quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Che Guevara: o poder da imagem

Ernesto chegou a mim por meio do filme "Diários de motocicleta". A cena em que o protagonista Ernesto Guevara e seu companheiro Alberto Granado, sentados em uma mesa de bar com um mapa da América do Sul e uma caneta em mãos, traçam a rota do que seria uma viagem de motocicleta pelo continente jamais sairá de minha cabeça. A princípio, fiquei encantado pela ousadia que a viagem pressupunha: ir da Argentina a Venezuela de motocicleta; milhares de quilômetros a serem desbravados pelo velho veículo de Alberto, carinhosamente apelidado de la poderosa, passando pelos mais variados ambientes e também enfrentando a imponência da Cordilheira dos Andes. Ao longo do filme, pois, foi impossível não ser seduzido pela imagem de Ernesto, jovem, sonhador, cuja visão de mundo se transformava gradativamente durante o percurso. Em minha ingenuidade de estudante de Ensino Fundamental que faria um trabalho para a escola, fiquei absolutamente fascinado e queria ser como o tal Ernesto.
"O ser humano mais completo de nossa época."
J. P. Sartre 








Sabia que o filme era baseado em fatos reais e logo fui à internet pesquisar sobre o meu mais novo herói. Recordo-me da surpresa de quando associei o nome à pessoa. Ernesto era Che Guevara, nome que eu já ouvira tantas vezes. Surpresa maior ainda foi quando vi a famosa foto do comandante Che, que também já vira grafitada em muros, estampadas camisetas, em bandeiras no Maracanã e em diversos outros meios. Antes disso, pensava que se tratava, com certeza, de algum astro do rock. Assistindo, há pouco tempo, ao documentário "Chevolution", sobre a foto em questão, descobri que não era o único que pensava assim, pelo contrário. A foto por si só não precisa de explicações. Ao vê-la pela primeira vez, já se sabe que se trata de algo importante; uma entidade que carrega uma expressão que nos deixa com vontade de compartilhá-la.

Não tardou muito para que eu devorasse livros e filmes sobre Che Guevara. O primeiro que li foi um relato de Carlos Calica Ferrer, seu amigo e companheiro em uma segunda viagem pela América Latina. O livro, chamado "De Ernesto a Che", refletia perfeitamente o meu momento de descoberta da ilustre personalidade. Partindo da Argentina, Ernesto chegou à Guatemala, de onde partiu para o México, para então se tornar o comandante Che Guevara, na campanha de Sierra Maestra, em Cuba. O jovem Ernesto, leitor assíduo e intelectual, não se conformava com a pobreza extrema nos países por que passava. A Guatemala foi um local essencial para sua definitiva formação ideológica: lá presenciou um golpe de Estado, projetado pelos EUA, que derrubou um governo socialista. Para ele, a luta armada, a revolução e a propagação do socialismo seriam os únicos meios viáveis para reverter o quadro de pobreza presenciado em suas viagens. 

A partir de Che, conheci o comunismo, o socialismo, a esquerda, a Guerra Fria. Em uma maior amplitude, pude ter mais noção de sua representação e de sua importância para o cenário político e cultural do século XX. Outro livro que li a seu respeito se chamava "O verdadeiro Che Guevara - e os idiotas úteis que o idolatram". Senti-me de certo modo ofendido pelo título, o que despertou meu interesse pela leitura. O parágrafo introdutória imediatamente tratou de abalar parte do meu ideal acerca da ilustre e agora controversa personalidade: 
"Aquele homem em 'Diários de motocicleta', que amava os leprosos tal como Jesus, que atravessou um rio sob risco de vida para mostrar sua compaixão por eles, é o homem que declarou que 'um revolucionário deve se tornar uma fria máquina de matar movida apenas pelo ódio.' Como veremos, ele foi um espirituoso exemplo deste princípio. Este é o homem que se gabava de executar antes por 'convicção revolucionário' que por quaisquer 'antiquados detalhes burgueses'. (...)"
Creio, de início, que todos entenderam a simbologia da cena em que Ernesto, literalmente, atravessou o rio a nado. Faz parte do cinema criar metáforas com o intuito de funcionarem como acessórios para a trama. O rio que separava os leprosos dos médicos e enfermeiros do leprosário de San Pablo, no Peru, foi transposto pelo jovem Ernesto. Essa cena, o ápice do filme, serviu para evidenciar toda a transformação que a viagem lhe proporcionara. Esclarecido o "atravessar o rio a nado" ao autor do livro, Humberto Fontova, que, pertencente a uma bem abastada e convicta anti-comunista família cubana, fugiu para os Estados Unidos com a iminência da revolução, cabe aqui uma rápida análise da obra.

Humberto Fontova, em capítulos como "Nova Iorque festeja o Patriarca do Terrorismo", "O carrasco de roqueiros, gays e simpatizantes", "Bon vivant, queridinho da mamãe e esnobe", "De idiota militar a herói de guerilha" e "Assassino de mulheres e crianças", procura desmistificar Che Guevara. Em um estudo biográfico - que eu prefiro chamar de relato sensacionalista movido por convicções pessoais -, o autor é exaustivo na comparação ficção x realidade. Che é, no mais baixo nível, acusado de assassino, racista, sádico e covarde. A vitória na Batalha da Baía dos Porcos é questionada e sobra até para Hitler, Stálin e Mandela. É, inclusive, incrivelmente acusado de fascista. Além disso, infere-se que Che esteve sempre no lugar certo, e que seria apenas um andarilho, não fosse a Revolução Cubana.

Controversas à parte, Che, de fato, fuzilou e assassinou; era um defensor da luta armada como meio de se alcançar a revolução. Homem essencialmente movido por ideais, alegava motivos revolucionários e não contradizia o pensamento marxista nesse sentido. Sua fama e idolatria também muito se deve ao poder de sua imagem. Se é verdade que Fidel Castro e a mídia, sobretudo grandes publicações estadunidenses contribuíram para a idolatria universal de Che, também é necessário confessar que sua imagem tem uma poderosa tendência polarizadora. 



A sociedade é carente por ídolos. Logo, Che Guevara se tornou o herói rebelde, da esquerda, ídolo da juventude, de roqueiros, de "contrários ao sistema", de militantes políticos, presença certa em protestos e passeatas. A sua famosa fotografia, publicada nos mais diversos meios, é a principal força motriz para tal idolatria: produzida por Alberto Korda durante um discurso em público, o exato momento em que Che se prepara para anunciar uma triste notícia é captado. Seu aspecto preocupado, olhando ao fundo, sobre uma grande platéia eufórica, representa todo o seu caráter, determinação e firmeza, segundo o próprio fotógrafo. A ausência de direitos autorais da imagem na socialista Cuba contribuiu para a voraz propagação da fotografia, uma das mais famosas do século XX, por todo o mundo. Inúmeras variações foram produzidas, de modo que a imagem se tornou um símbolo universal, que rompe o idioma, com seu significante rapidamente compreendido; um verdadeiro ícone.

Essa rápida propagação da célebre fotografia também exibiu uma vertente destruidora. É inegável a capacidade de cooptação capitalista. Assim, muito se lucrou a partir do "Guerrilheiro Heróico", nome que a fotografia recebeu. Che Guevara foi verdadeiramente deturpado. Alberto Korda nunca exigiu nenhuma renumeração pelo seu trabalho exatamente por acreditar nos ideias de Che. Ele desejava apenas que tais ideais fossem sempre seguidos, e que a fotografia fosse usada como agregadora da luta revolucionária mundo afora.
"Como defensor dos ideais pelos quais Che Guevara morreu, não me oponho à sua reprodução por aqueles que desejam difundir a sua memória e a causa da justiça social por todo o mundo."
Ainda assim, o poder da imagem de Che vai além de uma fotografia. Ela foi, na verdade, o veículo para transmissão características tão evidentes e marcantes. Descristo como detentor de um sedutor e charmoso sorriso por jornalistas do The New York Times, sua aparência física chama a atenção. A boina com a estrela, a roupa de guerrilha, o verde-oliva, a barba, os longos cabelos e, eventualmente, o charuto, compõem sua caricatura. Tiradentes, promovido a herói republicano brasileiro, foi retratado à semelhança de Jesus Cristo por Pedro Américo. Che Guevara, por sua vez o herói da esquerda, naturalmente lembrava Jesus Cristo, semelhança clara quando comparamos a cena da morte de ambos.


Após o êxito da Revolução Cubana, procurou exportar a revolução. Acreditando que a revolução era um estado de espírito, participou de novas campanhas guerrilheiras. Passou pela África e chegou à Bolívia, onde foi capturado pelo exército local, com ajuda da CIA. Para entrar no país, em uma viagem de trem e ônibus a partir de São Paulo, Che precisou se disfarçar. Em seu diário de campanha, percebe-se seu comprometimento e seu zelo pela própria imagem. Escreve: 
"Meu cabelo está crescendo, embora muito ralo, e o cabelo grisalho vai ficando alourado e começando a cair; minha barba está crescendo. Mais uns dois meses, e serei novamente eu mesmo."
Um dos grandes homens da História recente, Che Guevara viveu até o final de sua vida seguindo apenas seus sonhos, seus ideais. Sua história inspira todos aqueles que esperam, de alguma forma, mudar o mundo. A sua determinação o tornou eterno e canonizado. Ele, de fato, foi precursor de um sentimento que perdurará; será, como um santo, evocado sempre em manifestações contra a ordem vigente. Sua face estará lá para sabermos que, se temos algum desejo, precisamos lutar por ele; se algo nos incomoda, temos o poder da transformação. Ele leu, viveu. viajou e suas experiências afetaram os rumos da humanidade.

Ele acreditava num mundo melhor. Já eu, acredito em Ernesto Che Guevara.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto sincero, também acredito na luta pelo que acreditamos desejar!

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