, segundo ele, todo morador da reserva deve saber de cor. Eu já havia concluído a leitura dos livros que trouxe para essa viagem e recebi de muito bom grado todas as leituras sobre a reserva que Seu Dimas mantinha em uma mini biblioteca. Lá no artigo 62 do livreto, com a palavra divulgado grifada, estava escrito:

"Por ser um guia da Reserva Extrativista Chico Mendes, o Plano de Utilização deve ser amplamente divulgado entre todos os moradores para que seja conhecido em todos os seringais da reserva."

Inspirado pelo desejo de Seu Dimas de ampla divulgação da Resex, eu assumi um compromisso de ajudar a divulgar na internet não somente a reserva e seu plano de utilização, mas todo o estado do Acre, dada a dificuldade que encontrei ao organizar a minha viagem, e a ajuda essencial que recebi de blogs na rede. Diferentemente de muitos de meus textos, optei por escrever em formato de guia, dividido em duas partes, com algumas dicas úteis de viagem. A primeira parte contempla minha passagem por Cruzeiro do Sul, Serra do Divisor e Rio Branco. A segunda, Xapuri, Brasiléia, Assis Brasil e a Resex Chico Mendes. A seguir deixo a primeira parte de meu relato e, ao fim do texto, alguns contatos que tornaram minha experiência no Acre a melhor possível.

De Rio Branco para Cruzeiro do Sul: a dinâmica de uma estrada amazônica


A Amazônia não aceita bem a ideia de ser rasgada por uma rodovia. A chuva, a cada inverno amazônico, abre buracos no asfalto e torna o solo frágil. As enchentes deixam a pista intransitável. Floresta precisa ser cortada, comunidades indígenas e extrativistas são ameaçadas. Fazendas se formam às margens da rodovia, caminhos transversais vão se abrindo floresta adentro. As facilidades de uma estrada costumam ser um convite ao mau uso da floresta, seja por atividade garimpeira, madeireira ou pecuária. 

Por outro lado, os rios da bacia hidrográfica do Amazonas oferecem uma grande e complexa rede de estradas naturais. Como prisioneiros da geografia que somos, foram esses rios - o Purus e Juruá, que se conectam ao Solimões, e o Acre - que favoreceram o rápido povoamento da região por brasileiros vindos do Nordeste após a grande seca de 1877, época em que o território ainda pertencia à Bolívia. Era mais fácil habitar o Acre a partir do Brasil do que pela Bolívia. Pegar estrada na Amazônia não soa natural, e comecei minha viagem pelo Acre com essa experiência não óbvia.

Existem duas empresas de ônibus que realizam o trajeto entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade acreana, na região mais ocidental do Brasil: a Trans Acreana e a Petroacre, com saídas diárias de ambas cidades às 7h e às 19h. Eu peguei o ônibus da manhã logo no dia seguinte à minha chegada via aeroporto de Rio Branco. Queria poder assistir à estrada como assisto à televisão. Reservei um assento na primeira fileira (para minha sorte, pois as janelas laterais estavam cobertas com telas de publicidade) e sentei para contemplar os cerca de 640 quilômetros a serem percorridos em mais de 12h de viagem. 

A BR-364, em seu segmento acreano, liga a capital a Cruzeiro do Sul e conecta o Acre ao restante do Brasil via Porto Velho. Obra dos governos militares da década de 70, sua construção foi uma continuação do projeto rodoviário de JK e se iniciou a partir de um antigo sonho de se ligar o Brasil ao Oceano Pacífico. Esse sonho acabaria sendo concretizado por uma outra estrada acreana, a BR-317, por meio da passagem para o Peru em Assis Brasil. A completa pavimentação da BR-364, contudo, só foi concluída em 2011. Antes disso, só era possível viajar em automóveis durante o verão amazônico, que vai de julho a dezembro e se caracteriza por um período de menos chuva. 

Eu esperava uma viagem mais emocionante. Estava com os olhos atentos e câmera ligada, pensando nas inúmeras fotos incríveis que eu poderia tirar. Imaginava passar por florestas com pouca interferência humana, ver a vida em regiões isoladas, quem sabe eu não passaria por algum animal grande ou alguma aldeia indígena. Achava até que talvez a estrada pudesse ser interditada por chuva, ou que o ônibus atolasse e eu precisasse descer para ajudar a empurrá-lo. Em um dado momento, pensei ter visto um queixada tomando água em um açude, mas poderia muito bem ser uma vaca. Enquanto havia luz do dia, o que vi foi fazenda atrás de fazenda. Não restava dúvida: estrada e desmatamento caminham juntos. 

O que teve de emoção no trajeto foi andar de ônibus em uma estrada com buracos suficientes para encher Albert Hall. O meu cinto de segurança estava frouxo, e havia momentos que eu saltava a uma boa altura de meu assento com os solavancos. O pior trecho foi entre Senador Madureira e Feijó, mais perto de Rio Branco do que Cruzeiro do Sul, por ter sido asfaltado há mais tempo, eu suponho. O ônibus fez uma parada para almoço em Feijó e depois seguiu para Tarauacá, onde eu encontrei a primeira paisagem que verdadeiramente me encantou na viagem. Era um conjunto de casinhas de madeira, típica habitação dos seringueiros, que se alinhavam ao longo de uma colina até se perderem de vista.

A casa do seringueiro é muito simples, até rústica, mas tem a beleza de nos resgatar uma memória lúdica da infância, em que somos apresentados à representação do lar como um quadradinho com um triângulo em cima. Esse tipo de habitação, presente em todo o estado, nada mudou desde a colonização do Acre pelos nordestinos, que incorporaram elementos da oca indígena, misturando-a com as casas de seu local de origem. Nesse modelo de arquitetura vernácula, de arte popular, as casas são construídas com madeira e palha extraídas da floresta. Possuem ambiente aberto para ventilação, muitas vezes com varandas, as paredes não tocam o teto e o piso tem nível elevado do assoalho para proteção contra animais e enchentes. A casa fica nas proximidades da mata e não agride a natureza, pelo contrário, se integra a ela, a partir do aproveitamento de matéria-prima extraída dos recursos naturais oferecidos pelo seu  habitat. 

Eu cheguei a cochilar por um breve momento após o almoço, mas logo acordei com o chacoalhar do ônibus passando pelos buracos. Muitos passageiros vão entrando no ônibus no caminho. Quando não há mais assentos disponíveis, eles viajam de pé. A noite caiu, e com ela chegaram as 12h que a viagem deveria durar. Tive uma breve conversa com uma passageira que explicou que após passar pela "terra dos índios", chegaríamos a Cruzeiro do Sul. Depois fui entender que a estrada atravessa uma área de reserva indígena, dos índios Katukina. Estava de noite, mas consegui, depois de andar quase 600 km, avistar pela primeira vez árvores altas e uma floresta densa, como imaginei ser pela maior parte do caminho. Em toda a rodovia, a floresta só permaneceu de pé na reserva indígena.

Na volta, após a estadia de cinco dias na Serra do Divisor, optei por voltar no ônibus noturno. A madrugada ainda me guardava uma última aventura em Feijó, quando o ônibus foi parado pela polícia, que levou um passageiro preso. A viagem atrasou bastante e ainda tive uma longa manhã na estrada. Com o dia claro, após parada para o café da manhã, sentei-me no banco da frente do ônibus ao lado de uma senhora e começamos a conversar. Ela estava indo visitar um filho em Porto Velho, e contava o quanto era difícil fazer essa viagem antes da construção da rodovia. Era necessário pegar um avião, com custo pouco acessível para muitas famílias, ou depender do tráfego de balsas até Manaus, para então pegar um ônibus; uma viagem longuíssima. Além disso, sem a estrada, as trocas comerciais com outras regiões ficavam muito limitadas e a cidade sofria com problemas básicos de abastecimento, sobretudo de alimentos perecíveis. 

Pensei nas dificuldades de se morar em uma cidade completamente isolada e passei a dar valor a essa estrada por todas as novas possibilidades de integração com o Brasil que ela ofereceu. Cidades acreanas como Porto Walter e Marechal Thamauturgo ainda são acessíveis somente por rios. A questão que a humanidade ainda não conseguiu resolver estava, enfim, posta: como promover, hoje, um desenvolvimento humano sustentável sem agredir o meio ambiente e melhorando a vida das pessoas em larga escala? O Acre já foi o centro mundial desse debate e, como eu veria mais tarde durante minha viagem, ofereceu ótimas respostas. 




Serra do Divisor: estrangeiros em terra brasileira


Se a BR-364 (ainda) não alcançou o Pacífico, devemos isso ao Parque Nacional da Serra do Divisor. A Serra do Moa, como também é chamada, é um divisor de águas entre as bacias do Rio Juruá (Brasil) e Ucayali (Peru) e delimita uma das fronteiras do Brasil. Quando alguém sonha com a Amazônia, imagino que o cenário seja parecido com o da Serra do Divisor. O Rio Moa, de águas barrentas, é repleto de curvas que serpenteiam a floresta. Ele é estreito; durante a navegação estamos sempre perto das margens, preenchidas com árvores mais altas que prédios de muito andares. A sensação é a de estar no seio da floresta. A existência da serra permite algumas experiências raras na Amazônia, como enxergar montanhas recobertas por nevoeiro, ver do alto a imensa vastidão de árvores que se estendem até onde os olhos podem alcançar, ou, ainda, tomar banho em cachoeiras que se formam dentro da mata. Ali vivem comunidades indígenas, ribeirinhas e seringueiras, e podemos observá-los realizando suas atividades nas margens do rio.  

Por ser uma região isolada e de proteção, a Serra do Divisor é um dos poucos exemplares de Amazônia praticamente intocada que podemos visitar sem muitas dificuldades. É considerada a área com a maior biodiversidade do mundo, pela variação de altitude e proximidade com a Cordilheira dos Andes. Para ir até lá, depois de chegar à remota Cruzeiro do Sul, é necessário percorrer mais 40 km de estrada até Mâncio Lima, a cidade que vê o último pôr do sol no Brasil e que é a mais distante em linha reta de Brasília. Em Mâncio Lima acessamos um pequeno porto no Rio Moa, de onde começamos uma longa jornada de quase 200 km rio adentro, a ser percorrida em cerca de 8h. Tem um pequeno número de pousadas se formando dentro do parque, mas a mais antiga é a Pousada do Miro, onde me hospedei por cinco dias. Antes de ir para lá, eu não sabia exatamente para qual ponto do mapa eu iria. Liguei meu GPS para traçar o caminho e fiquei surpreso com a localização que eu atingira. Era o extremo noroeste do Acre, próximo ao local onde os estados do Acre e Amazonas encontram o Peru. Se o leitor tiver curiosidade, as coordenadas são -7.45, -73.66.

A viagem de barco é de contemplação, por causa e apesar do som do motor do barco. A embarcação para realizar a viagem é pequena, comporta de duas a oito pessoas, e é movida por uma rabeta muito barulhenta, que nos impede de ouvir o som da natureza ou de manter uma conversa com o barqueiro ou outros passageiros. Sentamo-nos no mesmo nível das águas, perto dos seres aquáticos ou insetos nadadores, enquanto apreciamos a beleza da mata preservada, a calmaria no rio e lidamos com nossos próprios pensamentos. Tirar um cochilo pode ser perigoso pelo risco de cair no rio. O barco tem bancos acolchoados, com encosto reclinável para as costas e um toldo que o recobre por cima. O barqueiro senta-se à popa e conduz o barco olhando o horizonte, em sintonia com o ritmo do rio, desviando e eventualmente esbarrando em troncos de árvore que parecem ter o poder de virar a embarcação. Acho que, por mimetismo, o barqueiro passa a se parecer com o rio. Um deles, em uma fala que poderia ser de Heráclito, disse que sua vida é o rio, pois o rio nunca é o mesmo do dia anterior. 

Não é todo o percurso do Moa que faz parte da reserva. Até a pousada do Miro, passamos por trechos de seringal, reserva indígena e comunidades ribeirinhas, uma síntese das forças humanas que hoje habitam a floresta. Também há fazendas; muitas famílias tradicionalmente extrativistas, hoje, por pressão financeira, também aderiram à pecuária. Algumas placas no caminho indicam quando começa uma reserva indígena, cuja entrada precisa ser autorizada pela Funai, e quando começa o parque. Existe um posto avançado do exército brasileiro, onde todo visitante precisa se identificar e responder algumas perguntas básicas antes de entrar no parque. No meu caso, perguntaram se eu levava algo além de roupas. Como parque nacional, algumas regras precisam ser seguidas, como a proibição do transporte e comercialização de bebidas alcóolicas em seu interior - embora um dos viajantes que encontrei em minha hospedagem tenha trazido uma pinga que agitou uma festinha na pousada. 

Cheguei à Pousada do Miro, onde a vivência com sua família e agregados compete em interesse com as belezas da serra. Pergunte ao Miro sobre sua chegada à região e sobre a criação da pousada e se delicie com a história. Na época de criação da reserva, já havia famílias ali estabelecidas. Após tratativas, em que foram oferecidos terrenos na área urbana de Mâncio Lima para que essas famílias deixassem o parque, acordou-se que quem já estava ali antes da demarcação, ali poderia permanecer. Os habitantes vivem basicamente da agricultura e caça de subsistência, extrativismo e, mais recentemente, de turismo, atividades que exemplificam o uso sustentável da floresta. Algumas famílias ainda levam produtos como banana ou farinha de mandioca - a farinha dessa região, conhecida Brasil afora como "farinha de Cruzeiro", é tida como a melhor do país - para serem vendidas na cidade. Quem morou na cidade voltou para a floresta: um barqueiro disse que não fazia sentido pagar pela sua comida na cidade, se ele tem tudo o que precisa à disposição na floresta sem custos. Na maioria dos casos, a cidade oferece algum subemprego a salário de miséria, como no caso de Eva, cozinheira de mãos cheias da pousada e sogra de Miro, que teria como alternativa receber 200 reais mensais como babá na cidade.

É incrível como há pessoas vivendo nessa região. O Miro tem um vizinho de pousada na outra margem do rio. Depois, seguindo o curso do rio a montante, não há mais brasileiros ali. Atingimos, literalmente, um dos finais do Brasil. Dali para frente, o rio começa a afunilar e se tornar mais caudaloso, até que se chega à nascente, sem conexão com rios das bacias peruanas. Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, esteve na região do Acre em 1904 para chefiar uma missão do estado de reconhecimento das fronteiras nacionais. Chamando o homem, ali, de um intruso impertinente, viu os habitantes da Amazônia como estrangeiros em terra brasileira, resultado do que chamou de seleção telúrica, na qual a terra seleciona seus habitantes; a terra abandonou o homem no semiárido nordestino e o aceitou na Amazônia, dada sua bravura em amansar um território selvagem e desconhecido. Os habitantes da serra são os descendentes desses homens, netos de sertanejos e indígenas. A região recebeu alguns avanços recentes: há não muito tempo, fazia-se a travessia do Moa à remo e não havia energia elétrica. Sem cabos de transmissão, a energia hoje é gerada por painéis solares durante o dia e por um gerador movida à gasolina durante a noite. Existe um orelhão no parque, que os moradores podem usar, e as casas costumam ter uma televisão, único dispositivo que permite o contato com o mundo exterior. Internet não há. Muito do modo de vida dos pioneiros se mantém até hoje.

Para passeios no parque, usamos uma pequena embarcação e somos acompanhados por um barqueiro nativo da região. Debil, o barqueiro que me acompanhou, é um daqueles sujeitos que tem a velha inteligência, perdida por nós que vivemos o grande salto tecnológico, de saber como funcionam as coisas e o mundo ao seu redor. Ele coletou a madeira que utiliza em sua embarcação e acompanhou a sua construção. Conhece bem o motor, parecendo ser capaz de desmontá-lo até a última peça para então remontá-lo. Quando o motor deu uma engasgada, perguntei como fazia para levar a um mecânico. "O mecânico é nós mesmo", ele disse. Caçador de subsistência, autorizado e regularizado, conhece todo o processo pelo qual sua comida passa até chegar à mesa. Ele abate o animal, corta, transporta e prepara a carne para comer. Eu, em diversos momentos perguntava sobre suas histórias com onças, tamanho o fascínio que tenho pelo animal. Em suas caçadas, ele passa horas a fio em mata fechada e se localiza apenas com uma bússola. Disse ser capaz de entrar na floresta e voltar exatamente ao seu ponto de partida, qualquer que seja. Onde eu vejo apenas terra e mato, ele vê uma multiplicidade de espécies de plantas e consegue usá-las para se situar no espaço. Para a trilha da cachoeira da formosa, de 15 km, ele se aprumou como se estivesse indo para uma caçada, carregando uma carabina às costas. Na volta da trilha, já muito cansados, ouvimos o barulho de um animal grande se movendo. Ele sabia que se tratava de um veado e eu pude ver como sua fisionomia muda quando ele está na iminência de atacar uma presa, tal qual um felino com os pelos eriçados. O veado escapou sentindo a presença humana. Pouco tempo depois, me assustei com a presença de uma cobra na trilha. Ele perguntou se eu queria que a matasse. A cobra não era venenosa e não oferecia perigo. Seguimos adiante.

A Serra do Divisor acalenta ainda mais as discussões sobre o uso que nós fazemos da terra. Na década de 1930, o então Conselho Nacional do Petróleo perfurou um poço de exploração no território que hoje é o parque. A perfuração atingiu um lençol freático e a água jorra permanentemente do interior da terra deste então. O poço não foi fechado e nós podemos adentrar nele, repousando nosso corpo sobre as águas, que chegam mornas à superfície e oferecem uma experiência inusitada de relaxamento. A bacia do Acre, pouco conhecida no Brasil, possui rochas análogas produzindo hidrocarbonetos em bacias peruanas e bolivianas, como Marañón, Ucayali e Madre de Dios. A bacia é a única no Brasil que experimentou os esforços compressivos das orogenias andinas, possibilitando a existência de grandes estruturas capazes de reter petróleo. No entanto, a pouca existência de dados ainda não permitiu identificar rochas geradoras de petróleo, havendo ainda uma lacuna a ser preenchida sobre a possibilidade de se produzir petróleo no estado.










Rio Branco: memórias da conquista do Acre


Dificilmente você, leitor, chegará ao Acre sem ser por Rio Branco. A cidade é a que recebe voos de outras cidades do Brasil e é onde todos os caminhos do Acre se encontram. Explicamos a cidade a partir do Rio Acre que, segundo Zuenir Ventura, é tão preguiçoso que não faz questão nem de mostrar para qual sentido está fluindo. O centro da cidade é divido pelo rio, as duas margens conectadas por pontes de ares modernos que tentam afirmar Rio Branco como uma cidade grande. Na margem esquerda está o Novo Mercado Velho, recentemente revitalizado, com comércio de produtos regionais, artesanato, bares e restaurantes. Na direita, está o Calçadão da Gameleira - árvore centenária com copa larga e raízes salientes -, tombada pela prefeitura por ser um símbolo de perseverança e resistência do povo acreano e que serviu de referencial para a fundação da capital, no fim do século XIX. Ao lado da gameleira fica um enorme mastro com a bandeira acreana, verde, amarela e com uma estrela vermelha, ostentada como o símbolo de uma nação. A cidade começou ali e a gameleira já estava lá.

Isolados do Brasil pela distância e por duas horas de fuso horário em relação à Brasília, o acreano se viu obrigado a voltar-se para si, mas sem ficar ensimesmado. Como o último território anexado ao Brasil em 1903, sua história é contada a partir do século XX sob a ótica de uma nação que venceu uma guerra de conquista. Enquanto o país, recém republicano, modernizava sua capital à luz da Belle Époque, e mesmo cidades amazônicas como Belém e Manaus criavam palácios, teatros e edifícios luxuosos à moda europeia com a renda da borracha, Rio Branco dava seus primeiros passos, com muitos anos de atraso. A conquista do Acre forneceu ao estado, tal qual um país, um panteão de heróis, com nomes como Barão de Rio Branco, Plácido Castro, Assis Brasil e Manoel Urbano, que acabaram se tornando nome de municípios do estado.

O Acre foi de fato um país por um breve momento entre 1889 e 1903. Quando Pando, oficial boliviano que deu nome ao estado fronteiriço com o Acre, informou à presidência de seu país sobre a intensificação de atividade seringueira por brasileiros na região, a Bolívia passou a cobrar impostos e taxas aduaneiras da extração de seringa. Embora o Brasil reconhecesse a soberania boliviana, os seringueiros iniciaram uma série de rebeliões. Como reação, a Bolívia iniciou negociações com um truste anglo-americano, o Bolivian Syndicate,  presidido pelo filho do então presidente dos Estados Unidos, como uma nova tentativa de incorporação política e econômica do território. Gálvez, um aventureiro espanhol radicado no Brasil que trabalhava no consulado boliviano em Belém, recebeu uma cópia do contrato do Bolivian Syndicate e alertou o governador do Amazonas, revelando sua intenção de promover a independência do Acre. Gálvez, com apoio do governador nas entrelinhas, proclamou, assim, a República do Acre, mas o Brasil ainda hesitou em anexar o território e apoiar o estado independente. Após uma reconquista boliviana, o Acre finalmente foi anexado ao Brasil em 1903 em razão dos esforços do militar gaúcho Plácido de Castro, que formou um exército com os seringueiros instalados na região, combinados à ação diplomática do Barão de Rio Branco. O Tratado de Petrópolis confirmou a conquista, em troca da estrada de ferro Madeira-Mamoré, de alguns territórios do Mato Grosso e do pagamento de 2 milhões de libras esterlinas como indenização à Bolívia. 

Em algum cartaz ufanista, provavelmente no aeroporto de Rio Branco, li algo como "Bem-vindo ao Acre, o estado que lutou para pertencer ao Brasil". Após a conquista do Acre, durante décadas se estendeu a luta para que o território virasse uma unidade federativa e pudesse ter maior representatividade no cenário político nacional. Essa luta, concluída em 1962 no governo de Jango, ficou conhecida como movimento autonomista, que tem seus símbolos rememorados pela capital, como em um belo memorial. O território do Acre era subdividido em três departamentos (Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá), cada um deles reportando diretamente para o governo central, que não era muito favorável à ideia de maior autonomia na região. Os autonomistas, por sua vez, acreditavam que a elevação para unidade federativa era imprescindível para o desenvolvimento da região, que, picos no preço da borracha à parte, sempre teve dificuldades em alavancar sua economia. Ainda hoje, o estado depende muito dos repasses da União, e o aparelho estatal é, de longe, o maior empregador formal da população acreana.

Meu voo aterrissou em Rio Branco por volta das 14h de um sábado. Hospedei-me no hotel Inácio Palace, no centro, e por volta das 15h eu já estava nas ruas da cidade buscando um lugar para almoçar. Nesse horário, não havia restaurantes abertos na região, e o sol, tão forte, rapidamente já machucava a minha pele. Fui entendendo que a cidade tem uma dinâmica diferente. A vida começa cedo, por volta das 8h da manhã e pausa por volta das 14h, a julgar pelo funcionamento do restaurantes e dos museus da cidade. Consegui almoçar em uma feira que acontece ao lado do Novo Mercado Velho, em que, geralmente mulheres, preparam e vendem comidas típicas. Foi a minha primeira refeição no Acre. Na noite do mesmo dia, fui ao mercado do bosque em busca de novas experiências culinárias. Além do Tacacá, experimentei o quibe de arroz e o de macaxeira, alimentos criados a partir da forte presença sírio-libanesa na cidade, com os ingredientes disponíveis no Acre. Essa comunidade chegou ao estado no primeiro ciclo da borracha e, embora pouco numerosa, deixou fortes marcas na culinária e na arquitetura local. Não deixe de experimentar a "baixaria", um prato típico acreano que leva farinha de milho (fubá ou cuscuz), carne moída, cheiro-verde e ovo frito.

Rio Branco não é uma capital pulsante, mas tem seus encantos, infelizmente pouco conhecidos pelos brasileiros. A cidade é melhor apreciada quando confrontada com a história do Ciclo da Borracha e com a conquista do Acre, que fornecem narrativas geográficas únicas no Brasil. Podemos nos afastar de nosso mito nacional de criação baseado nas três raças e entender o Acre como uma pequena nação que surgiu de fluxos migratórios intranacionais. O primeiro Ciclo da Borracha (1877 - 1912), impulsionado pela revolução da indústria automotiva, criou um país de estrangeiros na própria terra. Quando a Inglaterra passou a produzir borracha com um custo muito menor na Malásia, com sementes contrabandeadas do Brasil, a região sentiu o golpe cuja dor perdura até hoje, com exceção do período da Segunda Guerra Mundial, quando houve novo aumento de demanda da borracha amazônica pelos países aliados. No auge, a borracha foi responsável por 40% das exportações nacionais. Hoje, ainda existe muita dificuldade em se fazer dinheiro com economia extrativista. Nos anos 1970 o governo militar ofereceu incentivos fiscais para fazendeiros comprarem terra no estado, o que provocaria um novo impacto cultural na região, sobretudo com a vinda de gaúchos. É muito fácil encontrar pessoas na rua tomando um tereré bem gelado.

No mais, aproveite sua passagem por Rio Branco para desfrutar de sua localização estratégica. Há conexões fáceis para muitos pontos de interesse no estado. A estrada do Pacífico pode te conduzir tranquilamente à Cuzco. A Bolívia está logo ali perto. De Cobija, pode-se tomar um voo até La Paz. Xapuri, que por causa de Chico Mendes já foi a capital do mundo, fica a duas horas de carro. 




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A Thaly mantém esses dois perfis com excelentes dicas sobre o Acre. Ela também organiza grupos para a Serra do Divisor e para passeios por Rio Branco. Conhece tudo sobre o Acre e é uma excelente pessoa, que tive a oportunidade de conhecer na Serra do Divisor.