quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Trem da vida

"Isso mesmo, a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e grandes tristezas em outros.
Quando nascemos, entramos nesse trem e nos deparamos com algumas pessoas que julgamos, estarão sempre nessa viagem conosco : nossos pais. Infelizmente, isso não é verdade; em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho, amizade e companhia insubstituível... mas isso não impede que, durante a viagem, pessoas interessantes e que virão a ser super especiais para nós, embarquem.

Chegam nossos irmãos, amigos e amores maravilhosos.

Muitas pessoas tomam esse trem apenas a passeio. Outros encontrarão nessa viagem somente tristezas. Ainda outros circularão pelo trem, prontos a ajudar a quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas, outros tantos passam por ele de uma forma que, quando desocupam seu acento, ninguém nem sequer percebe.

Curioso é constatar que alguns passageiros que nos são tão caros, acomodam-se em vagões diferentes dos nossos; portanto, somos obrigados a fazer esse trajeto separados deles, o que não impede, é claro, que durante o trajeto, atravessemos com grande dificuldade nosso vagão e cheguemos até eles... só que, infelizmente, jamais poderemos sentar ao seu lado, pois já terá alguém ocupando aquele lugar.

Não importa, é assim a viagem, cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, despedidas... porém, jamais, retornos. (...)

O grande mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada desceremos, muito menos nossos companheiros, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado. (...)

Amigos, façamos com que a nossa estada, nesse trem, seja tranquila, que tenha valido a pena e que, quando chegar a hora de desembarcarmos, o nosso lugar vazio traga saudades e boas recordações para aqueles que prosseguirem a viagem."
Silvana Duboc 

Produções culturais sobre o holocausto nos oferecem inúmeras possibilidades e desafiam a criatividade de artistas, escritores, músicos, dramaturgos e cineastas. "Trem da vida", filme francês, trata o tema de um modo bastante surpreendente. Ao trazer a diversidade e a complexidade das disputas ideológicas que fundamentaram a Segunda Guerra Mundial para dentro de um trem, o drama dos judeus é exposto de um modo único.

Era 1941. Os nazistas partiam rumo a um pequeno vilarejo na Europa Ocidental para deportar a comunidade judia. Diante dessa ameaça, os habitantes do vilarejo procuraram, às pressas, encontrar uma saída para não serem capturados. Em meio a toda a agitação, Scholomo, portador da notícia e tido como um louco, foi o único capaz de oferecer uma efetiva solução: todos deveriam encenar a própria deportação, em um trem. Uns fariam o papel dos nazistas, outros dos prisioneiros, outros dos maquinistas e assim por diante. Logo, todos se uniram para promover a ideia: confeccionaram as fardas nazistas, falsificaram documentos, tiveram aulas de alemão e agregaram recursos para a compra de uma locomotiva, veículo da fuga. Antes de o verdadeiro exército alemão chegar, os habitantes partiram em um trem forjado com destino à Terra Prometida, com uma parada na Rússia antes. Tudo estava dentro do planejado, até que as encenações começaram a ultrapassar o limite da ficção. Os nazistas ficaram autoritários, e ideais marxistas estavam se disseminando entre os prisioneiros, que ensaiavam uma rebelião. O Rabino da comunidade, diante dos conflitos, procurava unir todos sob o prisma da religião.

"É o maior trem do mundo, mais rápido do que um relâmpago"
Após esforços de todos, conseguiram montar o trem nos moldes nazistas, decorando-o com suásticas e pintando os vagões dos deportados com cores diferentes da dos oficiais. O trem representou uma renovação de esperanças, o caminho da vida. Todos passaram a sorrir, pensavam apenas em chegar à Palestina, a Terra Prometida, onde poderiam ser felizes. As crianças do vilarejo se espantavam com tamanha grandiosidade. Para eles, estavam diante da maior realização humana. O comboio, tal qual a retirada de Moisés do Egito, seria o caminho espiritual que levaria todos os judeus à sua sagrada terra. A viagem também exibia, assim, um motivo religioso; um êxodo particular para o vilarejo. A metáfora da vida estava formada em um trem, que conduzia uma rica diversidade cultural e ideológica em cada vagão, desbravando um caminho unidirecional - porém incerto - sem retornos para a inércia, carregando a memória de um povo que estava sendo ameaçado. Diferentemente do real trem nazista, que devastava a Europa, este simbolizava a poesia, a ilusão e a loucura.

Logo no início da viagem, contudo, a personalidade das personagens se altera. Uma filha comunica ao pai que está apaixonada por um rapaz. O pai não aprova, julgando o garoto nazista e comunista, cometendo um erro histórico que demonstra a ingenuidade e a fraqueza do espírito humano. As ideologias funcionam como máscaras, e o filme segue de modo inverossímil: o Rabino que se veste de nazista, o judeu que vira comunista e deixa de acreditar em Deus, o cigano que beija a suástica. Os rótulos que a História impõe são retratados como frágeis diante da natureza humana. A religião, que funcionava perfeitamente como associadora de valores, costumes e pessoas, torna-se secundária para a vida no trem. Em um momento de oração, aqueles que encenavam os nazistas se recusaram a tirar os quepes e capacetes sob a justificativa de que a guerra era verdadeira. Além disso, decretaram que seria permitido orar com tais vestimentas, ignorando os brados do Rabino, que lembrou que era tudo uma encenação. A mesma reza não seguiu muito bem: a corrente comunista também ignora os ensinamentos do mestre e convocam uma "reunião do partido". Começam, sobretudo, a questionar a existência de Deus. Os nazistas - mesmos que transpuseram  uma determinação religiosa - se enfureceram com a conduta dos comunistas e iniciaram uma grande briga entre a esquerda e a direita. Scholomo, o louco, procurou conciliar os dois lados e cumpriu seu objetivo:
"Já se perguntaram se nós existimos? 'Deus criou o homem à sua imagem'. Isso é lindo. Scholomo, a imagem de Deus! Mas quem escreveu essa frase na Torá? O homem... não Deus. O homem... a escreveu sem modéstia, comparando-se a Deus. Talvez Deus tenha criado o homem. Mas o homem, o filho de Deus, criou Deus só para poder se inventar. O homem escreveu a Bíblia por medo de ser esquecido, sem se importar com Deus. Rabino, nós não amamos e nem oramos a Deus, mas lhe imploramos para que nos ajude a continuar adiante. É o que nos importa de Deus. Só pensamos em nós mesmos. Agora a questão não é só saber se Deus existe, mas se nós existimos."
Judeus fazendo o papel de nazistas, rezando com a vestimenta militar.
Sem terem lido Karl Marx, os comunistas queriam o direito de dormir nos vagões alemães. Provando que o comunismo é uma vocação intuitiva, essa corrente ia ganhando novos adeptos. Para o Rabino, a comunidade estava se destruindo. Ele questiona se parece um chimpanzé. Alguns tentam fugir e são recapturados. Ouvindo a história de chapeuzinho vermelho, em que o mal se disfarça de bem, uma criança pergunta por que a terra é santa em apenas um lugar. A mãe idealiza um mundo sem países e sem religião. A essa altura o vilarejo já havia sido queimado pelos verdadeiros nazistas. Com documentos falsos, os fugitivos conseguiam superar postos de fiscalização alemães, embora o trem nunca aparecesse no quadro de horários. A mesma moça que não teve sua paixão aprovada pelo pai, despe-se na frente de seu pretendente, perguntando se não era melhor do que Marx, Engels e Lenin. Na cena seguinte, o rapaz se retira do partido comunista formado durante a viagem. Ao mesmo tempo, os comunistas começam a querer expulsar integrantes do partido por digressão. O jogo de poder estava evidente: os nazistas davam ordens, inclusive nos verdadeiros oficiais que encontravam pelo caminho, e gostavam disso.  

Scholomo
A pergunta existencial de Scholomo é o trilho pelo qual o trem da vida passa. Existimos de fato? Não se sabia mais o que era religião, materialismo, fascismo ou comunismo. As personalidades variavam muito facilmente. Uma vez dotados de poder, os nazistas agiam como se fossem superiores aos seus vizinhos, amigos e familiares. Fascistas brigavam com comunistas e logo depois se abraçavam. Do mesmo modo como os habitantes do vilarejo tiveram que se inventar para fugir, chega-se a conclusão que o homem é, de fato, uma invenção, assim como todas as ideologias, que não cumprem o papel de criar rótulos e entidades; a natureza humana se demonstra incapaz de seguir ideologias.

Antes de chegarem à Rússia, ainda encontram uma expedição forjada de ciganos, que tiveram a mesma ideia de Scholomo, mas que não conseguiram um trem. Estavam com esperanças de se apropriarem do trem da vida. O comandante dos ciganos manda revistarem o trem, e o comandante dos judeus tenta impedir. Após alguns conflitos, Scholomo novamente consegue conciliar os dois lados, encontrando seu irmão do lado dos ciganos e afirmando que não havia alemães ali. A locomotiva agora abriga também os ciganos, que trazem novas ideologias e alimentam a diversidade cultural dos vagões.

Após chegarem a Rússia, Scholomo, que também narrava a história, conta que nem todos foram à Terra Prometida, mas que terminaram seguindo seus sonhos e sendo felizes. Ele, contudo, como um herói romântico, foi aquele que se sacrificou pelo bem dos demais. Apesar de ser o louco, teve a sensibilidade de conceber a ideia de fuga e agia como se fosse o Deus daquilo tudo, de modo que pode condenar o processo de auto-invenção humana. Seu final pode ser interpretado como uma aproximação do sentido bíblico do Holocausto - oferenda, ato de adoração a Deus - ao sentido histórico - massacre judeu na Segunda Guerra Mundial.
"Um dia parti num trem, para muito longe. Shtetl, shtetl, shtetl [vilarejo judeu] Não me deixe esquecer dos olhos das pessoas, é o que ainda me mantem vivo. A sublime loucura, a sublime loucura do trem da vida." 

3 comentários:

  1. Um dos projetos que tenho é o de estudar cinema... Comprei recentemente um livro que alia Filosofia e Cinema em 40 filmes emblemáticos. Parabéns pela iniciativa!

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    1. Rogério! Muito obrigado, mestre! É realmente uma honra tê-lo como leitor. Vou seguir com o projeto. Qual é o nome do livro? Ando me interessando muito por cinema e, claro, literatura.

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