terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Em fuga

Preso entre quatro paredes, mantido ali dentro para sempre. Tenho medo de jamais ver alguém como a senhora, mamãe. Resolvemos agir. Introduzimos guitarras e sintetizadores ao cântico. Então fazemos preces mantendo o andamento da canção. Se um dia eu sair daqui, doarei meu dinheiro à uma caridade registrada e brindarei uma caneca de cerveja por dia; se um dia eu sair daqui, minha vida será diferente. Um som de orquestra nos confere contornos épicos e indica o otimismo da nova fase de nosso hino. Pulamos o muro, saímos de nosso confinamento e agora todos nos procuram. O carcereiro e o marinheiro não nos encontraram. O agente funerário se preocupa com nossa ausência. O ressentido juiz do Condado, por sua vez, não tem ninguém para julgar. Porém nunca nos encontrarão. Somos a Banda em Fuga e estamos nos divertindo.

No dia 25 de novembro encontrei Paul McCartney, o idealista de Band On The Run, da Banda em Fuga. Na metade final de sua apresentação, introduziu os serenos acordes iniciais da canção, que duraria cerca de cinco minutos. Naquele momento fui convidado a olhar dentro de mim mesmo. Tive que viajar em meu interior com os pensamentos que a música me trouxe. Ouvi o álbum homônimo exaustivamente ao longo do ano. Entre tantas idas e vindas, com tantas horas na estrada, Band On The Run foi minha trilha sonora dos últimos tempos, em que minha vida mudou drasticamente. 


Cabe aqui, a princípio, conversar sobre a composição do álbum, fonte de inspiração deste texto, e sobre as circunstâncias em que foi produzido. No ano de 1973, passada a comoção após a dissolução dos Beatles, Paul McCartney precisava se superar. Nesse caso, sua tarefa não seria das mais fáceis: competir consigo mesmo; com o Beatle Paul, seu passado recente e de extremo sucesso. Essa superação significava entrar no mundo real, sair do sonho que há pouco acabara. Ele, que permaneceu na banda dos 15 aos 28 anos, afirmava não saber ser outra coisa além de um Beatle. Teve que se reinventar e se adaptar às circunstâncias. Passou dias difíceis e sem muita perspectiva, isolado em uma fazenda na Escócia, procurando formar um porto seguro com a família que estava montando. Alcançou certo sucesso com algumas composições. A redenção, contudo, só veio com Band On The Run. Para produzir o álbum, decidiu sair da mesmice da Inglaterra e partiu para um lugar deveras exótico: Lagos, na Nigéria. Com esse distanciamento, pode se concentrar na sua arte e encarar seus novos desafios. Foi sua fuga. Concebeu um álbum de alta categoria - impecável da arte da capa ao repertório - um dos definitivos do Rock, cujas músicas dialogam entre si. Foi também sua autoafirmação. Teve a certeza de que era capaz de compor como compunha nos tempos de Beatles. Passou a ser McCartney, não mais Lennon-McCartney.

Enquanto eu viajava ouvindo Band On The Run no em minha vida antológico dia 25 de novembro, percorri por todos os caminhos que me levaram à minha própria fuga. De repente o cenário de minha vida mudou e eu não morava mais na casa de meus pais. Eu arrumava a mala para o que parecia um passeio comum, mas, quando percebi, estava me mudando de cidade. Meu mundo cresceu e minha quilometragem aumentou. A rodovia Imigrantes era a rua de minha casa, e a Presidente Dutra, a avenida do meu bairro. Eu estava, agora, em Santos. Minha noção de distância se alterou. Percorrer duas quadras na pequena cidade de Santos parecia demasiadamente maior do que no Rio de Janeiro. Por outro lado, os 500 km que separam as duas cidades se demonstraram desprezíveis diante do mundo que se estendia diante de mim.

Paul é um velho amigo, de longa data. Vimos-nos presencialmente em duas ocasiões: em 2011, no Rio, e agora em 2014, em São Paulo. Lembrei-me de quão bom é ter uma predileção quase exclusiva por um grupo seleto de músicos. As mesmas melodias nos remetem a mais de um momento de nossas vidas, e podemos fazer uma autocrítica de nosso amadurecimento. Como afirmou certa vez o Bruxo do Cosme Velho, cada estação da vida é, afinal, uma edição que corrige a anterior e que será também corrigida. A obra final, no entanto, é uma só. O menino que ouvia The Long and Winding Road  memorando um passeio de bicicleta no interior da Baviera é o mesmo que ouve a música percorrendo as longas e tortuosas curvas da estrada de Santos. A maneira de assimilar os sons, contudo, é diferente. A música possibilita navegarmos por diversas edições do livro que conta a história de nossas vidas.


O menino de outrora, com efeito, não havia percebido que a estrada a que Paul se refere em sua canção, ao mesmo tempo que deixa uma poça de lágrimas, guia-nos até novas portas. Estamos agora diante do enigma da fronteira. Atravessá-la consiste em, necessariamente, deixar algo conhecido e rumar em direção ao novo. Nosso dever é deixar legados que nos permitam ser sempre bem-vindos ao nosso local de origem, e construir bagagens que possam nos levar aonde bem entendermos. Para decifrar o enigma é necessário compreender que a fronteira, na maioria das vezes, não é física. São circunstâncias da vida que indicam a hora da mudança, de fuga da inércia, de enfrentamento de desafios. Transpor a fronteira é explodir as guitarras em Band On The Run.

A viagem introspectiva que fui convidado a fazer estava acabando, assim como os cinco minutos da canção. Já havia passado pela primeira parte, de medo do cárcere. Os acordes serenos sublimavam toda a obscuridade daquela condição. Devemos tomar cuidado com as impressões; a parte mais calma da música era, também, a mais sombria. Do mesmo modo, adentrei à segunda parte, da fuga propriamente dita. A parte mais curta e intensa. Das adversidades, ficou claro que sempre há, a um pequeno passo, uma possibilidade de ação. Agora eu desfrutava da última parte, brindando uma cerveja por dia.


Voltei, então, para Santos e troquei o som de Band On The Run pelo estrondo das buzinas de navios que se aproximavam do porto, que irrompem em notas baixas como na Quinta de Beethoven. Sons igualmente prazerosos. Admirava o mar sem fim, o mesmo que banha o Rio de Janeiro, a África, Europa e toda a América. Do horizonte, observava navios vindo de muito longe chegarem, trazendo consigo seu som, dispersado aos quatro ventos em todas as entranhas da cidade. Meu veículo era apenas uma bicicleta. Com ela eu estava em constante contato com o meio; andava com o vento tocando o rosto, trazendo cheiros e sensações dos lugares por onde eu passava. Não precisava mais de muito. Estava me divertindo, e ninguém mais poderia me encontrar. Como na canção, eu acabara de me tornar um fugitivo.

If I ever get out of here, if we ever get out of here

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Cinema, aspirinas e urubus


Contra todos os males do sertanejo


Essa história é contada sob dois pontos de vista. De um lado, um alemão se reinventa no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Do outro, um sertanejo busca meios de tentar a vida. A interseção entre esses dois planos de fundo ocorre nos sertões de Pernambuco. Para um, lugar deleitoso de paz, inocência e renovação; para outro, lugar a ser deixado, matriz de desgraça e sofrimento.

Há três meses dirigindo pelas estradas de um Brasil ainda primitivo, o alemão Johann, com sua caminhonete, vende medicamentos dispondo de uma poderosa propaganda: o cinema. De vila em vila, ele exibe curtas cenas do polo de modernização do Brasil na década de 40, o eixo Rio-São Paulo, para uma população que nunca teve a possibilidade de se desprender de sua terra atrasada. Ao fim de cada exibição, a aspirina, remédio para dor de cabeça de patente alemã, prometia acabar com todas as dores do ser-humano.

Nesse contexto, o pernambucano Ranulpho, conhecedor das veredas do sertão, oferece seu serviço ao alemão em troca de carona. Apresenta-se com a ambição de chegar ao Rio de Janeiro.
-O senhor vem da onde?
-Da Alemanha.
-Perguntei de onde o senhor começou essa viagem, de onde o moço vem com esse caminhão, não de onde o moço é.
-Comecei no Rio de Janeiro.
-Eu vou para onde o moço veio, tentar a vida. Cansei desse lugar aqui, desse buraco. O senhor parece cansado.
-São três meses de viagem, e agora esse Brasil parece que não acaba nunca.
-Lugar que não presta é assim, demora pra acabar.
Um acordo de cavalheiros é firmado e uma amizade começa de modo tímido e com certa desconfiança. Ranulpho permanece inquieto sobre os reais efeitos do remédio. Afirma que naquela terra só se vende o que mata a fome do povo. Na primeira parada de sua jornada, após a primeira exibição do filme que presencia, contudo, fala, encantado, que é como vender Bíblia para Satanás. Ao mesmo tempo em que se entretém com um mapa do gigantesco Brasil, pergunta a Johann se cinema de verdade também é feito no meio da rua com dois pedações de pau.




Enquanto Ranulpho se deslumbra com o cinema, a parafernália e o automóvel de Johann, o alemão fica curioso com uma convocação, na rádio, de voluntários para o trabalho de seringueiro na Amazônia. Faz muitas perguntas ao sertanejo, que desdenha dos "soldados da borracha". Segundo ele, o governo explora os miseráveis do Nordeste para que possa vender borracha para os Estados Unidos usarem na guerra. Ranulpho retruca com novas perguntas sobre o serviço de Johann. Indaga se é necessário ser alemão e ter estudo.
-O trabalho é bom?
-É, a viagem é a melhor parte.
-Já foi pra onde?
-Quase o Brasil todo.
-É, já vi que o negócio do moço é viajar mesmo. Gosta até de viajar para esse lugar infame.
-E o senhor, viaja muito?
-Viajo só a trabalho. É isso é ponto. O que o senhor acha de tão interessante em um lugar miserável como esse?
-Nunca estive em um lugar assim.
-Aqui é seco e pobre.
-Pelo menos não caem bombas do céu.
Após algum tempo de viagem, Ranulpho procura afastar de si o carma do sertanejo. Em conversa com Johann, reclama das constantes paradas para carona, ao que responde igualando-o aos pedintes. Não fosse o pedido de carona, afinal, Johann e Ranulpho não teriam se conhecido. Em uma das tantas pausas, conhecem uma moça que saía de casa após ser expulsa pelo pai embriagado. Iria até a próxima cidade pegar um trem para Recife, onde vivia sua irmã. A moça desperta o interesse dos dois rapazes, que entram em conflito pela primeira vez. Após uma exibição do filme e conversas sobre a felicidade ilusória do cinema, o alemão vence a disputa pela moça. Na manhã seguinte, enquanto ela sumia na Caatinga, Johann e seu fiel escudeiro, cabisbaixo, seguiam seus caminhos. Ranulpho via no alemão e em seu maquinário a imagem do que gostaria de ser.

Uma picada de cobra deixa Johann próximo a morte. Ao mesmo tempo, a rádio anuncia o bombardeio de um navio brasileiro por submarinos nazistas. Em seu leito, Johann pede para que Ranulpho conte uma história, que, quando percebe que Johann adormeceu, decide contar a história de sua própria vida, a única que conhecia. Inicia-se o belo monólogo sobre o drama do sertanejo.
"Penei mas cheguei lá, na capital. Quando a fome bateu eu voltei. Fiquei com medo de morrer de fome. Pensa que levar uma derrota nas costas é triste? Também, lá é assim, nordestino só serve de mangação. Juntava o povinho todo e ficavam falando: 'fala aí de novo, rapaz', 'mais um paraíba', 'é verdade que você bota a peixeira embaixo das calças que nem cangaceiro?', 'você come calango?'. Aí eu abaixava a cabeça. Agora não, agora vai ser diferente. Agora vou chegar e falar assim: 'como é, rapaz? Grita aí de novo... calango? Como calango como como o cu da sua mãe, filho da puta!' Eu vou pegar a carteira de trabalho assinada com a fábrica da Aspirina e mostrar na cara dele assim. Depois vou mandar uma carta para minha mãe contando do novo funcionário da fábrica. Ela vai abrir e ler para todos os moradores de Bonança ouvir."
Na cena seguinte, Ranulpho, sozinho, liga o equipamento de montagem cinematográfica do alemão e usa sua própria mão como anteparo para assistir às imagens do Rio de Janeiro, alvo de sua jornada.



Em um decreto do dia 31 de agosto de 1942, o governo brasileiro de Vargas declara guerra à Alemanha e seus aliados. A empresa Aspirina, assim, é interditada e seus dirigentes condenados à prisão, que determinaria a permanência em campos de concentração no interior de São Paulo ou a deportação. Como numa brincadeira de criança, Johann e Ranulpho se tornam adversários de guerra em um campo de batalha imaginário. É nesse momento que a jornada dos dois tomará contornos distintos.

Diante de uma carta de prisão, Johann pinta sua caminhonete e decide ir disfarçado para a Amazônia extrair borracha. Ranulpho, que era a sombra do alemão, recusa o convite de ir junto e decide traçar seu próprio caminho, na capital.
"Que situação desse povo, perdeu tudo e ainda é obrigado a ir para aquele fim de mundo, eu não quero isso para mim não. Vou enfrentar, vou fazer o que você vai fazer lá na Amazônia, vou fazer meu destino.
E por que não pode ser lá?
Porque meu destino é outro."
Momentos antes de partir para a Amazônia, todos os novos aspirantes a soldados da borracha se reúnem na estação de trem. Ranulpho, após se autopromover durante toda a jornada como superior a seus semelhantes, fica indignado quanto ao modo como os soldados tratavam os sertanejos. Johann, a propósito, agora se juntara ao grupo dos flagelados, castigados. Ranulpho articula uma manobra para despistar os soldados e embarcar o alemão no trem. Em troca, recebe as chaves da caminhonete. Estava realizado.

Perante a estrada que se alongava diante de si, seguiu, sorridente, o caminho que ele próprio escolheu. Com a palma de suas mãos empunhando o volante, e com a ponta dos pés acionando o motor de sua caminhonete, estava livre para ir aonde quisesse.

sábado, 23 de agosto de 2014

48h na Primavera Árabe

Pisar no Egito foi uma sensação fascinante. A História do país é sua própria grandeza: dentre todos os estados modernos, o Egito é um dos que possuí mais longa e contínua habitação, datada do 10º milênio a.C.. A dádiva do Nilo, rio que conferia ao território áreas férteis em meio ao clima seco e árido do Saara, desenvolveu, ao longo de três milênios, muitas das bases para a formação da humanidade. Como resultado, todo legado, sobretudo artístico e arquitetônico, instigou o imaginário de artistas, pesquisadores, exploradores e viajantes de todos os cantos do mundo.

Sem dúvida, as pirâmides de Gizé, harmoniosamente complementadas pela Esfinge,  são a mais perfeita síntese de todo misticismo acerca do Egito. Com efeito, minha visita resumiu-se às pirâmides, e delas consegui ter a impressão de todo o país.

Na semana que antecedeu minha viagem, a imprensa começou a relatar uma série de manifestações na capital Cairo. Eu jamais poderia imaginar que tais manifestações iriam se tornar, adiante, parte da onda revolucionária chamada de Primavera Árabe. O visto em meu passaporte crava a data de 24 de janeiro de 2011 como minha entrada no Egito. O aniversário da revolução é comemorado a cada dia 25. Quando cheguei ao aeroporto de Cairo, recordo-me de ter sido atendido por uma mulher na aduana, o que logo me causou uma boa impressão, já que se supõe que o trabalho feminino não é comum em regimes árabes. Seguindo em frente, encaminhei-me para a condução rumo ao hotel, onde tratavam de me tranquilizar quanto aos protestos e me desejavam uma boa viagem. Já era bem tarde. No dia seguinte eu realmente iria saber que a revolução não só era inevitável, como iminente.

Instalei-me nas proximidades das grandes pirâmides de Gizé, região afastada do centro de Cairo. Em meu primeiro dia completo no Egito, iria à Cidadela e ao Museu Egípcio, um dos mais notórios do mundo e famoso, especialmente, pela sala das múmias, com alguns dos mais poderosos faraós do Egito Antigo, como Ramses II e a Rainha Hatshepsut. Além disso, o museu inclui em seu acervo todos os exuberantes artefatos do faraó Tutankhamon. O empecilho à visita era o fato de ele se localizar na Praça Tahrir, icônica por ter sido o polo dos movimentos revolucionários. Era conveniente, assim, visitar as três grandes pirâmides do Egito.



Tal foi o momento sonhador, inspirador da viagem. As pirâmides são de tamanha grandiosidade, que descrevê-las torna-se uma tarefa trabalhosa e arriscada. Suas dimensões são absolutamente impressionantes; nada no mundo inteiro pode ser comparado a elas. Cada passo nas areias do Saara, com as pirâmides em vista, rendia uma oportunidade única de admirá-las por um novo ângulo, sob novas perspectivas. Tão estáticas quanto comoventes, trata-se da maior obra da humanidade, sobretudo quando são considerados os recursos tecnológicos disponíveis a época para sua construção. Suas formas e geometria perfeitas, que alcançam alturas inacreditáveis, aproximam o Homem da perfeição, do mundo celestial. A esfinge, por sua vez, impressiona por seu mistério, por sua origem desconhecida, pela simbologia de seu enigma; aquela que, se não decifrada, devora-te.



O lado bestial humano, em uma antítese à imagem divina das pirâmides, também estava presente naquele cenário. Violência, trapaças, subornos, em seus mais diversos âmbitos, eram práticas naturais ali. Quando entrei no sítio, sob a recomendação de não iniciar conversas com vendedores de lembrancinhas, logo me colocaram um turbante na cabeça. Tirá-lo sem perder alguns dólares não foi tarefa fácil. Tinha que desviar, a todo momento, desses numerosos vendedores, que, inclusive, me puxavam pelo braço. O policiamento ali era forte, porém sem propósitos. Em uma ocasião, me aproximei de uma pequena ruína. Perguntei ao guarda ali mais próximo se era permitido tocar e subir nas pedras. Com a resposta afirmativa, segui em frente. Lá de longe um outro guarda me mandava descer. Fiquei em uma encruzilhada de permissões, sob julgamento do poder arbitrário. Quando desci, o guarda que havia me liberado a passagem começou a me extorquir. Pedindo, inicialmente um dólar americano, exigia cada vez mais, repetindo que tinha uma família para sustentar. Em um outro momento, flagrei uma briga entre um desses guardas e um rapaz que aparentemente oferecia passeios em uma carroça puxada por um cavalo. A autoridade policial, representante do poder ditatorial, era ali confrontada de cabeça erguida pelo rapaz, que revidou as agressões sofridas. Era um indício da revolução.

Após a visita às pirâmides, fui ainda a um ateliê de arte em papiro, em que um artista, com um português fluente, ensinava-nos as técnicas de confecção. A tarde iria a um outro complexo de pirâmides. Contudo, recebi a notícia de que a Revolução egípcia houvera eclodido. Logo tive que retornar ao hotel, onde todos os portões foram fechados. Na rua, mesmo afastado do centro, já conseguia ver movimentação de forças militares. Pelo restante do dia eu não poderia mais sair do hotel. Em um dado momento, um acontecimento indicou a impossibilidade de permanecer no país por questões de segurança. Durante o almoço, no restaurante do hotel, uma forte agitação começou e todos receberam avisos de que deveriam ir para os seus respectivos quartos. Logo começou uma grande gritaria. Ninguém podia explicar o que estava acontecendo. Os seguranças do hotel corriam com espadas em mãos, e os cozinheiros do restaurante, com panelas.

Tenso e desnorteado, tranquei as portas do meu quarto, dirigi-me à janela e comecei a bolar rotas de fuga. Mais calmo, liguei a televisão e comecei a acompanhar, ao vivo, por canais de televisão locais e internacionais, todo o movimento na Praça Tahrir. Decidimos que deveríamos sair do país. Para agravar a situação, todos os meios de comunicação foram cortados, em uma tentativa do Estado de inibir a mobilização do povo. Passado um tempo, um rápido olhar pela porta entreaberta revelou a calmaria já restabelecida. Fora do quarto, todos os hóspedes procuravam entender o que estava acontecendo. Em conversas no saguão de entrada, uma inglesa afirmou que para brasileiros tal situação não deveria ser muito assustadora, já que supostamente nos deparávamos com conflitos similares quase todos os dias. Confinados no hotel, hóspedes mulheres reclamavam de assédios de um funcionário. Dono de uma loja, o senhor as bajulava e depois as chamava para conhecer seus produtos. Era quando, mesmo em um hotel com grande circulação de ocidentais, o senhor aplicava uma prática aceitável no mundo árabe e tentava agarrá-las a força. Conseguimos marcar com um taxista uma ida ao aeroporto de Cairo na manhã seguinte, antes do horário da reza, já que somente após o rito as manifestações começavam. Sem meios de comunicação disponíveis, a única possibilidade de tentar sair do país se baseava nos contatos pessoais.

Passei o restante daquele dia na varanda da piscina do hotel, admirando a beleza das pirâmides. Era um momento de paz perante o clima de guerra civil.



Assim, saí bem cedo do hotel em direção ao aeroporto. O percurso, bem longo, foi a única oportunidade de conhecer as entranhas de Cairo. No caminho, havia muita movimentação de forças armadas e avenidas fechadas. Impossibilitados de seguir o trajeto conveniente, pelas vias principais, meu taxista, com muita destreza, traçava rotas alternativas. Passamos por um lixão, com habitações precárias e pessoas fazendo daquilo um meio de vida. Com a riqueza de todo o país concentrada nas mãos de um ditador, pude ver a miséria de perto. Do carro, avistei também a Citadela, imensa construção que funcionou como sede do governo egípcio por 700 anos. Já perto do aeroporto, passei ainda em frente à mansão de Hosni Mubarak - ditador que seria deposto-, extremamente luxuosa e policiada.

A multidão e as bagagens dignas de uma viagem de vinte dias pelo Egito dificultavam a locomoção no aeroporto. Muita gente e pouca informação. Havia filas imensas por todas as partes. Procurava chegar ao guichê da Ibéria, companhia aérea que nos levaria a Madri após o tempo previsto de estadia no Egito. Entre uma parada e outra, surgiam possibilidades alternativas de sair do país: uma delas seria ir de ônibus à Tel Aviv, em Israel, a cerca de 700 km dali. Uma rota que passaria próximo à Faixa de Gaza. De certo modo, experienciei o drama de refugiados de guerra e me sentia como um.

Mais tarde chegou a notícia de que aviões ianques estavam a caminho para retirar os estadunidenses do Egito. Enquanto isso, eu ainda não sabia o que iria acontecer. No final da tarde, fui a um hotel próximo ao aeroporto, também lotado e bastante confuso. Eu e minha família conseguimos um quarto pelo dobro do preço e em que não cabia todos nós quatro. Ainda sem respostas da Ibéria, foi necessário gastar uma madrugada no aeroporto. Dali para frente, entre muita briga, tensões, comunicados importantes em árabe, e tréguas para reza, entramos em uma lista de espera para um voo rumo a Madri. Despertamos bem cedo e ficamos à espreita. Sem mais sustos, conseguimos vagas para o voo, que saiu na tarde daquele dia. Do avião me despedi de Cairo e vi as pirâmides pela última vez. Chegamos a noite na Espanha. Na saída do voo, a imprensa espanhola compareceu em peso para documentar relatos dos primeiros espanhóis foragidos do Egito.

Os conturbados dias no Egito me provocaram uma ambiguidade de sentimentos. Todo meu entusiasmo em chegar ao país foi convertido em necessidade de deixá-lo. Foi com muito pesar que entrei naquele avião em direção à Espanha. Optei por olhar o lado positivo do acontecimento e atingi certo conforto. Vivi um momento singular, que marcou minha vida, a História do Egito e a da política internacional. Vi um povo pobre e explorado se mobilizar espontaneamente por uma causa comum, pela cabeça do ditador. Vi a Revolução de dentro, de onde poucos no mundo poderiam ter visto. Já no Brasil, no dia 11 de fevereiro, Hosni Mubarak foi deposto. Uma renovação de esperança para o povo egípcio, que sofreu com a violação de direitos humanos durante longos anos. Nunca mais fui o mesmo depois daquele episódio. Do Egito, trouxe em minha bagagem uma estatueta das pirâmides e histórias para a vida inteira.





Três anos depois, a Revolução ainda não triunfou completamente. Logo após a renúncia de Mubarak, uma junta militar assumiu o poder e custou a realizar as primeiras eleições livres no país após mais de trinta anos. Concomitantemente, mulheres reivindicavam mais direitos. Ascendeu ao governo a Irmandade Muçulmana , que, após um ano sem cumprir suas promessas e em meio a novos protestos populares, foi deposta por militares, no que se configurou em golpe de Estado. Desde então, militares e a Irmandade Muçulmana estão em lados opostos e a violência perdura no país.

Segue uma compilação de vídeos gravados durante minha rápida estadia no Egito. Depois de muito tempo resolvi revê-los e surgiu a inspiração para esse relato. Com as imagens de minhas lentes embaçadas, consegui refazer todos os meus passos no país. Pude registrar parte do percurso do hotel ao aeroporto, a confusão lá instalada, a imprensa em Madri e, claro, minha passagem pelas pirâmides. Em diversos momentos, me limitei a gravar por medo. Na minha primeira tentativa de filmar um foco de briga, apontaram em minha direção com silhuetas pouco amistosas. Vi que era preciso ter cuidado em um mundo completamente diferente do meu. Qualquer pequeno acontecimento parecia pretexto para iniciar brigas entre árabes, que, de modo bastante espalhafatoso, discutiam em um idioma totalmente incompreensível.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Desafios da serra do mar

Em meados do século XVII, o café passou a se destacar como bebida de luxo, muito apreciado na França. Os grandes centros produtores da época eram, assim, as colônias francesas do Haiti e da Guiana, por onde o café teria adentrado em território brasileiro. Diz a lenda que, com o intuito de participar do mercado do café, o governador do Maranhão e Grão-Pará teria enviado o militar luso-brasileiro Francisco de Mello Paleta à Guiana para que ele trouxesse mudas da cultura. Sob o pretexto de mediação das fronteiras brasileiras, Paleta partiu em sua missão. Na Guiana Francesa, a estratégia utilizada pelo militar para conseguir tais mudas foi dispor de seu charme para seduzir a Primeira Dama do país. Cumpriu sua missão com bastante êxito e retornou ao Brasil com os primeiros exemplares clandestinos de café que seriam ali cultivados. O clima brasileiro e o vasto território contribuíram para a ampla propagação do café, que logo se tornou o principal produto de exportação do país.

A forte demanda do mercado internacional direcionou o cultivo para o oeste paulista. Desse modo, a província de São Paulo se afirmou como o grande centro produtor, e o porto de Santos, como o principal do país. O advento do café traria ainda novos desafios a ainda recente nação: era necessário um desenvolvimento conjunto dos sistemas de transporte e de comunicação. De todos os desafios, nenhum parecia pior do que vencer os cerca de 800 metros de parede íngreme, quase vertical, da Serra do Mar.

"Aquela região não é favorável ao engenheiro. Deve haver regiões piores para estradas de ferro no mundo, mas não as conheço."
Rudyard Kippling, Cenas Brasileiras 

Coube à São Paulo Railway (SPR) a árdua tarefa de escoar a produção de Campinas e Ribeirão Preto para o litoral. Para isso, o ilustre Barão de Mauá recorreu a um dos maiores especialistas em ferrovias da época, o britânico James Brunlees. Foi montada, assim, uma vila de ferroviários, chamada de Alto da Serra, no topo da Serra do Mar, para facilitar a instalação do sistema que possibilitaria sua transposição.

Nessa mistura de moradia para trabalhadores ferroviários, elementos arquitetônicos ingleses e atmosfera sombria, surgiu a pitoresca vila de Paranapiacaba, novo nome da estação Alto da Serra. Paranapiacaba, em sua etimologia tupi, significa "lugar de onde se vê o mar". No entanto, a quase permanente neblina distancia o mar durante boa parte do ano. O visitante logo tem acesso a um mirante de onde pode se ver as cidades de Santos e Cubatão em dias limpos. Ao adentrar na vila, a cada esquina os nomes das ruas denunciam o passado inglês.

A vila foi estruturada sob uma rígida hierarquia: os engenheiros moravam em casas de alto padrão; os casados moravam em casas geminadas com maior número de cômodos; os solteiros dispunham das piores acomodações, com apenas um quarto, banheiro e cozinha para pequenas refeições. O engenheiro-chefe, por sua vez, instalava-se na mais notável moradia, o castelinho, construção central e imponente, que podia ser contemplada de todos os pontos da vila. O castelinho se demonstra, ainda, como um perfeito exemplo de panóptico: o chefe podia observar todo o trabalho dos operários, vigilando e controlando suas atividades. Nos fundos da vila, um campo de futebol é tido como o primeiro do Brasil. Ali que Charles Miller teria introduzido a prática do esporte, importado, diretamente, da Inglaterra.

Ainda hoje, a Serra do Mar intimida e desafia. Repleta de mistérios, Paranapiacaba é uma localidade sombria, misteriosa e exótica, mas também muito inspiradora. A vila operária tipicamente inglesa em plena Mata Atlântica, construída à luz da fervente Revolução Industrial, em um contexto de modernização do Brasil ainda tem muito a ser desvendada. É, sem dúvida, um lugar singular.  

sábado, 21 de junho de 2014

Bairrismo


Em tempos de Copa do Mundo, andei lendo, inclusive, que futebol não é nacionalismo. Como não? Para mim, torcer para um time faz parte do pacote de valores culturais que assimilamos ao nascermos. A composição de nossa identidade também envolve a instituição do esporte - e em relação ao esporte, nenhum outro supera o futebol como símbolo de unidade nacional. Em um processo tão natural quanto nascer, passamos a pertencer a uma entidade maior, identificamos aliados e rivais, nos unimos nas adversidades, vibramos na vitória e sofremos na derrota. 

Sou carioca de Laranjeiras e torço pelo Fluminense. Nunca consegui diferir bairrismo de clubismo. Na minha cabeça, todos que nascem em Laranjeiras deveriam ser tricolores. Não me lembro como comecei a torcer pelo clube, foi um processo muito espontâneo. Segundo Nelson Rodrigues, o Fluminense escolhe os melhores dentre os seres humanos. Quem sabe? Quando me vi, já era totalmente simpatizado com as cores do clube e adorava desenhar em meu caderninho os gols de Romário. Em uma família boleira e com tradição flamenguista, tornei-me a ovelha negra. A tese que defendo é de que sou tricolor por puro bairrismo.

No estádio das Laranjeiras sempre encontrei conforto. De suas arquibancadas, a imagem que vejo do Cristo Redentor, entre uma montanha e outra, é a mesma que vejo da janela do meu apartamento. Longe de casa, não há raiz mais fácil de se transportar do que a paixão pelo time. Onde quer que eu esteja, quando visto a camisa do Fluminense, imediatamente me remeto a meu local de origem, às minhas desventuras pelo meu bairro. Lembro-me das alegrias e tristezas que o Tricolor das Laranjeiras já me causou e sempre continuará causando, independentemente do espaço físico que eu esteja ocupando. Lembro-me dos paralelepípedos de minha rua e das pessoas com quem eu conversava no caminho. Muitas conversas, inclusive, eram baseadas no desempenho do tricolor na rodada anterior; era entrar no elevador, encontrar um vizinho e, antes de qualquer cerimônia, trocar falas do tipo "e o nosso Fluminense?".

Em minhas apresentações, nada consegue abranger mais aspectos de minha personalidade do que o time para que torço.  

sábado, 31 de maio de 2014

Simón Bolívar por Karl Marx

De como Hugo Chavez e seu Socialismo bolivariano promoveram um encontro ideologicamente improvável 

"Foi o acaso, sem dúvida, que levou Marx à redação de seu artigo sobre Bolívar. (...) Quis a sorte que lhe coubesse redigir o verbete sobre Bolívar. O resultado das leituras efetuadas para a redação desse verbete foi um sentimento tão acentuado de aversão pelo personagem, que ele não conseguiu deixar de dar um tom surpreendentemente preconceituoso a seu trabalho."
José Aricó, Marx y América Latina
"Heróis ou demônios, suas vidas estão unidas por contingências históricas. Nada permitiria prever uma relação entre os dois. Com vidas paralelas, não pareceria haver um ponto de interseção. Mas uma reta cruzou essas vidas, provocando uma interseção curiosa. Bolívar tornou-se objeto da atenção de Marx pela necessidade de atender a um pedido de Charles Dana para a 'New American Cyclopaedia', em 1857. O artigo escrito por Marx provocou controvérsia, mal-estar e ressentimento em alguns casos."
Marcos Roitman Rosenmann & Sara Martinez Cuadrado, Universidade Complutense de Madrid 
"No que concerne ao estilo preconceituoso, certamente saí um pouco do tom enciclopedístico. Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas. Bolívar é o verdadeiro Souloque. [Rei do Haiti. Figura a quem Marx e Engels recorriam para ridicularizar Luis Napoleão III] A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, provou sua eficácia em todas as épocas, inventando grandes homens. O exemplo mais notável desse tipo é, sem dúvida, o de Simón Bolívar."
Karl Marx, carta a Engels 
"Ao povo da Venezuela, em exercício de seus poderes criadores e invocando a proteção de Deus, o exemplo histórico de nosso libertador Simón Bolívar e o heroísmo e sacrifício de nossos antepassados aborígenas e de precursores e formadores de uma pátria livre e soberana(...) assegure o direito à vida, ao trabalho, à cultura, à educação, à justiça social e à igualdade sem discriminação ou suborno algum; promove a cooperação pacífica entre as nações e estimula e consolida a integração latino-americana"
Constituição Bolivariana 
Cultuado pela esquerda latino-americana, Simón Bolívar, "O Libertador", era visto pelo pai do Socialismo Científico e autor do Manifesto Comunista, Karl Marx, como um "personagem medíocre e grotesco". Para Marx, Bolívar era um perfeito exemplo de ditador bonapartista: em um verbete para a New American Cycopaedia, sua repugnância por Bolívar se demonstra  equiparável à por Napoleão. Um dos mais notáveis objetos de crítica do filósofo alemão, o Código Boliviano, foi descrito como uma imitação do Código Napoleônico e como um meio para Bolívar dar livre curso a suas inclinações para o poder arbitrário. Marx considera ainda que o Libertador se propunha, sob a etiqueta de "um novo código democrático internacional", converter a América inteira em uma república, tendo nele próprio seu ditador. Em outras palavras, reunir meio mundo sob o seu nome.

O polêmico artigo rendeu muitas controvérsias. Durante um longo período de tempo, historiadores soviéticos compartilharam o ponto de vista de Karl Marx. As guerras de independência latino-americanas foram negativizadas pela inibida e praticamente inexistente participação popular e pelo limitado caráter nacional; seriam apenas "um assunto próprio de um punhado de separatistas crioulos que não contavam com o apoio das massas populares". Em uma publicação de 1959, no entanto, na segunda edição em russo das obras de Marx e Engels, uma severa crítica à opinião sustentada por Marx foi incluída. Os editores creditaram a visão imparcial à suposta insuficiência de referências bibliográficas e à aparente ambição de Bolívar pelo poder pessoal. Essa hipótese, porém, foi descartada por estudiosos do artigo de Marx. Uma análise em seus métodos de pesquisa e em suas fontes bibliográficas revelaram que as referências não somente não criticavam Bolívar como, pelo contrário, eram amplamente favoráveis a ele. Ainda assim, algumas de suas citações, de fato, repudiavam o Libertador. As palavras de Marx causaram um mal-estar com Dana, editor da enciclopédia, que pediu esclarecimentos sobre as fontes. A questão permanece: o preconceito político presente no verbete não caracterizava a obra de Marx. Se ele, como se acredita, dispunha de fontes favoráveis a seu biografado, a nova pergunta que se coloca é por que as teria deixado, conscientemente, de lado.


Seria, assim, um erro histórico o sugestivo Socialismo bolivariano do século XXI? O movimento, encabeçado pelo agora falecido presidente venezuelano, Hugo Chavez, consolidou a tendência esquerdista na América Latina. Chavez se autoproclamava o encarregado de prosseguir com a missão de Bolívar em Terra. Via na figura de seu histórico compatriota o pilar necessário para a luta anti-imperialista. Reuniu, sob o ideário da integração política, econômica e social, países latino-americanos de cunho socialista. Foi precursor da ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), que agrupa, além da Venezuela, países como Cuba, Bolívia e Equador. Baseado em uma política de distribuição de renda, reduziu drasticamente os índices de pobreza e analfabetismo de seu país. Disposto de uma rica reserva de petróleo e gás natural, empenhou-se em perturbar os Estados Unidos, tornando-se peça chave na geopolítica da americana.

A luta anti-imperialista dos países ditos bolivarianos veio acompanhada da ascensão de líderes sindicalistas, indígenas, camponeses e sandinistas, como no caso de Daniel Ortega da Nicarágua, à presidência de seus respectivos países. As políticas sociais e de distribuição de renda, acredita-se, vieram como consequência natural de um período de dura degradação das economias latino-americanas nas décadas de 80 e 90, associada à inserção no sistema neo-liberal, que aumentou as disparidades entre os mais ricos e os mais pobres no continente. De fato, o "Socialismo do século XXI" não dispõe de um embasamento teórico muito profundo, tendendo muito mais para um movimento espontâneo. As economias dos países latino-americanos são de mercado, e o caráter nacionalista é bastante semelhante aos modelos de Vargas, no Brasil, e de Perón, na Argentina. O melhor exemplo é a própria Venezuela chavista: a exploração do petróleo é nacionalizada, porém, 49% das ações é controlada por capital privado e, sobretudo, estrangeiro. Além disso, o poderoso país a quem Chavez se referia como seu maior inimigo, os Estados Unidos, são seus principais compradores de petróleo e fornecedores de manufaturados.


"Se de Rômulo, Roma, de Bolívar, Bolívia!"
"Sim: somente Deus tinha o poder para chamar essa terra Bolívia… Que quer dizer Bolívia? Um amor desenfreado de liberdade, que ao receber vosso arroubo, não vejo nada que fosse igual a seu valor."
Karl Marx, em sua crítica, destacou a força geradora de mitos pela fantasia popular. De fato, o mito Simón Bolívar é bastante presente na América Latina. Até nome de pátria serviu como veneração a sua imagem. Não há grande cidade latino-americana que não destina algum logradouro público a sua memória. Hugo Chavez trabalhava sob a tutela de uma grande fotografia de seu maior herói em seu gabinete presidencial, no Palácio de Miraflores - em seus encontros diplomáticos, comumente presenteava algum chefe de Estado com uma réplica da espada de Bolívar. O bolivarismo, ao longo dos séculos, tornou-se uma doutrina política, que influenciou, inclusive, outras personalidades míticas do universo latino-americano. Dentre elas, o lendário guerrilheiro argentino Che Guevara. Após a Revolução Cubana, quando indagado sobre o ponto de vista de Marx, escreveu:
“Podem-se apontar em Marx, pensador e investigador das doutrinas sociais e do sistema capitalista que lhe coube viver, certas incorreções. Nós, os latinos americanos, podemos, por exemplo, não concordar com sua interpretação de Bolívar... Mas os grandes homens, descobridores de verdades luminosas, vivem, apesar de suas pequenas faltas, e estas servem apenas para demonstrar-nos que são humanos".
No entanto, perante toda a influência de seu pensamento nas relações sociais e na história da humanidade, a análise de Marx não pode ser atribuída a um mero erro humano, como observou Che Guevara. O artigo introdutório do livro "Simón Bolívar por Karl Marx" menciona o aspecto da anistoricidade hegeliana como norteadora de sua análise: o filósofo alemão não conseguira identificar, sobretudo, uma luta de classes e uma sistematização lógico-histórica do contexto latino-americano da época, e a assombração do "povos sem história" era, segundo José Aricó, autor do artigo, o plano de fundo constante de seus argumentos. Ao analisar países europeus, diferentemente da América Latina, sempre conseguia indicar uma vitalidade própria e uma condição para gerar uma revolução plebeia, popular; cada país possuía o seu 1789. O Bolívar por Karl Marx, assim, era o herdeiro arbitrário e despótico da tradição político-estatal contra a qual Marx sempre lutou: a constituição civil da sociedade latino-americana, "de cima para baixo" foi bastante notável em sua reflexão. De modo algum Marx poderia aceitar um sistema político baseado na onipresença de um ditador.


Por outro lado, é de se estranhar o fato de Marx não ter buscado se aprofundar na real dinâmica das lutas de classe. Talvez pelo ódio em relação ao autoritarismo bolivariano, ela não tenha percebido a agitação e atuação de diversos segmentos constituintes das nações latino-americanas em relação à independência: rebeliões camponesas e rurais contra as elites crioulas que dirigiam a revolução; negros e índios tendiam a seguir a causa dos espanhóis; diversidade entre as guerras de independência entre o sul, onde as elites urbanas mantiveram o controle do processo, e o norte, onde a independência começou , no caso do México, com uma revolta generalizada de camponeses e índios. Além disso, havia o temor de processos semelhantes ao liderado por Tupac Amaru e à revolução negra no Haiti. Alguns dos pilares de Bolívar compreendiam ideias básicas de Marx, como a formação de uma nacionalidade geograficamente extensa, capaz de fazer frente a qualquer potência econômica mundial.

Bolívar, de certo modo, procurou fazer na América espanhola o que a monarquia portuguesa faria no Brasil: centralizar o poder, que exerceria o mesmo papel da coroa espanhola. Como se sabe, o Libertador, contemporâneo de Napoleão Bonaparte, teve sua formação intelectual na Europa pós Revolução Francesa, com imenso contato com a literatura iluminista. Em sua obra, há diversas influências do liberalismo. Pertencente a uma minoritária nobreza, iniciou o movimento de independência pautado no temor às massas. Para Marx, a ideia de luta anti-imperialista era uma das vertentes do mito, já que trocaria o domínio colonial espanhol pelo domínio econômico britânico.

O fracasso de Bolívar se deu pela mesma classe social que o ascendeu. No final de sua vida, chegou a afirmar que a América era ingovernável e que o melhor a se fazer seria sair dela. A massa popular, para ele, tinha mais poder destrutivo do que construtivo. Acredita-se que sua forma de governo influenciou a literatura nazifascista, que postulava a necessidade de um único líder autoritário e arbitrário conduzir uma nação. De um lado, o herói, Deus, Libertador. De outro, um traidor ambicioso e oportunista. De um lado o símbolo da luta anti-imperialista. De outro, um ditador bonapartista. Por fim, a lição do bolivarismo é de que sempre foi difícil, para o povo latino-americano, ser sujeito de sua própria libertação. 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Achados & Perdidos

Bolívia e Peru, 2009

"Então na escada da terra subi
entre o emaranhado atroz das selvas perdidas
até a ti Macchu Picchu.
Alta cidade de pedras escalares,
por fim morada do que o terrestre
não escondeu nas adormecidas vestimentas.
Em ti, como duas linhas paralelas,
o berço do relâmpago e do homem
embalavam-se de espinhos.

Mãe de pedra, espuma de condores.
Alto arrecife da aurora humana.
Pá perdida na primeira areia."

Pablo Neruda, Canto Geral




Alemanha, 2011




Bahia, 2013




Egito, 2011

"Do alto dessa pirâmide, 40 séculos vos contemplam"
Napoleão Bonaparte



Pantanal, 2012



Fernando de Noronha, 2012



Caraça, 2012

"Só o Caraça vale toda a minha viagem a Minas."
Dom Pedro II


Reino Unido, Holanda, Bélica, 2013



Para o Oeste, 2014