“Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos no mar”.
Sob os prismas do nacionalismo e do trabalhismo, o Brasil se industrializava. Vargas assumira a presidência da República em 1930, e a ordem social brasileira sofria certas modificações. O país já havia presenciado um surto industrial e um movimento operário fragilizado, encabeçado por migrantes europeus, que vinham para o Brasil com ideais socialistas e anarquistas na bagagem. Na década de 1930, contudo, o surgimento da classe operária era uma realidade concreta.
O operariado, desse modo, tornou-se tema central de diversas manifestações artísticas, sobretudo modernistas. Tarsila do Amaral se sensibilizou com a condição operária em visita à antiga União Soviética - país socialista - e produziu quadros como "Operários", de profundidade e beleza singulares na arte engajada brasileira. Em sua viagem, percebeu contrastes entre o operariado francês e o soviético e passou a se preocupar com as adversidades dessa classe social. Chegou, inclusive, a trabalhar como pintora de paredes em um momento de dificuldades financeiras após a Grande Depressão de 1929, o que contribuiu para seu engajamento, já que vivenciara condições de trabalho precárias e insalubres.
"Operários" de Tarsila, pintado em 1933, é, assim, uma referência de representação artística do operário, figura idealizada da esquerda, cuja função seria, segundo Karl Marx, subverter os quadros de opressão burguesa. A primeira grande impressão que se tem da obra é a diversidade dos trabalhadores. A miscigenação, característica da sociedade brasileira e um dos pilares do movimento modernista, também era um tema importante para produções artísticas. Um segundo olhar nos revela, porém, que, apesar de características individuais marcantes, é difícil distinguir as faces de cada operário, de modo que todas parecem iguais. Isso torna a obra provocativa. Evidencia o sistema de massificação e reificação do homem. Além disso, o aspecto físico triste e cansado - nenhum sorriso - diante das cinzentas chaminés torna clara a frágil condição de vida dos trabalhadores industriais.
Também a literatura viveu sua fase engajada, de tendências marxistas, em que a produção era voltada para a realidade brasileira. Como exemplo temos "O operário no mar" e "Operário em construção", de Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes respectivamente. O primeiro escreveu "Sentimentos de Mundo" entre 1935 e 1940, período em que o mundo presenciava conflitos ideológicos que culminariam na Segunda Guerra Mundial. O segundo poema é de 1956, escrito diante da bipolaridade da Guerra Fria e sob os riscos de uma nova guerra mundial - enquanto o Brasil progredia com o processo de industrialização e modernização.
Vale aqui dialogar os dois textos:
"Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão (...)
Mas tudo desconhecia de sua grande missão(...)
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo sua liberdade
Era sua escravidão"
"O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?"
O primeiro trecho é de "Operário em construção", poema com versos e estrofes, e o terceiro é de "O operário no mar", texto em prosa. Ambos enfatizam, de início, a alienação do operário. Ele não tem consciência nem do valor de seu ofício nem, tampouco, de seu poder de mobilização. Um dos postulados de Karl Marx, que afirma que o operário não tem pátria (sintetizado pela célebre frase "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!), pode ser utilizado para a interpretar tal condição de alienação. O trabalhador é igualmente explorado em diversas partes do mundo, cabendo, assim, à revolução, em um contexto internacional, transformar a ordem social.
"O operário foi tomado
De uma súbita emoçãoAo constatar assombradoQue tudo naquela mesa- Garrafa, prato, facãoEra ele quem os fazia (...)Olhou em torno: (...)Casa, cidade, nação! (...)Soube naquele momentoQue ele mesmo levantaraUm mundo novo nasciaDe que sequer suspeitava"
"Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre?"
O operário começa a se conscientizar e se impor. Percebe que tudo o que existe, do garfo à nação, passando pela casa, é produto de seu trabalho. No texto de Drummond, ele é elevado à condição de santidade; atravessa o mar. Trata-se da iminência da revolução: quando o operário percebe a sua essencial função no modo produtivo e sua poderosa capacidade de mobilização, que exército irá impedir o milagre?
"Olhou sua própria mão/Sua rude mão de operário/De operário em construção/E olhando bem para ela/Teve um segundo a impressão/De que não havia no mundo/Coisa que fosse mais bela.
"E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vãoPois além do que sabia- Exercer a profissão -O operário adquiriuUma nova dimensão:A dimensão da poesia.E um fato novo se viuQue a todos admiravaO que o operário diziaOutro operário escutava.E foi assim que o operárioDo edifício em construçãoQue sempre dizia simComeçou a dizer não"
"Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?"
O operário, que antes era reificado, se humaniza. Em ambos os textos, a humanização está no fazer poético. No entanto, no de Vinícius de Moraes o operário atinge a dimensão da poesia, enquanto no de Drummond, há ainda um grande distanciamento entre o eu-lírico, burguês, e o operário. Ainda assim, houve uma imposição, como fica clara na passagem:
"Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos."
Por fim, o operário de Vinícius termina seu processo de construção resistindo à tentativas do patrão em reverter o quadro com violência e suborno. O operário, já construído e consciente de seu poder continua dizendo não. Já o operário no mar, que se molhou e deixou o peixe escorrer por suas mãos, permanece no meio do mar enquanto o patrão se mantem em terra firme.
A luta de classes, assim, tende à redenção operária. A conscientização, seguida pela união, é o principal instrumento da luta trabalhista. Após a revolução, seria formado um Estado em que a propriedade privada seria abolida e, por isso, não mais haveria classes antagônicas. A revolução geraria uma sociedade igualitária; sem exploração do homem pelo homem.
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