quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Trem da vida

"Isso mesmo, a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e grandes tristezas em outros.
Quando nascemos, entramos nesse trem e nos deparamos com algumas pessoas que julgamos, estarão sempre nessa viagem conosco : nossos pais. Infelizmente, isso não é verdade; em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho, amizade e companhia insubstituível... mas isso não impede que, durante a viagem, pessoas interessantes e que virão a ser super especiais para nós, embarquem.

Chegam nossos irmãos, amigos e amores maravilhosos.

Muitas pessoas tomam esse trem apenas a passeio. Outros encontrarão nessa viagem somente tristezas. Ainda outros circularão pelo trem, prontos a ajudar a quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas, outros tantos passam por ele de uma forma que, quando desocupam seu acento, ninguém nem sequer percebe.

Curioso é constatar que alguns passageiros que nos são tão caros, acomodam-se em vagões diferentes dos nossos; portanto, somos obrigados a fazer esse trajeto separados deles, o que não impede, é claro, que durante o trajeto, atravessemos com grande dificuldade nosso vagão e cheguemos até eles... só que, infelizmente, jamais poderemos sentar ao seu lado, pois já terá alguém ocupando aquele lugar.

Não importa, é assim a viagem, cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, despedidas... porém, jamais, retornos. (...)

O grande mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada desceremos, muito menos nossos companheiros, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado. (...)

Amigos, façamos com que a nossa estada, nesse trem, seja tranquila, que tenha valido a pena e que, quando chegar a hora de desembarcarmos, o nosso lugar vazio traga saudades e boas recordações para aqueles que prosseguirem a viagem."
Silvana Duboc 

Produções culturais sobre o holocausto nos oferecem inúmeras possibilidades e desafiam a criatividade de artistas, escritores, músicos, dramaturgos e cineastas. "Trem da vida", filme francês, trata o tema de um modo bastante surpreendente. Ao trazer a diversidade e a complexidade das disputas ideológicas que fundamentaram a Segunda Guerra Mundial para dentro de um trem, o drama dos judeus é exposto de um modo único.

Era 1941. Os nazistas partiam rumo a um pequeno vilarejo na Europa Ocidental para deportar a comunidade judia. Diante dessa ameaça, os habitantes do vilarejo procuraram, às pressas, encontrar uma saída para não serem capturados. Em meio a toda a agitação, Scholomo, portador da notícia e tido como um louco, foi o único capaz de oferecer uma efetiva solução: todos deveriam encenar a própria deportação, em um trem. Uns fariam o papel dos nazistas, outros dos prisioneiros, outros dos maquinistas e assim por diante. Logo, todos se uniram para promover a ideia: confeccionaram as fardas nazistas, falsificaram documentos, tiveram aulas de alemão e agregaram recursos para a compra de uma locomotiva, veículo da fuga. Antes de o verdadeiro exército alemão chegar, os habitantes partiram em um trem forjado com destino à Terra Prometida, com uma parada na Rússia antes. Tudo estava dentro do planejado, até que as encenações começaram a ultrapassar o limite da ficção. Os nazistas ficaram autoritários, e ideais marxistas estavam se disseminando entre os prisioneiros, que ensaiavam uma rebelião. O Rabino da comunidade, diante dos conflitos, procurava unir todos sob o prisma da religião.

"É o maior trem do mundo, mais rápido do que um relâmpago"
Após esforços de todos, conseguiram montar o trem nos moldes nazistas, decorando-o com suásticas e pintando os vagões dos deportados com cores diferentes da dos oficiais. O trem representou uma renovação de esperanças, o caminho da vida. Todos passaram a sorrir, pensavam apenas em chegar à Palestina, a Terra Prometida, onde poderiam ser felizes. As crianças do vilarejo se espantavam com tamanha grandiosidade. Para eles, estavam diante da maior realização humana. O comboio, tal qual a retirada de Moisés do Egito, seria o caminho espiritual que levaria todos os judeus à sua sagrada terra. A viagem também exibia, assim, um motivo religioso; um êxodo particular para o vilarejo. A metáfora da vida estava formada em um trem, que conduzia uma rica diversidade cultural e ideológica em cada vagão, desbravando um caminho unidirecional - porém incerto - sem retornos para a inércia, carregando a memória de um povo que estava sendo ameaçado. Diferentemente do real trem nazista, que devastava a Europa, este simbolizava a poesia, a ilusão e a loucura.

Logo no início da viagem, contudo, a personalidade das personagens se altera. Uma filha comunica ao pai que está apaixonada por um rapaz. O pai não aprova, julgando o garoto nazista e comunista, cometendo um erro histórico que demonstra a ingenuidade e a fraqueza do espírito humano. As ideologias funcionam como máscaras, e o filme segue de modo inverossímil: o Rabino que se veste de nazista, o judeu que vira comunista e deixa de acreditar em Deus, o cigano que beija a suástica. Os rótulos que a História impõe são retratados como frágeis diante da natureza humana. A religião, que funcionava perfeitamente como associadora de valores, costumes e pessoas, torna-se secundária para a vida no trem. Em um momento de oração, aqueles que encenavam os nazistas se recusaram a tirar os quepes e capacetes sob a justificativa de que a guerra era verdadeira. Além disso, decretaram que seria permitido orar com tais vestimentas, ignorando os brados do Rabino, que lembrou que era tudo uma encenação. A mesma reza não seguiu muito bem: a corrente comunista também ignora os ensinamentos do mestre e convocam uma "reunião do partido". Começam, sobretudo, a questionar a existência de Deus. Os nazistas - mesmos que transpuseram  uma determinação religiosa - se enfureceram com a conduta dos comunistas e iniciaram uma grande briga entre a esquerda e a direita. Scholomo, o louco, procurou conciliar os dois lados e cumpriu seu objetivo:
"Já se perguntaram se nós existimos? 'Deus criou o homem à sua imagem'. Isso é lindo. Scholomo, a imagem de Deus! Mas quem escreveu essa frase na Torá? O homem... não Deus. O homem... a escreveu sem modéstia, comparando-se a Deus. Talvez Deus tenha criado o homem. Mas o homem, o filho de Deus, criou Deus só para poder se inventar. O homem escreveu a Bíblia por medo de ser esquecido, sem se importar com Deus. Rabino, nós não amamos e nem oramos a Deus, mas lhe imploramos para que nos ajude a continuar adiante. É o que nos importa de Deus. Só pensamos em nós mesmos. Agora a questão não é só saber se Deus existe, mas se nós existimos."
Judeus fazendo o papel de nazistas, rezando com a vestimenta militar.
Sem terem lido Karl Marx, os comunistas queriam o direito de dormir nos vagões alemães. Provando que o comunismo é uma vocação intuitiva, essa corrente ia ganhando novos adeptos. Para o Rabino, a comunidade estava se destruindo. Ele questiona se parece um chimpanzé. Alguns tentam fugir e são recapturados. Ouvindo a história de chapeuzinho vermelho, em que o mal se disfarça de bem, uma criança pergunta por que a terra é santa em apenas um lugar. A mãe idealiza um mundo sem países e sem religião. A essa altura o vilarejo já havia sido queimado pelos verdadeiros nazistas. Com documentos falsos, os fugitivos conseguiam superar postos de fiscalização alemães, embora o trem nunca aparecesse no quadro de horários. A mesma moça que não teve sua paixão aprovada pelo pai, despe-se na frente de seu pretendente, perguntando se não era melhor do que Marx, Engels e Lenin. Na cena seguinte, o rapaz se retira do partido comunista formado durante a viagem. Ao mesmo tempo, os comunistas começam a querer expulsar integrantes do partido por digressão. O jogo de poder estava evidente: os nazistas davam ordens, inclusive nos verdadeiros oficiais que encontravam pelo caminho, e gostavam disso.  

Scholomo
A pergunta existencial de Scholomo é o trilho pelo qual o trem da vida passa. Existimos de fato? Não se sabia mais o que era religião, materialismo, fascismo ou comunismo. As personalidades variavam muito facilmente. Uma vez dotados de poder, os nazistas agiam como se fossem superiores aos seus vizinhos, amigos e familiares. Fascistas brigavam com comunistas e logo depois se abraçavam. Do mesmo modo como os habitantes do vilarejo tiveram que se inventar para fugir, chega-se a conclusão que o homem é, de fato, uma invenção, assim como todas as ideologias, que não cumprem o papel de criar rótulos e entidades; a natureza humana se demonstra incapaz de seguir ideologias.

Antes de chegarem à Rússia, ainda encontram uma expedição forjada de ciganos, que tiveram a mesma ideia de Scholomo, mas que não conseguiram um trem. Estavam com esperanças de se apropriarem do trem da vida. O comandante dos ciganos manda revistarem o trem, e o comandante dos judeus tenta impedir. Após alguns conflitos, Scholomo novamente consegue conciliar os dois lados, encontrando seu irmão do lado dos ciganos e afirmando que não havia alemães ali. A locomotiva agora abriga também os ciganos, que trazem novas ideologias e alimentam a diversidade cultural dos vagões.

Após chegarem a Rússia, Scholomo, que também narrava a história, conta que nem todos foram à Terra Prometida, mas que terminaram seguindo seus sonhos e sendo felizes. Ele, contudo, como um herói romântico, foi aquele que se sacrificou pelo bem dos demais. Apesar de ser o louco, teve a sensibilidade de conceber a ideia de fuga e agia como se fosse o Deus daquilo tudo, de modo que pode condenar o processo de auto-invenção humana. Seu final pode ser interpretado como uma aproximação do sentido bíblico do Holocausto - oferenda, ato de adoração a Deus - ao sentido histórico - massacre judeu na Segunda Guerra Mundial.
"Um dia parti num trem, para muito longe. Shtetl, shtetl, shtetl [vilarejo judeu] Não me deixe esquecer dos olhos das pessoas, é o que ainda me mantem vivo. A sublime loucura, a sublime loucura do trem da vida." 

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Che Guevara: o poder da imagem

Ernesto chegou a mim por meio do filme "Diários de motocicleta". A cena em que o protagonista Ernesto Guevara e seu companheiro Alberto Granado, sentados em uma mesa de bar com um mapa da América do Sul e uma caneta em mãos, traçam a rota do que seria uma viagem de motocicleta pelo continente jamais sairá de minha cabeça. A princípio, fiquei encantado pela ousadia que a viagem pressupunha: ir da Argentina a Venezuela de motocicleta; milhares de quilômetros a serem desbravados pelo velho veículo de Alberto, carinhosamente apelidado de la poderosa, passando pelos mais variados ambientes e também enfrentando a imponência da Cordilheira dos Andes. Ao longo do filme, pois, foi impossível não ser seduzido pela imagem de Ernesto, jovem, sonhador, cuja visão de mundo se transformava gradativamente durante o percurso. Em minha ingenuidade de estudante de Ensino Fundamental que faria um trabalho para a escola, fiquei absolutamente fascinado e queria ser como o tal Ernesto.
"O ser humano mais completo de nossa época."
J. P. Sartre 








Sabia que o filme era baseado em fatos reais e logo fui à internet pesquisar sobre o meu mais novo herói. Recordo-me da surpresa de quando associei o nome à pessoa. Ernesto era Che Guevara, nome que eu já ouvira tantas vezes. Surpresa maior ainda foi quando vi a famosa foto do comandante Che, que também já vira grafitada em muros, estampadas camisetas, em bandeiras no Maracanã e em diversos outros meios. Antes disso, pensava que se tratava, com certeza, de algum astro do rock. Assistindo, há pouco tempo, ao documentário "Chevolution", sobre a foto em questão, descobri que não era o único que pensava assim, pelo contrário. A foto por si só não precisa de explicações. Ao vê-la pela primeira vez, já se sabe que se trata de algo importante; uma entidade que carrega uma expressão que nos deixa com vontade de compartilhá-la.

Não tardou muito para que eu devorasse livros e filmes sobre Che Guevara. O primeiro que li foi um relato de Carlos Calica Ferrer, seu amigo e companheiro em uma segunda viagem pela América Latina. O livro, chamado "De Ernesto a Che", refletia perfeitamente o meu momento de descoberta da ilustre personalidade. Partindo da Argentina, Ernesto chegou à Guatemala, de onde partiu para o México, para então se tornar o comandante Che Guevara, na campanha de Sierra Maestra, em Cuba. O jovem Ernesto, leitor assíduo e intelectual, não se conformava com a pobreza extrema nos países por que passava. A Guatemala foi um local essencial para sua definitiva formação ideológica: lá presenciou um golpe de Estado, projetado pelos EUA, que derrubou um governo socialista. Para ele, a luta armada, a revolução e a propagação do socialismo seriam os únicos meios viáveis para reverter o quadro de pobreza presenciado em suas viagens. 

A partir de Che, conheci o comunismo, o socialismo, a esquerda, a Guerra Fria. Em uma maior amplitude, pude ter mais noção de sua representação e de sua importância para o cenário político e cultural do século XX. Outro livro que li a seu respeito se chamava "O verdadeiro Che Guevara - e os idiotas úteis que o idolatram". Senti-me de certo modo ofendido pelo título, o que despertou meu interesse pela leitura. O parágrafo introdutória imediatamente tratou de abalar parte do meu ideal acerca da ilustre e agora controversa personalidade: 
"Aquele homem em 'Diários de motocicleta', que amava os leprosos tal como Jesus, que atravessou um rio sob risco de vida para mostrar sua compaixão por eles, é o homem que declarou que 'um revolucionário deve se tornar uma fria máquina de matar movida apenas pelo ódio.' Como veremos, ele foi um espirituoso exemplo deste princípio. Este é o homem que se gabava de executar antes por 'convicção revolucionário' que por quaisquer 'antiquados detalhes burgueses'. (...)"
Creio, de início, que todos entenderam a simbologia da cena em que Ernesto, literalmente, atravessou o rio a nado. Faz parte do cinema criar metáforas com o intuito de funcionarem como acessórios para a trama. O rio que separava os leprosos dos médicos e enfermeiros do leprosário de San Pablo, no Peru, foi transposto pelo jovem Ernesto. Essa cena, o ápice do filme, serviu para evidenciar toda a transformação que a viagem lhe proporcionara. Esclarecido o "atravessar o rio a nado" ao autor do livro, Humberto Fontova, que, pertencente a uma bem abastada e convicta anti-comunista família cubana, fugiu para os Estados Unidos com a iminência da revolução, cabe aqui uma rápida análise da obra.

Humberto Fontova, em capítulos como "Nova Iorque festeja o Patriarca do Terrorismo", "O carrasco de roqueiros, gays e simpatizantes", "Bon vivant, queridinho da mamãe e esnobe", "De idiota militar a herói de guerilha" e "Assassino de mulheres e crianças", procura desmistificar Che Guevara. Em um estudo biográfico - que eu prefiro chamar de relato sensacionalista movido por convicções pessoais -, o autor é exaustivo na comparação ficção x realidade. Che é, no mais baixo nível, acusado de assassino, racista, sádico e covarde. A vitória na Batalha da Baía dos Porcos é questionada e sobra até para Hitler, Stálin e Mandela. É, inclusive, incrivelmente acusado de fascista. Além disso, infere-se que Che esteve sempre no lugar certo, e que seria apenas um andarilho, não fosse a Revolução Cubana.

Controversas à parte, Che, de fato, fuzilou e assassinou; era um defensor da luta armada como meio de se alcançar a revolução. Homem essencialmente movido por ideais, alegava motivos revolucionários e não contradizia o pensamento marxista nesse sentido. Sua fama e idolatria também muito se deve ao poder de sua imagem. Se é verdade que Fidel Castro e a mídia, sobretudo grandes publicações estadunidenses contribuíram para a idolatria universal de Che, também é necessário confessar que sua imagem tem uma poderosa tendência polarizadora. 



A sociedade é carente por ídolos. Logo, Che Guevara se tornou o herói rebelde, da esquerda, ídolo da juventude, de roqueiros, de "contrários ao sistema", de militantes políticos, presença certa em protestos e passeatas. A sua famosa fotografia, publicada nos mais diversos meios, é a principal força motriz para tal idolatria: produzida por Alberto Korda durante um discurso em público, o exato momento em que Che se prepara para anunciar uma triste notícia é captado. Seu aspecto preocupado, olhando ao fundo, sobre uma grande platéia eufórica, representa todo o seu caráter, determinação e firmeza, segundo o próprio fotógrafo. A ausência de direitos autorais da imagem na socialista Cuba contribuiu para a voraz propagação da fotografia, uma das mais famosas do século XX, por todo o mundo. Inúmeras variações foram produzidas, de modo que a imagem se tornou um símbolo universal, que rompe o idioma, com seu significante rapidamente compreendido; um verdadeiro ícone.

Essa rápida propagação da célebre fotografia também exibiu uma vertente destruidora. É inegável a capacidade de cooptação capitalista. Assim, muito se lucrou a partir do "Guerrilheiro Heróico", nome que a fotografia recebeu. Che Guevara foi verdadeiramente deturpado. Alberto Korda nunca exigiu nenhuma renumeração pelo seu trabalho exatamente por acreditar nos ideias de Che. Ele desejava apenas que tais ideais fossem sempre seguidos, e que a fotografia fosse usada como agregadora da luta revolucionária mundo afora.
"Como defensor dos ideais pelos quais Che Guevara morreu, não me oponho à sua reprodução por aqueles que desejam difundir a sua memória e a causa da justiça social por todo o mundo."
Ainda assim, o poder da imagem de Che vai além de uma fotografia. Ela foi, na verdade, o veículo para transmissão características tão evidentes e marcantes. Descristo como detentor de um sedutor e charmoso sorriso por jornalistas do The New York Times, sua aparência física chama a atenção. A boina com a estrela, a roupa de guerrilha, o verde-oliva, a barba, os longos cabelos e, eventualmente, o charuto, compõem sua caricatura. Tiradentes, promovido a herói republicano brasileiro, foi retratado à semelhança de Jesus Cristo por Pedro Américo. Che Guevara, por sua vez o herói da esquerda, naturalmente lembrava Jesus Cristo, semelhança clara quando comparamos a cena da morte de ambos.


Após o êxito da Revolução Cubana, procurou exportar a revolução. Acreditando que a revolução era um estado de espírito, participou de novas campanhas guerrilheiras. Passou pela África e chegou à Bolívia, onde foi capturado pelo exército local, com ajuda da CIA. Para entrar no país, em uma viagem de trem e ônibus a partir de São Paulo, Che precisou se disfarçar. Em seu diário de campanha, percebe-se seu comprometimento e seu zelo pela própria imagem. Escreve: 
"Meu cabelo está crescendo, embora muito ralo, e o cabelo grisalho vai ficando alourado e começando a cair; minha barba está crescendo. Mais uns dois meses, e serei novamente eu mesmo."
Um dos grandes homens da História recente, Che Guevara viveu até o final de sua vida seguindo apenas seus sonhos, seus ideais. Sua história inspira todos aqueles que esperam, de alguma forma, mudar o mundo. A sua determinação o tornou eterno e canonizado. Ele, de fato, foi precursor de um sentimento que perdurará; será, como um santo, evocado sempre em manifestações contra a ordem vigente. Sua face estará lá para sabermos que, se temos algum desejo, precisamos lutar por ele; se algo nos incomoda, temos o poder da transformação. Ele leu, viveu. viajou e suas experiências afetaram os rumos da humanidade.

Ele acreditava num mundo melhor. Já eu, acredito em Ernesto Che Guevara.

sábado, 7 de dezembro de 2013

O operário em construção no mar

“Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos no mar”.
Sob os prismas do nacionalismo e do trabalhismo, o Brasil se industrializava. Vargas assumira a presidência da República em 1930, e a ordem social brasileira sofria certas modificações. O país já havia presenciado um surto industrial e um movimento operário fragilizado, encabeçado por migrantes europeus, que vinham para o Brasil com ideais socialistas e anarquistas na bagagem. Na década de 1930, contudo, o surgimento da classe operária era uma realidade concreta.  

O operariado, desse modo, tornou-se tema central de diversas manifestações artísticas, sobretudo modernistas. Tarsila do Amaral se sensibilizou com a condição operária em visita à antiga União Soviética - país socialista - e produziu quadros como "Operários", de profundidade e beleza singulares na arte engajada brasileira. Em sua viagem, percebeu contrastes entre o operariado francês e o soviético e passou a se preocupar com as adversidades dessa classe social. Chegou, inclusive, a trabalhar como pintora de paredes em um momento de dificuldades financeiras após a Grande Depressão de 1929, o que contribuiu para seu engajamento, já que vivenciara condições de trabalho precárias e insalubres. 

"Operários" de Tarsila, pintado em 1933, é, assim, uma referência de representação artística do operário, figura idealizada da esquerda, cuja função seria, segundo Karl Marx, subverter os quadros de opressão burguesa. A primeira grande impressão que se tem da obra é a diversidade dos trabalhadores. A miscigenação, característica da sociedade brasileira e um dos pilares do movimento modernista, também era um tema importante para produções artísticas. Um segundo olhar nos revela, porém, que, apesar de características individuais marcantes, é difícil distinguir as faces de cada operário, de modo que todas parecem iguais. Isso torna a obra provocativa. Evidencia o sistema de massificação e reificação do homem. Além disso, o aspecto físico triste e cansado - nenhum sorriso - diante das cinzentas chaminés torna clara a frágil condição de vida dos trabalhadores industriais.

Também a literatura viveu sua fase engajada, de tendências marxistas, em que a produção era voltada para a realidade brasileira. Como exemplo temos "O operário no mar" e "Operário em construção", de Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes respectivamente. O primeiro escreveu "Sentimentos de Mundo" entre 1935 e 1940, período em que o mundo presenciava conflitos ideológicos que culminariam na Segunda Guerra Mundial. O segundo poema é de 1956, escrito diante da bipolaridade da Guerra Fria e sob os riscos de uma nova guerra mundial  - enquanto o Brasil progredia com o processo de industrialização e modernização.

Vale aqui dialogar os dois textos:
"Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão (...)
Mas tudo desconhecia de sua grande missão(...)
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo sua liberdade
Era sua escravidão"
"O operário não lhe sobra tempo  de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?"
O primeiro trecho é de "Operário em construção", poema com versos e estrofes, e o terceiro é de "O operário no mar", texto em prosa. Ambos enfatizam, de início, a alienação do operário. Ele não tem consciência nem do valor de seu ofício nem, tampouco, de seu poder de mobilização. Um dos postulados de Karl Marx, que afirma que o operário não tem pátria (sintetizado pela célebre frase "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!), pode ser utilizado para a interpretar tal condição de alienação. O trabalhador é igualmente explorado em diversas partes do mundo, cabendo, assim, à revolução, em um contexto internacional, transformar a ordem social.
"O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia (...)
Olhou em torno: (...)
Casa, cidade, nação! (...)
Soube naquele momento
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava"  
"Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre?"
O operário começa a se conscientizar e se impor. Percebe que tudo o que existe, do garfo à nação, passando pela casa, é produto de seu trabalho. No texto de Drummond, ele é elevado à condição de santidade; atravessa o mar. Trata-se da iminência da revolução: quando o operário percebe a sua essencial função no modo produtivo e sua poderosa capacidade de mobilização, que exército irá impedir o milagre? 


"Olhou sua própria mão/Sua rude mão de operário/De operário em construção/E olhando bem para ela/Teve um segundo a impressão/De que não havia no mundo/Coisa que fosse mais bela.
"E como tudo que cresce

Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão - 
O operário adquiriu 
Uma nova dimensão: 
A dimensão da poesia. 
E um fato novo se viu
Que a todos admirava
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não" 
"Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?"
O operário, que antes era reificado, se humaniza. Em ambos os textos, a humanização está no fazer poético. No entanto, no de Vinícius de Moraes o operário atinge a dimensão da poesia, enquanto no de Drummond, há ainda um grande distanciamento entre o eu-lírico, burguês, e o operário. Ainda assim, houve uma imposição, como fica clara na passagem:
"Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos."
Por fim, o operário de Vinícius termina seu processo de construção resistindo à tentativas do patrão em reverter o quadro com violência e suborno. O operário, já construído e consciente de seu poder continua dizendo não. Já o operário no mar, que se molhou e deixou o peixe escorrer por suas mãos, permanece no meio do mar enquanto o patrão se mantem em terra firme. 

A luta de classes, assim, tende à redenção operária. A conscientização, seguida pela união, é o principal instrumento da luta trabalhista. Após a revolução, seria formado um Estado em que a propriedade privada seria abolida e, por isso, não mais haveria classes antagônicas. A revolução geraria uma sociedade igualitária; sem exploração do homem pelo homem.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O primeiro herói malandro da literatura brasileira

Seria, na verdade, o primeiro herói malandro da literatura brasileira segundo Antônio Cândido um anti-herói? De fato, Leonardo, protagonista do romance "Memórias de um sargento de milícias" de Manuel Antônio de Almeida, distingue-se em diversos pontos do tradicional arquétipo de herói. Filho de "pisadelas e beliscões", o menino foi abandonado por seus pais quando criança e permaneceu sob os cuidados de seu padrinho, um barbeiro que havia "se arranjado" na vida. Este, um sujeito que nunca havia cultivado grandes amores, passou a amar cegamente o pequeno Leonardo, mimando-o e sendo passivo à suas frequentes travessuras e malcriações. 
"Era isso natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato"
Leonardo, desse modo, tornou-se bastante indolente, preguiçoso, e também muito esperto. Fora expulso da escola, onde sofria frequentes palmatórias, cruéis, porém não injustas, de seu pedagogo. Além disso, o menino, que manifestou certo interesse em se tornar sacristão, não por motivos religiosos, mas por possibilidades de travessuras, não cumpriu as expectativas do padrinho em se tornar clérigo. A possível carreira religiosa não progrediu: o garoto  aprontou uma de suas travessuras por vingança contra o mestre de cerimônias da igreja e terminou afastado. Não surpreende que, quando maior, o memorando tenha se tornado um rapaz suscetível a amores fáceis, sem vocação para o trabalho e que não respeitava autoridades; um rapaz de "maus bofes", segundo uma das personagens do livro.


"Era no tempo do rei"
Narrado em terceira pessoa, a classificação do romance como uma memória parece ser contraditória. A história, escrita em forma de folhetim entre 1852 e 1853, se refere a um tempo passado. Precisamente nos princípios da vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808. Ao longo da narrativa, a comparação entre as épocas em que o romance foi escrito e contado é bastante frequente e enfatiza as relações sociais baseadas no favor, em uma comunidade com carência de um sistema organizado de leis.

Nesse sentido, o livro representa um marco na literatura brasileira por, em pleno Romantismo, retratar classes populares da sociedade, buscando reproduzir linguagem e costumes próprios. O autor Manuel Antônio de Almeida é considerado um escritor de transição entre Romantismo e Realismo, já que sua obra apresenta traços de ambas escolas literárias. Além disso, já estavam lançados os primeiros sintomas de uma literatura modernista no Brasil: "Memórias de um sargento de milícias" chamou a atenção de Mario de Andrade, e é possível fazer algumas relações entre Leonardo e Macunaíma. Além disso, a busca por uma linguagem mais popular e espontânea era um prenúncio da brasilidade.

A tendência literária da época estava voltada para o nacionalismo, indianismo e sentimentalismos idealistas. No livro, Manuel Antonio de Almeida apresenta personagens com caráter duvidoso e moralmente questionáveis. A nobreza não é retratada, e temas como amor puro e ideal são abdicados em detrimento de amores fáceis, pequenas intrigas e revanchismos. Mesmo descrevendo camadas populares, falta ao autor a objetividade cientificista do realismo. Sua abordagem, diferentemente da realista, foi pela vertente humorística. O enquadramento a alguma escola literária é, de fato, complicado. Considerado por muitos como um romance romântico, as primeiras versões do livro eram assinadas com o pseudônimo de "um brasileiro", marca do nacionalismo. Apesar das travessuras, Leonardo é, de certo modo puro, e não queria mal à ninguém. É também sensível: se apaixonava facilmente, e no fim casou-se com seu primeiro amor. 
"Á proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas, começou Leonardo a sentir remorsos do papel de Judas que ali estava representando (...) -Ah! Sr. Teotônio, quer saber de uma coisa? Pois se puser o pé daquela porta para fora, o major [Vidigal] põe-lhe a unha, que para isso está ele à sua espera, e para aqui me mandou... Mas nada de sustos; tudo se há de arranjar, que eu tenho boa vontade disso."
Por fim, acima de todas as discussões sobre o caráter de Leonardo, heroísmo e anti-heroísmo, Realismo ou Romantismo, "Memórias de um sargento de milícias" demonstra características próprias e é, por isso, tão importante para a construção da identidade brasileira. Documentando camadas populares, a obra transcende o conceito de escola literária de modo muito original.