terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O primeiro herói malandro da literatura brasileira

Seria, na verdade, o primeiro herói malandro da literatura brasileira segundo Antônio Cândido um anti-herói? De fato, Leonardo, protagonista do romance "Memórias de um sargento de milícias" de Manuel Antônio de Almeida, distingue-se em diversos pontos do tradicional arquétipo de herói. Filho de "pisadelas e beliscões", o menino foi abandonado por seus pais quando criança e permaneceu sob os cuidados de seu padrinho, um barbeiro que havia "se arranjado" na vida. Este, um sujeito que nunca havia cultivado grandes amores, passou a amar cegamente o pequeno Leonardo, mimando-o e sendo passivo à suas frequentes travessuras e malcriações. 
"Era isso natural em um homem de uma vida como a sua; tinha já 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato"
Leonardo, desse modo, tornou-se bastante indolente, preguiçoso, e também muito esperto. Fora expulso da escola, onde sofria frequentes palmatórias, cruéis, porém não injustas, de seu pedagogo. Além disso, o menino, que manifestou certo interesse em se tornar sacristão, não por motivos religiosos, mas por possibilidades de travessuras, não cumpriu as expectativas do padrinho em se tornar clérigo. A possível carreira religiosa não progrediu: o garoto  aprontou uma de suas travessuras por vingança contra o mestre de cerimônias da igreja e terminou afastado. Não surpreende que, quando maior, o memorando tenha se tornado um rapaz suscetível a amores fáceis, sem vocação para o trabalho e que não respeitava autoridades; um rapaz de "maus bofes", segundo uma das personagens do livro.


"Era no tempo do rei"
Narrado em terceira pessoa, a classificação do romance como uma memória parece ser contraditória. A história, escrita em forma de folhetim entre 1852 e 1853, se refere a um tempo passado. Precisamente nos princípios da vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808. Ao longo da narrativa, a comparação entre as épocas em que o romance foi escrito e contado é bastante frequente e enfatiza as relações sociais baseadas no favor, em uma comunidade com carência de um sistema organizado de leis.

Nesse sentido, o livro representa um marco na literatura brasileira por, em pleno Romantismo, retratar classes populares da sociedade, buscando reproduzir linguagem e costumes próprios. O autor Manuel Antônio de Almeida é considerado um escritor de transição entre Romantismo e Realismo, já que sua obra apresenta traços de ambas escolas literárias. Além disso, já estavam lançados os primeiros sintomas de uma literatura modernista no Brasil: "Memórias de um sargento de milícias" chamou a atenção de Mario de Andrade, e é possível fazer algumas relações entre Leonardo e Macunaíma. Além disso, a busca por uma linguagem mais popular e espontânea era um prenúncio da brasilidade.

A tendência literária da época estava voltada para o nacionalismo, indianismo e sentimentalismos idealistas. No livro, Manuel Antonio de Almeida apresenta personagens com caráter duvidoso e moralmente questionáveis. A nobreza não é retratada, e temas como amor puro e ideal são abdicados em detrimento de amores fáceis, pequenas intrigas e revanchismos. Mesmo descrevendo camadas populares, falta ao autor a objetividade cientificista do realismo. Sua abordagem, diferentemente da realista, foi pela vertente humorística. O enquadramento a alguma escola literária é, de fato, complicado. Considerado por muitos como um romance romântico, as primeiras versões do livro eram assinadas com o pseudônimo de "um brasileiro", marca do nacionalismo. Apesar das travessuras, Leonardo é, de certo modo puro, e não queria mal à ninguém. É também sensível: se apaixonava facilmente, e no fim casou-se com seu primeiro amor. 
"Á proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas, começou Leonardo a sentir remorsos do papel de Judas que ali estava representando (...) -Ah! Sr. Teotônio, quer saber de uma coisa? Pois se puser o pé daquela porta para fora, o major [Vidigal] põe-lhe a unha, que para isso está ele à sua espera, e para aqui me mandou... Mas nada de sustos; tudo se há de arranjar, que eu tenho boa vontade disso."
Por fim, acima de todas as discussões sobre o caráter de Leonardo, heroísmo e anti-heroísmo, Realismo ou Romantismo, "Memórias de um sargento de milícias" demonstra características próprias e é, por isso, tão importante para a construção da identidade brasileira. Documentando camadas populares, a obra transcende o conceito de escola literária de modo muito original.  

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