sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Um guia de viagem pelo Acre (1/2)

"Tenho esperança de continuar vivo. É vivo que a gente fortalece essa luta."
Chico Mendes

"Na Serra do Divisor tem o impressionante Moa, uma espécie de grande rio Paraná que desce para o Javari, desemboca no Solimões e, junto com águas que vêm da Colômbia, também alcança a Bacia Amazônica. Mais para cima de Cruzeiro do Sul, no médio Juruá, fica o território dos parentes Ashaninka. Uma vez subi com eles até a cabeceira do rio arrastando uma canoa, pois as águas estavam muito baixas, e tive a surpresa de encontrar lá em cima, no finzinho do Brasil, um quase igarapé com o nome de Tejo, e não pude deixar de pensar em Fernando Pessoa, que também cantou seu rio."

Ailton Krenak em Futuro ancestral 


Eu já estava quase no fim de minha viagem de 15 dias pelo Acre quando cheguei à Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes. Lá fui recebido pelo Seu Dimas, figura conhecida no Acre, que já presidiu a reserva e se auto denomina ambientalista. Ele, constantemente convidado para palestras, debates e para assumir cargos públicos, carrega com muito orgulho o plano de utilização da reserva, um livretinho com 76 artigos que, segundo ele, todo morador da reserva deve saber de cor. Eu já havia concluído a leitura dos livros que trouxe para essa viagem e recebi de muito bom grado todas as leituras sobre a reserva que Seu Dimas mantinha em uma mini biblioteca. Lá no artigo 62 do livreto, com a palavra divulgado grifada, estava escrito:

"Por ser um guia da Reserva Extrativista Chico Mendes, o Plano de Utilização deve ser amplamente divulgado entre todos os moradores para que seja conhecido em todos os seringais da reserva."

Inspirado pelo desejo de Seu Dimas de ampla divulgação da Resex, eu assumi um compromisso de ajudar a divulgar na internet não somente a reserva e seu plano de utilização, mas todo o estado do Acre, dada a dificuldade que encontrei ao organizar a minha viagem, e a ajuda essencial que recebi de blogs na rede. Diferentemente de muitos de meus textos, optei por escrever em formato de guia, dividido em duas partes, com algumas dicas úteis de viagem. A primeira parte contempla minha passagem por Cruzeiro do Sul, Serra do Divisor e Rio Branco. A segunda, Xapuri, Brasiléia, Assis Brasil e a Resex Chico Mendes. A seguir deixo a primeira parte de meu relato e, ao fim do texto, alguns contatos que tornaram minha experiência no Acre a melhor possível.

De Rio Branco para Cruzeiro do Sul: a dinâmica de uma estrada amazônica


A Amazônia não aceita bem a ideia de ser rasgada por uma rodovia. A chuva, a cada inverno amazônico, abre buracos no asfalto e torna o solo frágil. As enchentes deixam a pista intransitável. Floresta precisa ser cortada, comunidades indígenas e extrativistas são ameaçadas. Fazendas se formam às margens da rodovia, caminhos transversais vão se abrindo floresta adentro. As facilidades de uma estrada costumam ser um convite ao mau uso da floresta, seja por atividade garimpeira, madeireira ou pecuária. 

Por outro lado, os rios da bacia hidrográfica do Amazonas oferecem uma grande e complexa rede de estradas naturais. Como prisioneiros da geografia que somos, foram esses rios - o Purus e Juruá, que se conectam ao Solimões, e o Acre - que favoreceram o rápido povoamento da região por brasileiros vindos do Nordeste após a grande seca de 1877, época em que o território ainda pertencia à Bolívia. Era mais fácil habitar o Acre a partir do Brasil do que pela Bolívia. Pegar estrada na Amazônia não soa natural, e comecei minha viagem pelo Acre com essa experiência não óbvia.

Existem duas empresas de ônibus que realizam o trajeto entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade acreana, na região mais ocidental do Brasil: a Trans Acreana e a Petroacre, com saídas diárias de ambas cidades às 7h e às 19h. Eu peguei o ônibus da manhã logo no dia seguinte à minha chegada via aeroporto de Rio Branco. Queria poder assistir à estrada como assisto à televisão. Reservei um assento na primeira fileira (para minha sorte, pois as janelas laterais estavam cobertas com telas de publicidade) e sentei para contemplar os cerca de 640 quilômetros a serem percorridos em mais de 12h de viagem. 

A BR-364, em seu segmento acreano, liga a capital a Cruzeiro do Sul e conecta o Acre ao restante do Brasil via Porto Velho. Obra dos governos militares da década de 70, sua construção foi uma continuação do projeto rodoviário de JK e se iniciou a partir de um antigo sonho de se ligar o Brasil ao Oceano Pacífico. Esse sonho acabaria sendo concretizado por uma outra estrada acreana, a BR-317, por meio da passagem para o Peru em Assis Brasil. A completa pavimentação da BR-364, contudo, só foi concluída em 2011. Antes disso, só era possível viajar em automóveis durante o verão amazônico, que vai de julho a dezembro e se caracteriza por um período de menos chuva. 

Eu esperava uma viagem mais emocionante. Estava com os olhos atentos e câmera ligada, pensando nas inúmeras fotos incríveis que eu poderia tirar. Imaginava passar por florestas com pouca interferência humana, ver a vida em regiões isoladas, quem sabe eu não passaria por algum animal grande ou alguma aldeia indígena. Achava até que talvez a estrada pudesse ser interditada por chuva, ou que o ônibus atolasse e eu precisasse descer para ajudar a empurrá-lo. Em um dado momento, pensei ter visto um queixada tomando água em um açude, mas poderia muito bem ser uma vaca. Enquanto havia luz do dia, o que vi foi fazenda atrás de fazenda. Não restava dúvida: estrada e desmatamento caminham juntos. 

O que teve de emoção no trajeto foi andar de ônibus em uma estrada com buracos suficientes para encher Albert Hall. O meu cinto de segurança estava frouxo, e havia momentos que eu saltava a uma boa altura de meu assento com os solavancos. O pior trecho foi entre Senador Madureira e Feijó, mais perto de Rio Branco do que Cruzeiro do Sul, por ter sido asfaltado há mais tempo, eu suponho. O ônibus fez uma parada para almoço em Feijó e depois seguiu para Tarauacá, onde eu encontrei a primeira paisagem que verdadeiramente me encantou na viagem. Era um conjunto de casinhas de madeira, típica habitação dos seringueiros, que se alinhavam ao longo de uma colina até se perderem de vista.

A casa do seringueiro é muito simples, até rústica, mas tem a beleza de nos resgatar uma memória lúdica da infância, em que somos apresentados à representação do lar como um quadradinho com um triângulo em cima. Esse tipo de habitação, presente em todo o estado, nada mudou desde a colonização do Acre pelos nordestinos, que incorporaram elementos da oca indígena, misturando-a com as casas de seu local de origem. Nesse modelo de arquitetura vernácula, de arte popular, as casas são construídas com madeira e palha extraídas da floresta. Possuem ambiente aberto para ventilação, muitas vezes com varandas, as paredes não tocam o teto e o piso tem nível elevado do assoalho para proteção contra animais e enchentes. A casa fica nas proximidades da mata e não agride a natureza, pelo contrário, se integra a ela, a partir do aproveitamento de matéria-prima extraída dos recursos naturais oferecidos pelo seu  habitat. 

Eu cheguei a cochilar por um breve momento após o almoço, mas logo acordei com o chacoalhar do ônibus passando pelos buracos. Muitos passageiros vão entrando no ônibus no caminho. Quando não há mais assentos disponíveis, eles viajam de pé. A noite caiu, e com ela chegaram as 12h que a viagem deveria durar. Tive uma breve conversa com uma passageira que explicou que após passar pela "terra dos índios", chegaríamos a Cruzeiro do Sul. Depois fui entender que a estrada atravessa uma área de reserva indígena, dos índios Katukina. Estava de noite, mas consegui, depois de andar quase 600 km, avistar pela primeira vez árvores altas e uma floresta densa, como imaginei ser pela maior parte do caminho. Em toda a rodovia, a floresta só permaneceu de pé na reserva indígena.

Na volta, após a estadia de cinco dias na Serra do Divisor, optei por voltar no ônibus noturno. A madrugada ainda me guardava uma última aventura em Feijó, quando o ônibus foi parado pela polícia, que levou um passageiro preso. A viagem atrasou bastante e ainda tive uma longa manhã na estrada. Com o dia claro, após parada para o café da manhã, sentei-me no banco da frente do ônibus ao lado de uma senhora e começamos a conversar. Ela estava indo visitar um filho em Porto Velho, e contava o quanto era difícil fazer essa viagem antes da construção da rodovia. Era necessário pegar um avião, com custo pouco acessível para muitas famílias, ou depender do tráfego de balsas até Manaus, para então pegar um ônibus; uma viagem longuíssima. Além disso, sem a estrada, as trocas comerciais com outras regiões ficavam muito limitadas e a cidade sofria com problemas básicos de abastecimento, sobretudo de alimentos perecíveis. 

Pensei nas dificuldades de se morar em uma cidade completamente isolada e passei a dar valor a essa estrada por todas as novas possibilidades de integração com o Brasil que ela ofereceu. Cidades acreanas como Porto Walter e Marechal Thamauturgo ainda são acessíveis somente por rios. A questão que a humanidade ainda não conseguiu resolver estava, enfim, posta: como promover, hoje, um desenvolvimento humano sustentável sem agredir o meio ambiente e melhorando a vida das pessoas em larga escala? O Acre já foi o centro mundial desse debate e, como eu veria mais tarde durante minha viagem, ofereceu ótimas respostas. 




Serra do Divisor: estrangeiros em terra brasileira


Se a BR-364 (ainda) não alcançou o Pacífico, devemos isso ao Parque Nacional da Serra do Divisor. A Serra do Moa, como também é chamada, é um divisor de águas entre as bacias do Rio Juruá (Brasil) e Ucayali (Peru) e delimita uma das fronteiras do Brasil. Quando alguém sonha com a Amazônia, imagino que o cenário seja parecido com o da Serra do Divisor. O Rio Moa, de águas barrentas, é repleto de curvas que serpenteiam a floresta. Ele é estreito; durante a navegação estamos sempre perto das margens, preenchidas com árvores mais altas que prédios de muito andares. A sensação é a de estar no seio da floresta. A existência da serra permite algumas experiências raras na Amazônia, como enxergar montanhas recobertas por nevoeiro, ver do alto a imensa vastidão de árvores que se estendem até onde os olhos podem alcançar, ou, ainda, tomar banho em cachoeiras que se formam dentro da mata. Ali vivem comunidades indígenas, ribeirinhas e seringueiras, e podemos observá-los realizando suas atividades nas margens do rio.  

Por ser uma região isolada e de proteção, a Serra do Divisor é um dos poucos exemplares de Amazônia praticamente intocada que podemos visitar sem muitas dificuldades. É considerada a área com a maior biodiversidade do mundo, pela variação de altitude e proximidade com a Cordilheira dos Andes. Para ir até lá, depois de chegar à remota Cruzeiro do Sul, é necessário percorrer mais 40 km de estrada até Mâncio Lima, a cidade que vê o último pôr do sol no Brasil e que é a mais distante em linha reta de Brasília. Em Mâncio Lima acessamos um pequeno porto no Rio Moa, de onde começamos uma longa jornada de quase 200 km rio adentro, a ser percorrida em cerca de 8h. Tem um pequeno número de pousadas se formando dentro do parque, mas a mais antiga é a Pousada do Miro, onde me hospedei por cinco dias. Antes de ir para lá, eu não sabia exatamente para qual ponto do mapa eu iria. Liguei meu GPS para traçar o caminho e fiquei surpreso com a localização que eu atingira. Era o extremo noroeste do Acre, próximo ao local onde os estados do Acre e Amazonas encontram o Peru. Se o leitor tiver curiosidade, as coordenadas são -7.45, -73.66.

A viagem de barco é de contemplação, por causa e apesar do som do motor do barco. A embarcação para realizar a viagem é pequena, comporta de duas a oito pessoas, e é movida por uma rabeta muito barulhenta, que nos impede de ouvir o som da natureza ou de manter uma conversa com o barqueiro ou outros passageiros. Sentamo-nos no mesmo nível das águas, perto dos seres aquáticos ou insetos nadadores, enquanto apreciamos a beleza da mata preservada, a calmaria no rio e lidamos com nossos próprios pensamentos. Tirar um cochilo pode ser perigoso pelo risco de cair no rio. O barco tem bancos acolchoados, com encosto reclinável para as costas e um toldo que o recobre por cima. O barqueiro senta-se à popa e conduz o barco olhando o horizonte, em sintonia com o ritmo do rio, desviando e eventualmente esbarrando em troncos de árvore que parecem ter o poder de virar a embarcação. Acho que, por mimetismo, o barqueiro passa a se parecer com o rio. Um deles, em uma fala que poderia ser de Heráclito, disse que sua vida é o rio, pois o rio nunca é o mesmo do dia anterior. 

Não é todo o percurso do Moa que faz parte da reserva. Até a pousada do Miro, passamos por trechos de seringal, reserva indígena e comunidades ribeirinhas, uma síntese das forças humanas que hoje habitam a floresta. Também há fazendas; muitas famílias tradicionalmente extrativistas, hoje, por pressão financeira, também aderiram à pecuária. Algumas placas no caminho indicam quando começa uma reserva indígena, cuja entrada precisa ser autorizada pela Funai, e quando começa o parque. Existe um posto avançado do exército brasileiro, onde todo visitante precisa se identificar e responder algumas perguntas básicas antes de entrar no parque. No meu caso, perguntaram se eu levava algo além de roupas. Como parque nacional, algumas regras precisam ser seguidas, como a proibição do transporte e comercialização de bebidas alcóolicas em seu interior - embora um dos viajantes que encontrei em minha hospedagem tenha trazido uma pinga que agitou uma festinha na pousada. 

Cheguei à Pousada do Miro, onde a vivência com sua família e agregados compete em interesse com as belezas da serra. Pergunte ao Miro sobre sua chegada à região e sobre a criação da pousada e se delicie com a história. Na época de criação da reserva, já havia famílias ali estabelecidas. Após tratativas, em que foram oferecidos terrenos na área urbana de Mâncio Lima para que essas famílias deixassem o parque, acordou-se que quem já estava ali antes da demarcação, ali poderia permanecer. Os habitantes vivem basicamente da agricultura e caça de subsistência, extrativismo e, mais recentemente, de turismo, atividades que exemplificam o uso sustentável da floresta. Algumas famílias ainda levam produtos como banana ou farinha de mandioca - a farinha dessa região, conhecida Brasil afora como "farinha de Cruzeiro", é tida como a melhor do país - para serem vendidas na cidade. Quem morou na cidade voltou para a floresta: um barqueiro disse que não fazia sentido pagar pela sua comida na cidade, se ele tem tudo o que precisa à disposição na floresta sem custos. Na maioria dos casos, a cidade oferece algum subemprego a salário de miséria, como no caso de Eva, cozinheira de mãos cheias da pousada e sogra de Miro, que teria como alternativa receber 200 reais mensais como babá na cidade.

É incrível como há pessoas vivendo nessa região. O Miro tem um vizinho de pousada na outra margem do rio. Depois, seguindo o curso do rio a montante, não há mais brasileiros ali. Atingimos, literalmente, um dos finais do Brasil. Dali para frente, o rio começa a afunilar e se tornar mais caudaloso, até que se chega à nascente, sem conexão com rios das bacias peruanas. Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões, esteve na região do Acre em 1904 para chefiar uma missão do estado de reconhecimento das fronteiras nacionais. Chamando o homem, ali, de um intruso impertinente, viu os habitantes da Amazônia como estrangeiros em terra brasileira, resultado do que chamou de seleção telúrica, na qual a terra seleciona seus habitantes; a terra abandonou o homem no semiárido nordestino e o aceitou na Amazônia, dada sua bravura em amansar um território selvagem e desconhecido. Os habitantes da serra são os descendentes desses homens, netos de sertanejos e indígenas. A região recebeu alguns avanços recentes: há não muito tempo, fazia-se a travessia do Moa à remo e não havia energia elétrica. Sem cabos de transmissão, a energia hoje é gerada por painéis solares durante o dia e por um gerador movida à gasolina durante a noite. Existe um orelhão no parque, que os moradores podem usar, e as casas costumam ter uma televisão, único dispositivo que permite o contato com o mundo exterior. Internet não há. Muito do modo de vida dos pioneiros se mantém até hoje.

Para passeios no parque, usamos uma pequena embarcação e somos acompanhados por um barqueiro nativo da região. Debil, o barqueiro que me acompanhou, é um daqueles sujeitos que tem a velha inteligência, perdida por nós que vivemos o grande salto tecnológico, de saber como funcionam as coisas e o mundo ao seu redor. Ele coletou a madeira que utiliza em sua embarcação e acompanhou a sua construção. Conhece bem o motor, parecendo ser capaz de desmontá-lo até a última peça para então remontá-lo. Quando o motor deu uma engasgada, perguntei como fazia para levar a um mecânico. "O mecânico é nós mesmo", ele disse. Caçador de subsistência, autorizado e regularizado, conhece todo o processo pelo qual sua comida passa até chegar à mesa. Ele abate o animal, corta, transporta e prepara a carne para comer. Eu, em diversos momentos perguntava sobre suas histórias com onças, tamanho o fascínio que tenho pelo animal. Em suas caçadas, ele passa horas a fio em mata fechada e se localiza apenas com uma bússola. Disse ser capaz de entrar na floresta e voltar exatamente ao seu ponto de partida, qualquer que seja. Onde eu vejo apenas terra e mato, ele vê uma multiplicidade de espécies de plantas e consegue usá-las para se situar no espaço. Para a trilha da cachoeira da formosa, de 15 km, ele se aprumou como se estivesse indo para uma caçada, carregando uma carabina às costas. Na volta da trilha, já muito cansados, ouvimos o barulho de um animal grande se movendo. Ele sabia que se tratava de um veado e eu pude ver como sua fisionomia muda quando ele está na iminência de atacar uma presa, tal qual um felino com os pelos eriçados. O veado escapou sentindo a presença humana. Pouco tempo depois, me assustei com a presença de uma cobra na trilha. Ele perguntou se eu queria que a matasse. A cobra não era venenosa e não oferecia perigo. Seguimos adiante.

A Serra do Divisor acalenta ainda mais as discussões sobre o uso que nós fazemos da terra. Na década de 1930, o então Conselho Nacional do Petróleo perfurou um poço de exploração no território que hoje é o parque. A perfuração atingiu um lençol freático e a água jorra permanentemente do interior da terra deste então. O poço não foi fechado e nós podemos adentrar nele, repousando nosso corpo sobre as águas, que chegam mornas à superfície e oferecem uma experiência inusitada de relaxamento. A bacia do Acre, pouco conhecida no Brasil, possui rochas análogas produzindo hidrocarbonetos em bacias peruanas e bolivianas, como Marañón, Ucayali e Madre de Dios. A bacia é a única no Brasil que experimentou os esforços compressivos das orogenias andinas, possibilitando a existência de grandes estruturas capazes de reter petróleo. No entanto, a pouca existência de dados ainda não permitiu identificar rochas geradoras de petróleo, havendo ainda uma lacuna a ser preenchida sobre a possibilidade de se produzir petróleo no estado.










Rio Branco: memórias da conquista do Acre


Dificilmente você, leitor, chegará ao Acre sem ser por Rio Branco. A cidade é a que recebe voos de outras cidades do Brasil e é onde todos os caminhos do Acre se encontram. Explicamos a cidade a partir do Rio Acre que, segundo Zuenir Ventura, é tão preguiçoso que não faz questão nem de mostrar para qual sentido está fluindo. O centro da cidade é divido pelo rio, as duas margens conectadas por pontes de ares modernos que tentam afirmar Rio Branco como uma cidade grande. Na margem esquerda está o Novo Mercado Velho, recentemente revitalizado, com comércio de produtos regionais, artesanato, bares e restaurantes. Na direita, está o Calçadão da Gameleira - árvore centenária com copa larga e raízes salientes -, tombada pela prefeitura por ser um símbolo de perseverança e resistência do povo acreano e que serviu de referencial para a fundação da capital, no fim do século XIX. Ao lado da gameleira fica um enorme mastro com a bandeira acreana, verde, amarela e com uma estrela vermelha, ostentada como o símbolo de uma nação. A cidade começou ali e a gameleira já estava lá.

Isolados do Brasil pela distância e por duas horas de fuso horário em relação à Brasília, o acreano se viu obrigado a voltar-se para si, mas sem ficar ensimesmado. Como o último território anexado ao Brasil em 1903, sua história é contada a partir do século XX sob a ótica de uma nação que venceu uma guerra de conquista. Enquanto o país, recém republicano, modernizava sua capital à luz da Belle Époque, e mesmo cidades amazônicas como Belém e Manaus criavam palácios, teatros e edifícios luxuosos à moda europeia com a renda da borracha, Rio Branco dava seus primeiros passos, com muitos anos de atraso. A conquista do Acre forneceu ao estado, tal qual um país, um panteão de heróis, com nomes como Barão de Rio Branco, Plácido Castro, Assis Brasil e Manoel Urbano, que acabaram se tornando nome de municípios do estado.

O Acre foi de fato um país por um breve momento entre 1889 e 1903. Quando Pando, oficial boliviano que deu nome ao estado fronteiriço com o Acre, informou à presidência de seu país sobre a intensificação de atividade seringueira por brasileiros na região, a Bolívia passou a cobrar impostos e taxas aduaneiras da extração de seringa. Embora o Brasil reconhecesse a soberania boliviana, os seringueiros iniciaram uma série de rebeliões. Como reação, a Bolívia iniciou negociações com um truste anglo-americano, o Bolivian Syndicate,  presidido pelo filho do então presidente dos Estados Unidos, como uma nova tentativa de incorporação política e econômica do território. Gálvez, um aventureiro espanhol radicado no Brasil que trabalhava no consulado boliviano em Belém, recebeu uma cópia do contrato do Bolivian Syndicate e alertou o governador do Amazonas, revelando sua intenção de promover a independência do Acre. Gálvez, com apoio do governador nas entrelinhas, proclamou, assim, a República do Acre, mas o Brasil ainda hesitou em anexar o território e apoiar o estado independente. Após uma reconquista boliviana, o Acre finalmente foi anexado ao Brasil em 1903 em razão dos esforços do militar gaúcho Plácido de Castro, que formou um exército com os seringueiros instalados na região, combinados à ação diplomática do Barão de Rio Branco. O Tratado de Petrópolis confirmou a conquista, em troca da estrada de ferro Madeira-Mamoré, de alguns territórios do Mato Grosso e do pagamento de 2 milhões de libras esterlinas como indenização à Bolívia. 

Em algum cartaz ufanista, provavelmente no aeroporto de Rio Branco, li algo como "Bem-vindo ao Acre, o estado que lutou para pertencer ao Brasil". Após a conquista do Acre, durante décadas se estendeu a luta para que o território virasse uma unidade federativa e pudesse ter maior representatividade no cenário político nacional. Essa luta, concluída em 1962 no governo de Jango, ficou conhecida como movimento autonomista, que tem seus símbolos rememorados pela capital, como em um belo memorial. O território do Acre era subdividido em três departamentos (Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá), cada um deles reportando diretamente para o governo central, que não era muito favorável à ideia de maior autonomia na região. Os autonomistas, por sua vez, acreditavam que a elevação para unidade federativa era imprescindível para o desenvolvimento da região, que, picos no preço da borracha à parte, sempre teve dificuldades em alavancar sua economia. Ainda hoje, o estado depende muito dos repasses da União, e o aparelho estatal é, de longe, o maior empregador formal da população acreana.

Meu voo aterrissou em Rio Branco por volta das 14h de um sábado. Hospedei-me no hotel Inácio Palace, no centro, e por volta das 15h eu já estava nas ruas da cidade buscando um lugar para almoçar. Nesse horário, não havia restaurantes abertos na região, e o sol, tão forte, rapidamente já machucava a minha pele. Fui entendendo que a cidade tem uma dinâmica diferente. A vida começa cedo, por volta das 8h da manhã e pausa por volta das 14h, a julgar pelo funcionamento do restaurantes e dos museus da cidade. Consegui almoçar em uma feira que acontece ao lado do Novo Mercado Velho, em que, geralmente mulheres, preparam e vendem comidas típicas. Foi a minha primeira refeição no Acre. Na noite do mesmo dia, fui ao mercado do bosque em busca de novas experiências culinárias. Além do Tacacá, experimentei o quibe de arroz e o de macaxeira, alimentos criados a partir da forte presença sírio-libanesa na cidade, com os ingredientes disponíveis no Acre. Essa comunidade chegou ao estado no primeiro ciclo da borracha e, embora pouco numerosa, deixou fortes marcas na culinária e na arquitetura local. Não deixe de experimentar a "baixaria", um prato típico acreano que leva farinha de milho (fubá ou cuscuz), carne moída, cheiro-verde e ovo frito.

Rio Branco não é uma capital pulsante, mas tem seus encantos, infelizmente pouco conhecidos pelos brasileiros. A cidade é melhor apreciada quando confrontada com a história do Ciclo da Borracha e com a conquista do Acre, que fornecem narrativas geográficas únicas no Brasil. Podemos nos afastar de nosso mito nacional de criação baseado nas três raças e entender o Acre como uma pequena nação que surgiu de fluxos migratórios intranacionais. O primeiro Ciclo da Borracha (1877 - 1912), impulsionado pela revolução da indústria automotiva, criou um país de estrangeiros na própria terra. Quando a Inglaterra passou a produzir borracha com um custo muito menor na Malásia, com sementes contrabandeadas do Brasil, a região sentiu o golpe cuja dor perdura até hoje, com exceção do período da Segunda Guerra Mundial, quando houve novo aumento de demanda da borracha amazônica pelos países aliados. No auge, a borracha foi responsável por 40% das exportações nacionais. Hoje, ainda existe muita dificuldade em se fazer dinheiro com economia extrativista. Nos anos 1970 o governo militar ofereceu incentivos fiscais para fazendeiros comprarem terra no estado, o que provocaria um novo impacto cultural na região, sobretudo com a vinda de gaúchos. É muito fácil encontrar pessoas na rua tomando um tereré bem gelado.

No mais, aproveite sua passagem por Rio Branco para desfrutar de sua localização estratégica. Há conexões fáceis para muitos pontos de interesse no estado. A estrada do Pacífico pode te conduzir tranquilamente à Cuzco. A Bolívia está logo ali perto. De Cobija, pode-se tomar um voo até La Paz. Xapuri, que por causa de Chico Mendes já foi a capital do mundo, fica a duas horas de carro. 




Contatos:


Serra do Divisor
Pousada do Miro 
Whatsapp: (68) 99971-2127 
E-mail: miropousada7@gmail.com 
Instagram: @pousada.do.miro

Narjara (68) 99927-8938
A Narjara vive em Mâncio Lima e é casada com um barqueiro. Ela intermediou o meu contato com a pousada do Miro e organizou a viagem de ida e volta pelo Rio Moa.

Perfis de Instagram 
@destinoacre 
@tipsdathaly
A Thaly mantém esses dois perfis com excelentes dicas sobre o Acre. Ela também organiza grupos para a Serra do Divisor e para passeios por Rio Branco. Conhece tudo sobre o Acre e é uma excelente pessoa, que tive a oportunidade de conhecer na Serra do Divisor.

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