Preso entre quatro paredes, mantido ali dentro para sempre. Tenho medo de jamais ver alguém como a senhora, mamãe. Resolvemos agir. Introduzimos guitarras e sintetizadores ao cântico. Então fazemos preces mantendo o andamento da canção. Se um dia eu sair daqui, doarei meu dinheiro à uma caridade registrada e brindarei uma caneca de cerveja por dia; se um dia eu sair daqui, minha vida será diferente. Um som de orquestra nos confere contornos épicos e indica o otimismo da nova fase de nosso hino. Pulamos o muro, saímos de nosso confinamento e agora todos nos procuram. O carcereiro e o marinheiro não nos encontraram. O agente funerário se preocupa com nossa ausência. O ressentido juiz do Condado, por sua vez, não tem ninguém para julgar. Porém nunca nos encontrarão. Somos a Banda em Fuga e estamos nos divertindo.
No dia 25 de novembro encontrei Paul McCartney, o idealista de Band On The Run, da Banda em Fuga. Na metade final de sua apresentação, introduziu os serenos acordes iniciais da canção, que duraria cerca de cinco minutos. Naquele momento fui convidado a olhar dentro de mim mesmo. Tive que viajar em meu interior com os pensamentos que a música me trouxe. Ouvi o álbum homônimo exaustivamente ao longo do ano. Entre tantas idas e vindas, com tantas horas na estrada, Band On The Run foi minha trilha sonora dos últimos tempos, em que minha vida mudou drasticamente.
Cabe aqui, a princípio, conversar sobre a composição do álbum, fonte de inspiração deste texto, e sobre as circunstâncias em que foi produzido. No ano de 1973, passada a comoção após a dissolução dos Beatles, Paul McCartney precisava se superar. Nesse caso, sua tarefa não seria das mais fáceis: competir consigo mesmo; com o Beatle Paul, seu passado recente e de extremo sucesso. Essa superação significava entrar no mundo real, sair do sonho que há pouco acabara. Ele, que permaneceu na banda dos 15 aos 28 anos, afirmava não saber ser outra coisa além de um Beatle. Teve que se reinventar e se adaptar às circunstâncias. Passou dias difíceis e sem muita perspectiva, isolado em uma fazenda na Escócia, procurando formar um porto seguro com a família que estava montando. Alcançou certo sucesso com algumas composições. A redenção, contudo, só veio com Band On The Run. Para produzir o álbum, decidiu sair da mesmice da Inglaterra e partiu para um lugar deveras exótico: Lagos, na Nigéria. Com esse distanciamento, pode se concentrar na sua arte e encarar seus novos desafios. Foi sua fuga. Concebeu um álbum de alta categoria - impecável da arte da capa ao repertório - um dos definitivos do Rock, cujas músicas dialogam entre si. Foi também sua autoafirmação. Teve a certeza de que era capaz de compor como compunha nos tempos de Beatles. Passou a ser McCartney, não mais Lennon-McCartney.
Enquanto eu viajava ouvindo Band On The Run no em minha vida antológico dia 25 de novembro, percorri por todos os caminhos que me levaram à minha própria fuga. De repente o cenário de minha vida mudou e eu não morava mais na casa de meus pais. Eu arrumava a mala para o que parecia um passeio comum, mas, quando percebi, estava me mudando de cidade. Meu mundo cresceu e minha quilometragem aumentou. A rodovia Imigrantes era a rua de minha casa, e a Presidente Dutra, a avenida do meu bairro. Eu estava, agora, em Santos. Minha noção de distância se alterou. Percorrer duas quadras na pequena cidade de Santos parecia demasiadamente maior do que no Rio de Janeiro. Por outro lado, os 500 km que separam as duas cidades se demonstraram desprezíveis diante do mundo que se estendia diante de mim.
Paul é um velho amigo, de longa data. Vimos-nos presencialmente em duas ocasiões: em 2011, no Rio, e agora em 2014, em São Paulo. Lembrei-me de quão bom é ter uma predileção quase exclusiva por um grupo seleto de músicos. As mesmas melodias nos remetem a mais de um momento de nossas vidas, e podemos fazer uma autocrítica de nosso amadurecimento. Como afirmou certa vez o Bruxo do Cosme Velho, cada estação da vida é, afinal, uma edição que corrige a anterior e que será também corrigida. A obra final, no entanto, é uma só. O menino que ouvia The Long and Winding Road memorando um passeio de bicicleta no interior da Baviera é o mesmo que ouve a música percorrendo as longas e tortuosas curvas da estrada de Santos. A maneira de assimilar os sons, contudo, é diferente. A música possibilita navegarmos por diversas edições do livro que conta a história de nossas vidas.
O menino de outrora, com efeito, não havia percebido que a estrada a que Paul se refere em sua canção, ao mesmo tempo que deixa uma poça de lágrimas, guia-nos até novas portas. Estamos agora diante do enigma da fronteira. Atravessá-la consiste em, necessariamente, deixar algo conhecido e rumar em direção ao novo. Nosso dever é deixar legados que nos permitam ser sempre bem-vindos ao nosso local de origem, e construir bagagens que possam nos levar aonde bem entendermos. Para decifrar o enigma é necessário compreender que a fronteira, na maioria das vezes, não é física. São circunstâncias da vida que indicam a hora da mudança, de fuga da inércia, de enfrentamento de desafios. Transpor a fronteira é explodir as guitarras em Band On The Run.
A viagem introspectiva que fui convidado a fazer estava acabando, assim como os cinco minutos da canção. Já havia passado pela primeira parte, de medo do cárcere. Os acordes serenos sublimavam toda a obscuridade daquela condição. Devemos tomar cuidado com as impressões; a parte mais calma da música era, também, a mais sombria. Do mesmo modo, adentrei à segunda parte, da fuga propriamente dita. A parte mais curta e intensa. Das adversidades, ficou claro que sempre há, a um pequeno passo, uma possibilidade de ação. Agora eu desfrutava da última parte, brindando uma cerveja por dia.
Voltei, então, para Santos e troquei o som de Band On The Run pelo estrondo das buzinas de navios que se aproximavam do porto, que irrompem em notas baixas como na Quinta de Beethoven. Sons igualmente prazerosos. Admirava o mar sem fim, o mesmo que banha o Rio de Janeiro, a África, Europa e toda a América. Do horizonte, observava navios vindo de muito longe chegarem, trazendo consigo seu som, dispersado aos quatro ventos em todas as entranhas da cidade. Meu veículo era apenas uma bicicleta. Com ela eu estava em constante contato com o meio; andava com o vento tocando o rosto, trazendo cheiros e sensações dos lugares por onde eu passava. Não precisava mais de muito. Estava me divertindo, e ninguém mais poderia me encontrar. Como na canção, eu acabara de me tornar um fugitivo.
If I ever get out of here, if we ever get out of here
Paul é um velho amigo, de longa data. Vimos-nos presencialmente em duas ocasiões: em 2011, no Rio, e agora em 2014, em São Paulo. Lembrei-me de quão bom é ter uma predileção quase exclusiva por um grupo seleto de músicos. As mesmas melodias nos remetem a mais de um momento de nossas vidas, e podemos fazer uma autocrítica de nosso amadurecimento. Como afirmou certa vez o Bruxo do Cosme Velho, cada estação da vida é, afinal, uma edição que corrige a anterior e que será também corrigida. A obra final, no entanto, é uma só. O menino que ouvia The Long and Winding Road memorando um passeio de bicicleta no interior da Baviera é o mesmo que ouve a música percorrendo as longas e tortuosas curvas da estrada de Santos. A maneira de assimilar os sons, contudo, é diferente. A música possibilita navegarmos por diversas edições do livro que conta a história de nossas vidas.
A viagem introspectiva que fui convidado a fazer estava acabando, assim como os cinco minutos da canção. Já havia passado pela primeira parte, de medo do cárcere. Os acordes serenos sublimavam toda a obscuridade daquela condição. Devemos tomar cuidado com as impressões; a parte mais calma da música era, também, a mais sombria. Do mesmo modo, adentrei à segunda parte, da fuga propriamente dita. A parte mais curta e intensa. Das adversidades, ficou claro que sempre há, a um pequeno passo, uma possibilidade de ação. Agora eu desfrutava da última parte, brindando uma cerveja por dia.
If I ever get out of here, if we ever get out of here